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A Copa de 1970 no cinema e nos estudos acadêmicos (parte 2)

Depois de tratamos dos principais acontecimentos relacionados à efeméride futebolística – o cinquentenário de comemoração do tricampeonato mundial de 1970 – e de reconstituir alguns dos episódios mais controvertidos dessa Copa do Mundo, disputada no México, vamos a seguir abordar sua repercussão no cinema e sua incidência nos estudos acadêmicos.

A propagação desse imaginário extrapolou o ambiente cotidiano e chegou à produção do cinema brasileiro. Veja-se, por exemplo, a realização do filme Pra frente, Brasil, exibido nas salas de cinema do país no ano de 1983, sob o título-mote da marchinha composta por Miguel Gustavo. O filme de Roberto Farias, que fora presidente da Embrafilme nos anos 1970, exibia, através de imagens fortes e até chocantes, o contraste entre a tortura sistêmica praticada nos porões da ditadura e a euforia da comemoração do tricampeonato pelo povo nas ruas.

É possível dizer que a cristalização da dualidade nessa narrativa fílmica acabou por reforçar uma leitura maniqueísta da “função” da Copa na sociedade brasileira. Tal contraponto passou a modular as percepções do evento e tornou-se a visão mais reiterada do período. O clichê converteu-se ele próprio numa representação estereotipada do Tri, base para pensar as relações mais amplas entre futebol e política, não só no Brasil, mas na Europa e no mundo como um todo. Em termos internacionais, isto não era novidade, desde a consagração deste vínculo nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, quando a relação de Hitler com os esportes foi enfatizada, além de estetizada nos cinemas com a película de Leni Riefenstahl (Olympia).

No Brasil, guardadas as devidas proporções, a repercussão cinematográfica de Pra frente, Brasil é um indício do lugar dessa competição no imaginário fílmico e coletivo nacional. Na sequência, já nos anos 2000, o cinema brasileiro voltou a abordar o assunto, mas soube propor uma leitura menos engessada, por assim dizer, do futebol em face do cotidiano nacional do final dos anos 1960.

O drama O dia em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger, oferece uma ótica lírica da vivência da ditadura militar, com o pano de fundo do Mundial de 1970. As partidas da Seleção no México se desenrolam em meio a situações extraordinárias que acontecem naquele dia a dia de uma pequena cidade brasileira. O olhar da película, centrado numa criança cujos pais, militantes políticos de esquerda, desaparecem de maneira enigmática de seu horizonte afetivo, levados pela força policial, humaniza a compreensão daquele período, sem deixar de aportar uma visão crítica do mesmo.

Se a opinião pública e o cinema veem-se envoltos em controvérsias, sempre que se trata de rememorar a Copa de 1970, a universidade e seus estudos acadêmicos também procuraram se debruçar, explicar e compreender o evento e seu significado histórico. A Antropologia social foi pioneira nesse sentido e já em 1982, na coletânea de ensaios Universo do futebol, organizada por Roberto DaMatta, o antropólogo Arno Vogel dedica-se a este Mundial no trabalho ensaístico intitulado “O momento feliz: reflexões sobre o futebol e o ethos nacional”.

Inspirado em título que remonta a um poema de Drummond – “O momento feliz” –, Vogel examina o que entende por comportamento ritualístico na sociedade urbana brasileira e elege o futebol como objeto de estudo científico. Entre outras manifestações, os esportes modernos teriam a capacidade de revelar estruturas, hierarquias e identidades da communitas e do meio social em questão.

O contexto de publicação do ensaio coincidiu com a Copa de 1982, quando ainda vigia o regime militar, ainda que em processo de reabertura. O antropólogo seleciona duas edições do Mundial para uma comparação estrutural: 1950 e 1970. A primeira disputa é vivenciada como uma “tragédia”, com a condenação moral dos jogadores ante uma derrota eivada de sentimentos de inferioridade, enquanto a segunda emerge como uma espécie de redenção e de expiação da anterior.

