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5 toques de obras recentes para entender as torcidas organizadas no Brasil, por Bernardo Buarque

A publicação de hoje dá início à coluna “5 toques” que, a cada mês, trará um convidado que apresentará uma lista com cinco sugestões de obras acerca de um tema relacionado ao futebol. Na estreia, temos o prazer de contar com as indicações de Bernardo Buarque de Hollanda, professor-adjunto da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV).

Pesquisador do fenômeno das torcidas organizadas, Bernardo Buarque é autor de “O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro” (2010, Editora 7Letras); atuou na organização de coletâneas como “Os Gaviões da Fiel: ensaios e etnografias de uma torcida organizada de futebol” (2015, Editora 7Letras), “Torcidas organizadas na América Latina: estudos contemporâneos” (2017, Editora 7Letras),“Territórios do torcer: depoimentos de lideranças das torcidas organizadas de futebol” (2019, EDUC); coordenou o projeto “Territórios do torcer: uma análise quantitativa e qualitativa das associações de torcedores de futebol na cidade de São Paulo”, numa parceria com o Museu do Futebol; além de assinar a direção conjunta dos documentários “A voz da arquibancada” (2014) e “Territórios do torcer” (2015).

Bernardo Buarque ainda realiza estudos sobre história social do futebol, modernismo e vida literária no Brasil, cultura brasileira – crítica e interpretação, pensamento social e história intelectual. Com uma produção igualmente vasta nesses diferentes temas.

Em sua lista, ele indica cinco obras recentes, realizadas entre 2018 e 2021, que engloba livros, teses e dissertações que examinam as torcidas organizadas brasileiras a partir de diferentes perspectivas, em períodos e regiões variadas do país. Vamos aos toques do convidado:

1º toque: Livro “Violência no futebol: ideologia na construção de um problema social”, de Felipe Tavares Paes Lopes (2019)

Dotado de denso aporte teórico e capaz de cumprir um rigoroso percurso metodológico, a obra enfrenta um dos temas mais recorrentes e mal compreendidos no entendimento do fenômeno das torcidas organizadas de futebol: a violência. Se via de regra os meios de comunicação de massa se valem de seus espaços – mídias escrita, falada e televisada – para condenar atos antissociais praticados por torcedores desse segmento e para enquadrar as TOs, tipificando-as como grupos moralmente ilegítimos, o autor adota uma estratégia diferente de abordagem da Academia, a relativizar e a contornar o problema, com o enfrentamento analítico direto desse mesmo discurso midiático. A análise discursiva aqui empregada sistematiza o modus operandi da “realidade mediada” pela imprensa e transforma em objeto os sujeitos dos discursos judicativos, mostrando como a linguagem acerca da violência acaba por se relevar, ela própria, uma violência da linguagem sobre aqueles que pretende representar.

 

 

2º toque: Livro “O futuro das torcidas: das torcidas organizadas à onda antifascista”, de Caio Pinheiro (2021, no prelo)

Fruto de uma premiada tese de doutorado, belamente intitulada “As ondas que se movem no mar das torcidas: das charangas à guinada antifascista na Ultra Resistência Coral (1950-2020)”, a pesquisa tem a capacidade de reconstituir a historicidade das diferentes formas associativas de torcer desde a adoção do futebol profissional no Brasil. A síntese apreendida desloca o eixo tradicional de observação do fenômeno, mais circunscrito a trabalhos investigativos centrados na experiência pretérita das torcidas em estádios do Rio de Janeiro e de São Paulo, e foca seu olhar na dinâmica constitutiva dos grupos de torcedores organizados forjados da esteira do profissionalismo futebolístico no Ceará, dos anos 1950 em diante. Ancorado em abordagem historiográfica, após deslindar semelhanças e singularidades na longa duração das práticas torcedoras daquele estado, o livro foca sua análise no surgimento da primeira torcida antifa no país, em 2005, a URC, ligada ao Ferroviário Atlético Clube, por meio da mobilização de uma categoria original: a “insurreição clubística”.

