141.5

A consciência que vem dos gramados: o futebol e as mudanças sociais no Chile

Copa Além da Copa 3 de março de 2021

Em outubro de 2019, a sociedade chilena convulsionou. A faísca foi algo aparentemente pequeno: o aumento de uma tarifa no transporte público da capital Santiago. Mas o que se seguiu mostrou que havia problemas profundos a serem enfrentados no país.

Dos quase 19 milhões de chilenos, estima-se que ao menos 4 milhões tenham ido às ruas em todo o país para protestar pelos mais variados temas: alto custo de vida, baixas aposentadorias, preços elevados de remédios e tratamento de saúde, além de também se posicionarem contra a classe política do Chile como um todo.

Em meio aos protestos, o futebol, e mais especificamente suas torcidas, tiveram um papel importante na mobilização popular. O resultado dessa convulsão social foi a promessa de uma nova Constituição, enterrando de vez o último legado da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

Esse texto é um complemento ao podcast Copa Além da Copa de março de 2021, que tem como tema o esporte no Chile de Pinochet. Para ouvi-lo, basta clicar aqui.

Protestos no Chile em 2019
Protestos no Chile em 2019. Foto: Wikipédia

O que estava por trás dos protestos

É difícil analisar um movimento social tão difuso e sem lideranças claras, ainda mais quando ele é recente. Mas alguns analistas apontam o fato de que o modelo econômico do Chile, bastante excludente por natureza, tenha finalmente chegado a um ponto de saturação irreversível.

Alguns índices positivos que o país apresenta, como o maior PIB per capita da América Latina, escondem na frieza dos números a situação das aposentadorias no país. De acordo com a BBC, 9 entre 10 aposentados no Chile recebem um valor mensal abaixo de um salário mínimo.

O mal-estar que pairava sobre os chilenos parece estar profundamente ligado à desigualdade econômica, num país em que a renda dos 20% mais pobres não chega a 140 dólares por mês. Além disso, o país como um todo mudou muito desde a queda da ditadura: se no final dos anos 80 parecia razoável manter o sistema montado no período Pinochet, em 2019, segundo o El País, dois terços dos chilenos consideravam injusto que quem pudesse pagar mais tivesse acesso a saúde e educação melhores.

Chile 2019
Banner simulando uma placa de sinalização de rota de ônibus da Red, mencionando fatos que geralmente são indicados como a causa dos protestos. Foto: Wikipédia

Como os protestos evoluíram

Como no Brasil em 2013, o gatilho que detonou a convulsão social chilena foram os protestos contra o aumento da tarifa no transporte público. Mas a situação também contou com uma péssima resposta das autoridades logo no início, que permitiu que as manifestações crescessem.

Após o reajuste na passagem entrar em vigor no dia 6 de outubro, estudantes se mobilizaram para evadir o pagamento. À medida em que mais gente pulava a catraca com o passar dos dias, surgiram conflitos entre a população e os carabineros, a polícia ostensiva do Chile. Como reação, o então ministro do Interior, Andrés Chadwick, invocou a Ley de Seguridad del Estado contra quem fosse pego cometendo delitos nessas manifestações.

O problema é que essa lei, embora anterior à ditadura militar, foi muito utilizada para reprimir protestos naquela época, e a memória dos eventos da década de 1970 só fez aumentar o número de pessoas nas ruas.

Além disso, a postura do presidente Sebastián Piñera pareceu desconectada da realidade do país: no dia 18, quando já havia enfrentamento aberto entre a polícia e manifestantes, ele foi flagrado numa pizzaria de um bairro rico de Santiago, como se nada estivesse acontecendo.

A resposta de Piñera seguiu sendo atrapalhada pelos próximos dias, à medida em que incêndios e saques aumentavam. No dia 20, chegou a dizer que o país estava em “guerra”, desconsiderando a alta insatisfação popular e reforçando as medidas repressivas. 

O poder do movimento fez com que o presidente recuasse em apenas dois dias: já no dia 22, ele pediu desculpas e apresentou o que chamou de “Nueva Agenda Social”, uma série de medidas visando reduzir a desigualdade no país.

Mas a situação realmente só foi se acalmar em meados de novembro, quando o governo, num acordo com o Congresso, anunciou que convocaria um plebiscito em 2020 para consultar a população sobre a possibilidade de uma Constituição.

Chile 2019
A maior marcha do Chile, na praça Baquedano e arredores, Santiago, em 25 de outubro. Foto: Wikipédia

A seleção que fica ao lado do povo

A década de 2010 foi tranquilamente a mais vitoriosa da história da seleção chilena. Com uma ótima geração comandada pelo atacante Alexis Sánchez e pelo meio-campista Arturo Vidal, “la roja” conseguiu seus dois primeiros títulos de Copa América: 2015, em casa, e 2016, nos Estados Unidos, derrotando nas duas oportunidades a Argentina de Lionel Messi na final. Além disso, por uma trágica bola na trave na prorrogação não deixou o Brasil pelo caminho nas oitavas de final da Copa do Mundo de 2014.

Prestigiada, a seleção chilena de futebol é hoje um grande motivo de orgulho nacional. Como demonstração de consciência e de respeito à situação do país, ela apoiou abertamente os protestos em novembro de 2019.