Se o drama da perda do Mundial em 1950 colocava em xeque uma série de valores depreciativos da identidade nacional, a Copa de 1970 teria seu elemento dramático redentor lançado na direção oposta. A agonia é sucedida pela glória, e o ritual funerário de meados do século XX torna-se, vinte anos depois, uma celebração festiva e carnavalesca, nos antípodas da experiência anterior. Sob as lentes duais do estruturalismo, típico da linguagem antropológica da época, estava-se em face do par funeral versus carnaval. Cada Copa era capaz de encarnar um destes polos, numa narrativa pendular que ia do ceticismo ao ufanismo, do vexame ao orgulho, da desonra coletiva à apoteose nacional.

Não é o caso aqui de examinar uma a uma todas as versões acadêmicas produzidas até a atualidade sobre a Copa de 1970. Depois da pioneira abordagem de Arno Vogel, as ciências sociais nos anos 2000 assistiram a uma nova série de pesquisas sobre o assunto. Arrolaremos apenas alguns dos estudos principais, e ainda assim numa amostra restrita a três casos.

Em 2004, o pesquisador Antônio Jorge Soares começa a construir um argumento que será levado adiante em artigos publicados nos anos seguintes. Grosso modo, em “A invenção do futebol-arte”, o autor, numa parceria e numa interlocução com outros colegas da Academia, argumenta que a construção da memória da Copa de 1970, sobretudo a partir dos discursos jornalísticos veiculados pela imprensa, fundamenta-se em uma série de “esquecimentos” e “silêncios” sobre aquele torneio, cuja funcionalidade deveria ser examinada.

O modus operandi da imprensa, criadora ela própria de elos identitários e geracionais em torno da Seleção, consiste na promoção de mecanismos memorialísticos de explicação para a sucessão de vitórias e derrotas, fracassos e êxitos no encadeamento retórico das Copas, a cada quadriênio. O modo, então, de expor os fatos e acontecimentos atinentes ao torneio encadeia-se numa trama cíclica e hermenêutica, sendo atualizada de um evento a outro continuamente. Via de regra, remete-se a certa tradição interpretativa que, por sua vez, aciona a memória acerca do chamado “futebol-arte”, em contraposição ao “futebol-força”.

No caso específico da Copa de 1970, Antônio Jorge demonstra como as publicações dos jornais e das revistas durante a realização do torneio acentuavam a necessidade de ênfase na preparação física dos atletas. Ou seja, à época da sua realização, o pêndulo discursivo recaía sobre o “futebol-força”, uma vez que era a principal carência identificada no desempenho do selecionado na edição passada, em 1966. Para evitar novo fiasco, seria necessário não repetir tais erros quatro anos depois. Conforme observa o autor, os relatos jornalísticos contemporâneos ao Mundial preconizavam, pois, a importância da disciplina, da racionalidade e do treinamento. A investigação releva, no entanto, de que maneira, na sequência do evento, tais versões são secundarizadas e, no limite, “esquecidas”, senão pelos mesmos jornalistas, ao menos pelos mesmos órgãos de imprensa.

Selo da Copa de 1970.

A mudança verifica-se em função do resultado – a conquista do Tri –, capaz de afirmar o orgulho nacional e a exclusividade de ser o “melhor” e o “maior” do mundo. Os dados levantados são colhidos de maneira regular em 1998 e em 2002, dois anos de Mundial, quando as remissões e retrospectivas da imprensa comparam a Copa em questão com edições passadas. As narrativas posteriores sobre o evento e seus protagonistas, alguns deles ainda vivos, dão preponderância ao “futebol-arte”, em detrimento do futebol-científico. O termo “ciência”, uma categoria nativa, é visto aqui como equivalente à “força”. Assim, o método científico acaba por ser ressignificado, em favor da dicção “artística”. Esta categoria jornalística, obviamente, estaria mais associada a virtudes como individualidade e talento e ao apelo romântico de identificação com a mitologia nacional.