 

3º toque: Tese de doutorado “Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas paulistas entre 1968-1988 – uma história da ATOESP”, de Vitor Canale (2020)

A tese traça um panorama histórico instigante de uma das primeiras e mais relevantes experiências de associativismo inter-torcidas no Brasil: a Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São Paulo. A reconstituição narrativa é feita de maneira cerrada com os relatos do cotidiano jornalístico e do calendário esportivo daquele estado, encompassando a ditadura civil-militar e se dilatando até a Nova República e sua “década perdida”. Qual um caleidoscópico, trata-se de uma abordagem reconstitutiva “em muitas cores”, capazes de mostrar a “guerra” e a “paz” que atravessam a protoconsciência de lideranças torcedoras, da geração saída dos agrupamentos de fins dos anos 1960. A partir de uma tessitura vibrante e envolvente, o autor desvela como tais líderes constroem, de forma sinuosa e irregular, uma pauta reivindicatória em comum e formulam um projeto sociocultural inovador para o universo torcedor. Isto resultou em conquistas pontuais na interação com PMs e com autoridades esportivas nos estádios paulistas, ao longo dos anos 1970, e se materializou também na presença orgânica das torcidas uniformizadas na esfera de sociabilidade e lazer do carnaval paulistano nos decênios subsequentes.

 

4º toque: Dissertação de mestrado “As torcedoras querem (poder) torcer”, de Carolina Farias Moraes (2018)

DissertaçãoCom a proliferação de estudos sobre torcidas organizadas, de há muito se esperava um trabalho que contemplasse dois aspectos presentes nessa pesquisa: a problemática de gênero e a diversidade regional. O trabalho de Moraes enfoca principalmente a experiência e a vivência de torcedoras mulheres pertencentes às duas principais torcidas organizadas de Salvador: a Bamor e a Os Imbatíveis. Se o terreno futebolístico foi construído, no campo e nas arquibancadas, sob a égide do machismo e das masculinidades viris, a abordagem contemporânea dessa investigação acompanha a crescente incidência de mulheres nos espaços tradicionalmente hegemonizados por homens. Mostra, com olhar socioantropológico, as fricções, os estranhamentos e as mudanças que as mesmas causam ao demandar novos hábitos internos de socialização dos grupos – nas sedes, nas festas e nas caravanas – e diferentes condutas nos espaços públicos das arquibancadas, onde as torcidas performam suas ações coletivas. Se o trabalho tem um cunho ao mesmo tempo monográfico e comparado, centrado no diário de campo junto às duas torcidas de maior rivalidade da capital baiana, a pesquisa tem ainda outro mérito: o de ampliar o quadro retratado e evidenciar o protagonismo feminino no conjunto das torcedoras organizadas brasileiras no último quinquênio, a partir de movimentos como o “I Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada: resistência e empoderamento”, realizado em 2017, no Museu do Futebol, na cidade de São Paulo.

 

5º toque: Dissertação de mestrado “Gaviões da Fiel: cultura de arquibancada contra o futebol moderno”, de Vitor Hugo Haidar da Silva (2018)

DissertaçãoAinda que um dos primeiros estudos acadêmicos sobre futebol tenha sido produzido no campo da Linguística, não é comum ver uma dissertação sobre a temática torcedora ser defendida em um espaço institucional de excelência como o Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL/UNICAMP. Esta investigação logra não só uma inserção em área usualmente apartada do debate intelectual sobre torcidas organizadas como contribui com um estudo de caso de uma entidade associativa com mais de cinquenta anos de existência e que se tornou paradigmática em termos de visibilidade pública e de cultura organizacional interna: o Grêmio Gaviões da Fiel. O trabalho mobiliza o expediente da etnografia para observar o “terreno semovente da linguagem”. Com efeito, é capaz de captar as nuances com que se constrói um idioma para a chamada “cultura de arquibancada” no Brasil globalizado – ou não – do século XXI. Aos estereótipos reificadores da mídia, contrapõem-se dinâmicas verbais, locuções sinestésicas, gírias periféricas, categorias e discursos nativos que emergem no “mundo da rua”, no “circuito da paixão corinthiana” e nos “cânticos, faixas e corpos”. Exposta a pletora da performance vocabular, a fala grupal torcedora é aqui iluminada por um sofisticado referencial teórico, que transita de Stuart Hall a Judith Butler, de Austin a Bakhtin.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

RIBEIRO, Raphael Rajão; HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. 5 toques de obras recentes para entender as torcidas organizadas no Brasil, por Bernardo Buarque. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 1, 2021.
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