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A Boca do Luxo nos anos 1970: das páginas policiais para as páginas do esporte amador

Luciane de Castro 31 de agosto de 2020

Tem se tornado de maior conhecimento que durante os anos da proibição da prática do futebol por mulheres, não houve uma paralisação geral desta atividade. São muitos os registros indicando que, de uma forma ou outra, as mulheres se organizaram e jogaram bola.

Nos anos 1970 constam vários registros de partidas entre mulheres. Há exemplos em Mossoró, Caxias do Sul, Cuiabá e tantos outros possíveis de serem verificados através de pesquisa.

Eram variados os motivos para a realização dos jogos nesse período da absurda proibição. Entretanto, a movimentação de um campeonato, amplamente acompanhado e divulgado pelo Diário da Noite, me chamou a atenção.

A Geografia da Noite. Imagem ilustrativa para o Jornal da República. 1979. Foto: Reprodução.

Acredito que os pontos da cidade chamados de “Boca do Lixo” e “Boca do Luxo” sejam de conhecimento de muita gente e este breve texto tem a função de expurgar rapidamente parte do que encontrei registrado no Diário da Noite. Aliás, é possível encontrar na internet farto material sobre a Boca do Luxo e o “Quadrilátero do Pecado”, outro nome dado a Boca do Lixo.

O grande Ricardo Kostcho produziu para o Jornal da República uma série fantástica abordando o crescimento da prostituição na cidade de São Paulo. Os links para a leitura, por partes, estão aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Imagem de abertura da série escrita por Ricardo Kostcho para o Jornal da República, dez. 1979. Foto: Reprodução.

Fora séries e matérias cujo propósito era dissecar os elementos sociais e antropológicos que envolviam – e envolvem – o tema no Brasil, só era possível visualizar nomes e locais das duas famosas Bocas paulistanas, em dois espaços nos jornais: as página policiais (mais comumente recheadas por personagens da Boca do Lixo) e as colunas de diversão (com colunista fixo para as casas da Boca do Luxo). Entretanto, a Boca do Luxo não passava incólume pelas páginas policiais com personagens denunciados por tráfico de mulheres, dançarinas assassinadas por clientes, prisão de traficantes e toda sorte de delitos.

Missa para Regina. set,1979. Foto: Reprodução.

De qualquer maneira, é dentro do contexto das famosas boites que se localizavam nas Ruas Major Sertório, Bento Freitas, Rego Freitas e General Jardim na Vila Buarque, que surgiu o campeonato das “dançarinas” das boates da Boca do Luxo. Óbvio que não trilhei o caminho cronológico das notícias. As notas surgem durante a pesquisa como se estivessem brincando de ‘esconde-esconde’. O pé foi uma nota com resultados de dois jogos entre as mulheres da boate My Love e Le Masque e anunciando o jogo entre My Love e Korvette.

“Como assim terceiro jogo?”, “Onde está a nota dos outros dois jogos?”, “Mas que doidera é essa??” são algumas das frases ditas comigo, entre um salto na cadeira e uma entusiasmada ida à cozinha para comentar com minha mãe (já perdida entre os outros assuntos abordados durante o período de quarentena) sobre o rolê ludo/lascivo que pingou na minha frente. E, pra melhorar, tinha foto! Escalação, autoras dos gols, reservas! Uma festa pra quem pesquisa o futebol de mulheres. Abaixo, reprodução da nota.

FUTEBOL FEMININO

My Love venceu Le Masque e enfrenta o Korvette, hoje.

As equipes de futebol feminino das boites My Love e Korvette composto por suas bailarinas, jogarão hoje, às oito horas da manhã no Campo do Itororó (próximo ao Jockey Club, à esquerda antes da ponte, junto ao prado).

Este é o terceiro jogo da série. No primeiro, My Love e Le Masque empataram por 1 a 1. Na última segunda-feira, o My Love venceu o Le Masque (revanche) por 2-1, gols de Bel e Lurdes para os vencedores. As duas equipes jogaram assim formadas:

MY LOVE – Rosa Rio, Nena, Noemia, Sapatão e Lurdes; Ivanir, Natália e Bel; Tânia Matilde e Darci. Reservas: Shirley, Silvia e Linda. Técnico: Rocha. Supervisor: Braz Leme.

