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1994 – Uma Copa, uma morte, uma interpretação

“Amanhã é a última partida e ainda não temos o time ideal. Tudo bem, esse é o nosso ritmo”, escreveu Fernando Gabeira, um dia antes da última partida da Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos. A seleção brasileira jogaria contra a italiana, reeditando a decisão de 1970, quando eram ambas bicampeãs mundiais. O tri dera aos brasileiros a posse definitiva da Taça Jules Rimet (aquela que foi roubada e derretida, enquanto uma réplica era guardada em um cofre na CBF). Desta vez, eram ambas tricampeãs, e haveria a primeira equipe a chegar à marca de quatro Copas vencidas. A terceira da Itália, aliás, havia começado a se desenhar exatamente contra o Brasil, na segunda fase de grupos em 1982, quando, por três a dois, desenhou-se o Desastre do Sarriá.

As equipes se equivaliam naquela final que há pouco completou vinte e cinco anos. Gianluca Pagliuca era bom goleiro, como Cláudio Taffarel; Baggio era o ponta de lança refinado, Romário o rei da finalização; Franco Baresi era o líbero chefe da defesa azurra, Dunga mandava na cobertura da zaga e na saída de bola. Os sistemas defensivos eram o ponto forte de cada time. A partida, jogada sob sol inclemente do meio-dia, momento adequado para que a transmissão pudesse ser feita em horário apetecível na Europa, terminou empatada, da mesma forma que o período de prorrogação.

O time brasileiro que entrou na final da Copa do Mundo de 1994. Em pé: Taffarel, Jorginho, Aldair, Mauro Silva, Marcio Santos e Branco. Agachados: Mazinho, Romário, Dunga, Bebeto e Zinho. Foto: Wilson de Carvalho.

Mas a saga de 1994 começara para os brasileiros muito tempo antes, com Paulo Roberto Falcão, em seu primeiro trabalho como treinador, demitido depois de perder a Copa América de 1991. Uma pena. O meio-campista aposentado era elegante à beira do gramado, assim como no trato com a imprensa que, no entanto, não lhe dava folga. Acabou perdendo o cargo que lhe fora dado pela CBF seguindo exemplo da seleção alemã, que efetivara, com êxito, Franz Beckenbauer como treinador nacional.

Logo assumiu Carlos Alberto Parreira, campeão brasileiro pelo Fluminense em 1984 e que vinha de bom trabalho com o surpreendente Bragantino, derrotado também no Brasileiro pelo São Paulo de Telê Santana. O treinador tinha ainda longa carreira internacional, quase sempre em equipes do Oriente Médio. O carioca que fizera parte da comissão técnica da seleção de 1970, liderada por Zagalo, sofreu críticas de todos os tipos durante os anos que antecederam o Mundial de 1994.

Nunca houvera tanta incerteza em relação à classificação do Brasil nas Eliminatórias sul-americanas como para aquela Copa. Todos havíamos aprendido que o Brasil sempre vencia e, quando não era o caso, isso se devia a algum equívoco evitável. Claro que isso não era verdade, mas não deixou de ser uma surpresa, das mais desagradáveis, a seleção ser derrotada por dois a zero frente ao time da Bolívia, nas Eliminatórias para a Copa. A muitos metros de altitude, um gol aconteceu em falha clamorosa de Taffarel, ele que, no primeiro tempo, defendera uma penalidade. A classificação se confirmou apenas no último jogo, contra a seleção do Uruguai, tradicional adversário, não sem antes o time viver alguns percalços: o atacante Careca pediria dispensa, o goleiro Zetti teria resultado positivo para o princípio ativo da cocaína no antidoping (ele seria absolvido porque o consumo se dera no chá e em biscoitos na Bolívia) e Romário ficaria fora do time por longo tempo ao reclamar um lugar entre os titulares em um amistoso contra a Alemanha no final do 1992, em Porto Alegre.

Para o confronto com os charruas, Romário foi convocado para o lugar de Müller, lesionado, e já chegou titular, em reconhecimento de Parreira (e Zagalo, que ocupava o novo cargo de coordenador técnico, criado para incorporá-lo com autoridade à comissão técnica) de que ele fazia muita falta. Como se esperava, o então jogador do Barcelona de Cruyff dominou as ações da partida. Logo no início, na narração de Luciano do Valle, o comentarista Juarez Soares advertiu: “é impressão minha, ou o Romário acaba de dar uma caneta no uruguaio?”. Sim, fora isso, o craque estava em casa, como sempre esteve entre as quatro linhas do gramado, não apenas no Maracanã, palco para seu espetáculo naquela tarde de domingo. Seus dois gols carimbaram o passaporte do time, e o dele mesmo, para a Copa no ano seguinte.

