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35 anos esta tarde: Maradona (16:09 horas, em Buenos Aires)

Há dez anos o diretor sérvio Emil Kusturica lançou um documentário nada convencional. Bem, em se tratando do cineasta que é e do tema ao qual se dedicou, não podia mesmo ser diferente. Maradona by Kusturica é uma obra sobre o personagem que nos encantou por uma década e tanto, fazendo tudo o que parecia ser impossível com sua engenhosa perna esquerda. Surdo, movia o corpo de forma surpreendente para não ter que chutar a pelota com a direita. Eu era um menino pequeno quando vi pela televisão, na Argentina, o passe para Ramón Diaz, de trivela pela direita da linha de fundo, que gerou o gol de cabeça do centroavante. Ambos – um do Argentinos Juniors, outro do River Plate – atuavam pela seleção principal de seu país, como haviam feito pela equipe de juniores, campeã mundial em 1979. Era também pela esquerda que Diego procurava trafegar na política, mesmo que de forma às vezes trôpega e ziguezagueando pelas ideias.

O filme de Kusturica é sobre Diego, mas também sobre a idolatria que se lhe destina na Argentina. Por isso que logo em seu início assistimos à surpreendente sequência sobre a Igreja Maradoniana. A encenação tende à comédia, gênero com o qual o documentário brinca quase o tempo todo, mas o rito existe e é praticado com afinco: pessoas que se encontram para cultivar a idolatria, nada mais e nada menos que isso. Em 2014 conheci um de seus devotos, o simpático Gabriel, aluno em um curso que ministrei em Mar del Plata, que sabe muito sobre futebol e tudo sobre El Pibe.

No documentário acompanhamos a relação com as filhas, com a torcida do Boca Juniors, com a política. Maradona se deixa ver, pelas lentes de Kusturica, como um personagem que é sempre, por onde passa, central. Eis alguém que jamais foi coadjuvante. Poderia ter ocupado essa posição na Copa de 1978, jogada em seu país, mas não figurou na lista final do selecionador César Luis Menotti. É também como astro que o ex-jogador acompanha o cineasta na visita à cidade natal do segundo, Belgrado. Assistimos às imagens que mostram os prédios destruídos pelos ataques de tropas da OTAN, coalizão liderada pelos Estados Unidos, durante a Guerra dos Balcãs, nos anos 1990. É pena que nada se fale dos ataques e do cerco dos sérvios a Sarajevo, do genocídio perpetrado pelo governo de Slobodan Milošević, do sentimento supremacista em relação às componentes da antiga Iugoslávia. Por outro lado, é muito divertida a troca de passes entre Diego e Emil, com direito a embaixadinhas e jogadas de cabeça, no estádio do Estrela Vermelha, chamado, vejam só, Marakana. Foi nele, aliás, que Maradona fez um gol antológico quando ainda atuava, em 1982, pelo Barcelona. Foi aplaudido até pelos torcedores adversários, conhecidos pela ferocidade de sua adesão ao time.

O filme não deixa de mostrar o momento supremo da carreira de Maradona, os gols contra a seleção da Inglaterra em junho de 1986, na vitória pelas quarta-de-final da Copa do Mundo jogada no México. Quatro anos antes, o país amargara um desempenho frustrante no Mundial da Espanha, mas nada se compara ao sentimento de derrota e humilhação que os hermanos sentiam pela desastrosa campanha das Malvinas, encerrada com centenas de mortos e feridos. O país rendeu-se em 1982 sem a posse das Ilhas, um dos mitos modernos que mais força exercem no imaginário local. Ao dar a previsão do tempo no país, a televisão ainda hoje mostra as condições climáticas das ilhas do Atlântico Sul.

Argentina e Inglaterra estavam com relações diplomáticas rompidas em 1986. A atmosfera, portanto, não era dos mais favoráveis para a partida disputada ao meio-dia, na Cidade do México, no mesmo Estádio Asteca em que a seleção brasileira chegara ao tricampeonato dezesseis anos antes. O primeiro tempo terminou sem abertura de contagem e logo no início do segundo, aconteceram, quase em sequência, os dois gols mortais. O primeiro com a mão, enganando o goleiro Peter Shilton, mas também o árbitro principal e o de linha que acompanhava o ataque sul-americano; o segundo feito ao partir com a bola a cinquenta e cinco metros do gol adversário, antes do círculo central de seu próprio campo, superando tudo e todos até a meta.

Há poucos dias, o jornal inglês The Guardian[1] publicou uma interessante matéria sobre as incertezas entre os árbitros que acompanhavam o lance do gol número um de Maradona, o tunisiano Ali Bin Nasser (juiz da partida) e o búlgaro Bogdan Dotchev (bandeira). Um culpa o outro pelo desfecho positivo para os platenses. O texto lembra também, mas apenas de passagem, o segundo, sem deixar de destacar que foi fruto de “um engenhoso slalom na metade inglesa do campo, realizado sobre a metade da equipe inglesa”. No dia 22 de junho de 2021, uma terça-feira, às 16 horas e nove minutos, o grito de gol, o do segundo, voltou em uníssono à garganta dos torcedores argentinos. Cada torcedor, em casa, na rua, em compras, parou o que fazia e comemorou, como exatamente há trinta e cinco. Reavivou-se na memória o sabor de revanche – efêmera, é certo – contra os ingleses.

O filme mostra, na verdade, apenas o primeiro gol. O segundo é reproduzido várias vezes em animação, onde não falta a Primeira-ministra Margareth Thatcher como um dos adversários que vão ficando pelo caminho. Ao assisti-lo pela primeira vez, perguntei-me por que o mais impactante gol de todas as copas do mundo não é mostrado, apesar de comentado e reproduzido de forma divertida. Um gol tão maravilhoso, imortalizado por si mesmo, mas também pela narrativa de Victor Hugo Morales.

Suponho que é porque para Kusturica, é impossível que aquele gol tenha acontecido, de tão singular e insuperável. Melhor, então, fazer de conta que ele só pode existir na fantasia. Fantástico. Primeiro a comédia, o pícaro que faz o gol proibido, como se seu autor surrupiasse a carteira dos ingleses – como o próprio Diego dizia sentir o seu feito –; depois a tragédia, a catarse. Sempre Maradona.

Ilha de Santa Catarina, junho de 2021.

[1] How Diego Maradona’s Hand of God goal ignited a feud between the men who gave it

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. 35 anos esta tarde: Maradona (16:09 horas, em Buenos Aires). Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 5, 2021.
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