A seleção chilena foi convocada e já estava concentrada para enfrentar o Peru em um amistoso, mas devido à situação efervescente dos protestos, decidiu não entrar em campo. Arturo Vidal foi quem se pronunciou: “Nós tomamos a decisão de não jogar o amistoso contra o Peru em meio ao caos social que vive o nosso país. Somos jogadores de futebol, mas antes de tudo, pessoas e cidadãos. Sabemos que representamos um país inteiro e hoje, o Chile tem outras prioridades”, disse.

Atletas importantes da seleção, como Claudio Bravo e Gary Medel, manifestaram-se nas redes sociais a favor do povo e pediram a retirada do exército das ruas. O mesmo fez a goleira Christiane Endler, maior nome do futebol feminino chileno.

Christiane Endler
Christiane Endler em 2019. Foto: Wikipédia

Do campo para as ruas

Arturo Vidal, Claudio Bravo, Gary Medel e Christiane Endler atuam na Europa. Apesar de todo o apoio que deram aos protestos, não chegaram a estar nas ruas.

Muitos jogadores desconhecidos do futebol chileno, porém, marcaram presença. E alguns nomes de relativo destaque se posicionaram em rede nacional.

Após ser o melhor jogador em campo no confronto entre Universidad de Concepción e Antofagasta, Nicolás Maturana aproveitou o acesso ao microfone e disparou contra Piñera. Mais tarde, foi alçado a símbolo da presença dos boleiros nos protestos. Postou em suas redes sociais várias imagens suas nas ruas, em meio ao povo, e também de suas panelas amassadas.

Encorajados por Maturana, diversos outros atletas também começaram a postar nas redes sociais suas fotos nos protestos. O engajamento boleiro foi mais uma grande força ao movimento avassalador chileno.

Nicolás Maturana
Nicolás Maturana. Foto: reprodução Twitter

Da arquibancada para as ruas

O Colo-Colo é o time mais tradicional do Chile. Além de ser a maior torcida, tem já em seu nome uma referência a um cacique Mapuche, o povo nativo chileno que ainda resiste, e atrai para o seu lado as camadas mais populares da sociedade. Nas últimas semanas, torcedores dos rivais aproveitaram a briga contra o rebaixamento da equipe para destilar classismo, racismo e todo tipo de preconceito.

Em janeiro de 2020, os protestos ainda não tinham parado. Pela primeira rodada do Campeonato Chileno, no Estádio Monumental, o Colo-Colo venceu o Palestino por 3 a 0. Saindo do estádio, um jovem torcedor de 22 anos, chamado Jorge Luis Mora, morreu atropelado por um caminhão da polícia.

A morte de Mora serviu como um novo estopim para os protestos. Dessa vez liderados por torcidas organizadas, motins aconteceram por todo o país. Ônibus foram incendiados e prédios públicos destruídos. 

Todas as torcidas organizadas, até mesmo dos principais rivais do Colo-Colo, estiveram nessa onda de protestos. E a Libertadores da América também sentiu um gostinho do que acontecia no Chile, com torcedores da Universidad de Chile chegando a provocar um incêndio no estádio em uma partida em fevereiro contra o Internacional. O pontapé inicial já havia sido adiantado para a tarde devido ao toque de recolher que estava em vigor no país, mas claro que a força do povo seria sentida na competição de clubes mais importante do continente.

Ainda em 2019, uma foto icônica com um torcedor com a camisa do Colo-Colo ao lado de outro com a camisa da Universidad de Chile tinha simbolizado a união popular nos protestos. A partir da morte de Mora, o futebol foi alçado ao protagonismo.

Do campo para a constituinte

O plebiscito realizado em 2020 aprovou a formação de uma nova constituinte para o Chile. O legado de Augusto Pinochet será enterrado também nas leis do país.

Muitas jogadoras de futebol se posicionaram: “A nova constituinte será feminista, ou não será”. Entre elas, a principal representante é Iona Rothfeld. Jogadora do Audax Italiano, ela também é cientista política e presidenta da Associação Nacional de Jogadoras de Futebol.

Os membros da nova constituinte serão escolhidos no dia 11 de abril de 2021. São mais de 3500 candidatos para as 155 vagas. Entre eles, está Iona Rothfeld, a jogadora que também quer marcar um golaço na política.

Fonte: Reprodução Twitter

Iona comemora o fato de que o plebiscito definiu que homens e mulheres serão representados na mesma proporção na constituinte. Ela deseja que as mulheres sejam vistas como sujeitos com direitos, que possam decidir pelos seus corpos, que tenham oportunidades iguais aos homens e que seus futuros não sejam definidos pelo gênero. 

A igualdade dentro do futebol chileno ainda está longe, mas ao menos na constituinte é garantida.

No Chile, o futebol se transformou em força motriz das mudanças políticas graças à postura de atletas e torcedores. Um modelo a ser seguido, sem dúvidas.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Copa Além da Copa

Perfil oficial do Podcast Copa Além da Copa. A história, a geopolítica, a cultura e a arte que envolvem o mundo dos esportes.

Como citar

COPA, Copa Além da. A consciência que vem dos gramados: o futebol e as mudanças sociais no Chile. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 5, 2021.
Leia também:
  • 164.15

    As turnês de Pelé

    Copa Além da Copa
  • 160.12

    História das Copas do Mundo: Quando duas Alemanhas se enfrentaram

    Copa Além da Copa
  • 159.14

    Histórias das Copas do Mundo: o sheikh e a invasão de campo

    Copa Além da Copa