A confiança na seleção brasileira não era das mais sólidas. Marcelo Fromer e Nando Reis, da banda Titãs, assinavam uma coluna sobre futebol em que Parreira, a quem se referiam como “Teimoso”, era massacrado todas as semanas. Apesar do treinador, escreviam, venceríamos (assim na primeira do plural, como convém) a Copa. O time foi, no entanto, avançando, embora com pouco encantamento. Ao final da fase de grupos, o empate com a Suécia foi mais que morno, com Luciano do Valle suplicando ao meio-campista Zinho que acertasse “pelo menos um lance”. Logo vieram Estados Unidos e Holanda, vencidos com muita dificuldade. Lembro-me de pensar que uma derrota frente aos ianques seria uma vergonha insuperável – cresci sendo ensinado que os estadunidenses não sabiam jogar o “nosso” futebol. Foi por pouco, e a expulsão de Leonardo, depois de acertar cotovelada violenta em Ramos, parecia um mau agouro. Mas, Bebeto nos salvou.

Mazinho disputa bola com o holandês Witschge, pelas quartas de final da Copa do Mundo de 1994. Foto: Wilson de Carvalho.

Contra os holandeses, o escrete nacional fez seu melhor jogo, com a merecida vitória decidida com o gol do lateral-esquerdo Branco, que voltava ao time depois de tempos, no lugar do sancionado Leonardo. Branco sofrera o pênalti que Zico perderia em 1986 contra a França, e se encarregaria, com sucesso, de uma das cobranças contra a Itália, na final. Cobranças que foram convertidas também por Dunga e Romário, este que quase não cobrava penalidades e que viu a bola bater levemente na trave direita do arqueiro italiano, antes de morrer na rede. O leve sorriso do camisa onze voltando para o meio de campo depois do êxito era de alívio. Márcio Santos, com enorme índice de acerto nos treinos, perdeu, e Bebeto cobraria o último, que não foi necessário, com a vitória assegurada depois que Baggio chutou por cima do gol de Taffarel.

Depois disso, foi Galvão Bueno aos gritos abraçado em Pelé (assistindo à final com amigos não pude escapar da transmissão da Globo), o ainda sub-18 Ronaldo comemorando no campo com a bandeira do Brasil – ele que não entrara em qualquer das partidas, ainda que, segundo se lia na imprensa, se destacava sobremaneira nos treinamentos –, a faixa em homenagem ao piloto Ayrton Senna, grande ídolo esportivo de então, morto no Grande Prêmio da Itália pouco mais de dois meses antes.

Dunga comemora e desabafa ao erguer troféu da Copa do Mundo em 1994. Foto: Rafael Ribeiro/CBF.

Além da Conquista do Tetra e da morte de Senna, naquele 1994 tivemos campanha eleitoral para Presidente da República e demais cargos executivos e legislativos, com exceção de prefeitos. O inicialmente favorito Luiz Inácio Lula da Silva, com todo o sucesso das caravanas da cidadania do ano anterior somado ao capital eleitoral que trazia de 1989, quando perdera por pouco para Fernando Collor de Mello, acabou não sendo páreo para Fernando Henrique Cardoso, impulsionado pelo sucesso da estabilização da moeda com o Plano Real. Para quem vivia durante décadas com a cultura inflacionária, não era pouco a estabilidade tantas vezes buscada e sempre fracassada. FHC foi eleito no primeiro turno, virando em três meses uma eleição que parecia perdida.

Os nexos entre esses acontecimentos não passaram despercebidos a Roberto DaMatta, que em crônicas à época elegeu uma afinidade entre a racionalidade do Plano Real e aquela pragmática da seleção de Parreira. O grande antropólogo jamais foi convincente na demonstração desse argumento, talvez porque sua capacidade analítica esbarre na falta de conhecimento do que se passa entre as quatro linhas – uma marca, aliás, de sua interpretação sobre o futebol.

Ilha de Santa Catarina, julho de 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. 1994 – Uma Copa, uma morte, uma interpretação. Ludopédio, São Paulo, v. 121, n. 36, 2019.
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