LE MASQUE – Samanta, Eliana, Tamara, Valeria e Mara; Gracia e Cristina; Samyra, Sabrina, Vanusa e Jane. Técnico: Dino Caruso.

Na próxima segunda-feira teremos a estreia do time do Club de Paris, treinado por Nenê. As bailarinas do Club de Paris vão enfrentar o time vencedor de hoje (My Love vc Korvette). O time do Korvette destaca a figura de Marluce Macedo (organizadora e jogadora do time). O quadro do Korvette para hoje é este: Eva, Ana, Carmen, Ana Paula e Elisana; Leila, Rosana e Teresinha; Marluce, Zeni e Cristina. Reservas: Katia e Lucelia.

Em breve estas equipes disputarão um campeonato da noite paulista.

Equipes em pose. My Love e Le Masque. Diário da Noite, 1979. Foto: Reprodução.

Para dar um grau no meu entusiasmo, esta pequena nota cruzou com minha revisada sobre o encontro “Ciclo Histórias da Várzea”, realizado pelo Museu do Futebol em 2017, em que pude acompanhar a apresentação de José Magnani e Simone Scifoni e o tombamento do Parque do Povo, local que, por coincidência ~ ou não ~ abrigava o campo do Grêmio Itororó, onde eram realizados os jogos às segundas-feiras pela manhã. Aliás, é de grande valia acompanhar o estudo e o processo de tombamento deste espaço de campos de várzea, que pode ser conferido aqui.

Quinze dias depois desta primeira nota, surge a segunda, informando a mudança dos locais dos jogos para o campo do Estrela do Pari e os jogos entre garçons.

Nota sobre os jogos da rodada do campeonato entre boates, nov. 1979. Foto: Reprodução.

Foram publicadas mais quatro notas sobre o campeonato. A última aparece no dia 19 de novembro de 1979, que reproduzo a seguir:

FUTEBOL FEMININO

Studio 2000 estreia contra La Concorde

A equipe de futebol feminino da Discoteca Studio 2000 fará sua estreia esta manhã às 8 horas, no campo do Estrela do Pari, à rua da Piscina, próximo ao Estádio da Portuguesa de Desportos, contra a forte representação da boite <La Concorde> dirigida pelo treinador Nilsson Pinheiro. As equipes prováveis são estas:

LA CONCORDE: Michele, Leila, Monica, Rosana e Adriana; Mary Anne, Silvia e Suely; Cida, Cleide e Doris.

STUDIO 2000: Marcia, Regina, Mariana, Leila e Riete; Eliana, Zelinda e Samanta; Flavia, Neusa e Patrícia.

O novo time da Discoteca Studio 2000 foi formado por Clovis Godoi e é dirigido por Renato.

Em seguida jogarão os homens (9 horas). O combinado Big-Ben/Tetéa enfrentará o time do My Love, treinado por Carioca.

[…] Os responsáveis são Pedro Amorim Rocha e Bras Leme, que anunciam para esta 4ª feira, às 6 e meia da madrugada o treino da seleção feminina da noite organizada pelo Ari Ceabra, presidente do Gremio Desportivo Timbirás. Todas as convocadas deverão responder presente pontualmente.

Há, neste encerramento de informações acerca do campeonato jogado pelas mulheres da noite paulistana, muito mais que um silêncio. Não há, pelo menos até o momento em minhas pesquisas, nenhuma outra publicação a respeito de como terminou esta competição. Fato que me frustra deveras, já que deste último ano da década de 1970 até a regulamentação da modalidade em 1982, havia uma movimentação e criação de times femininos para disputa real e não meramente “ilustrativa”, digamos assim.

O que vou deixar aqui, neste breve relato sobre os jogos entre as mulheres que trabalhavam nas casas de divertimento adulto da cidade de São Paulo, é uma pergunta, quase um apelo:

Você conhece alguém que de alguma forma presenciou estes jogos? Conhece alguma dessas mulheres que foram importantes pra modalidade neste período em que a resolução proibitiva do Conselho Nacional dos Desportos afundava no mar das leis absurdas?

Estamos à procura destas e destes personagens para ajudar a preencher as lacunas da história do futebol das mulheres brasileiras.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. A Boca do Luxo nos anos 1970: das páginas policiais para as páginas do esporte amador. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 2, 2020.
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