Depois do trabalho de Soares, podemos recorrer a um segundo exemplo e mencionar a tese de doutorado de Lívia Magalhães Gonçalves, representante da nova geração de pesquisadores dedicados aos estudos do futebol. Trata-se do doutoramento, defendido pela autora no Instituto de História da UFF, que resultou em livro publicado no ano de 2014, sob o título de: Com a taça nas mãos – sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina. Lívia filia-se à historiografia uffiana de pesquisas sobre a ditadura no país e, para tanto, analisa o período à luz da história política do futebol.

Enquanto Arno Vogel cotejava a Copa de 1970 com a de 1950, e Antônio Jorge valia-se de periódicos publicados por ocasião das Copas de 1998 e 2002 para lançar luz sobre a memória do Mundial do México, a estratégia de Lívia Gonçalves na mesma direção, mas em outro sentido. A historiadora coloca-se de forma prospectiva e utiliza-se para tanto de fontes primárias, como os arquivos da ditadura no Brasil e na Argentina. Compara, portanto, a edição de 1970 com outra igualmente polêmica, a de 1978, ocorrida no próprio país platino, que vivia também sob o espectro ditatorial.

Assim, ao invés de esquivar-se das dicotomias usuais de abordagem do tema, como diversão versus seriedade, manipulação versus alienação, opressão versus resistência, ou ainda futebol versus política, a Autora vai de encontro a tratamentos reducionistas. Procura reconstituir a ambiência histórica em toda a sua complexidade e põe em cena os conflitos de memória e os contextos de autoritarismo no Brasil de Médici vis-à-vis da Argentina de Jorge Videla, no decorrer dos anos 1970.

O terceiro e último trabalho a aludir aqui é de autoria de Denaldo Alchorne de Souza, fruto de um doutorado na PUC-SP e publicado em livro no ano de 2018: Pra frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha – a dialética da ordem e da desordem (1950-1983). Como se depreende do próprio título, a Copa de 1970 é enquadrada na diacronia de longa duração, em um período que vai dos anos 1950 ao decênio de 1980. Se à primeira vista o Mundial em questão parece não ocupar um lugar exclusivo no estudo, a terceira parte inteira da obra dedica-se a examinar a relação entre futebol e regime militar, ideologia oficial e ação política no Brasil.

Nesta terceira parte, sua temporalidade também é ampla e vai da conjuntura do golpe de 1964 até a distensão de 1983, ano igualmente do falecimento de Garrincha. No primeiro quinquênio da ditadura (1964-1969), trata-se de enquadrar o lugar de “mitos populares”, como os bicampeões mundiais Garrincha e Pelé, com avanço no exame da derrota no Mundial de 1966 e da reconfiguração do elenco e das injunções políticas para 1970. Ao invés de focar na edição do México em sua singularidade, a trama dilata-se de 1969 a 1983, auferindo os efeitos daquela conquista na vida social brasileira no decurso da década seguinte.

Assim como Lívia Gonçalves, o historiador Denaldo de Souza articula os campos esportivo e político todo o tempo em sua análise. Se a primeira se vale da via comparada, tendo a Argentina de 1978 como duo estrutural, o segundo atém-se à cronologia da historiografia nacional. O debate interno esmiúça a estrutura e a esfera dos esportes, notadamente a intervenção militar das entidades esportivas (CND, CBD) e sua ingerência sobre os postos de comando da Seleção Brasileira.

Feito o balanço retrospectivo acima, vale fechar concluindo que é consenso que a Copa de 1970 permanece como um torneio especial entre todas as mais de vinte edições já realizadas do Mundial, especialmente para o Brasil, em virtudes das circunstâncias políticas da conquista, da qualidade tático-técnica dos jogadores brasileiros e do arrebatamento causado em nível mundial com o tricampeonato. Se existem interpretações de senso-comum e análises científicas sobre o mesmo, se vozes oficiais e jornalísticas já se pronunciaram, vale a pena conceder espaço para “ouvir contar” os relatos dos próprios protagonistas, que participaram e testemunharam aqueles acontecimentos, hoje distantes meio século de nossa realidade.

No início da década de 2010, em meio à efervescência dos preparativos para o Mundial de 2014 no Brasil, estes atletas aceitaram conceder seus depoimentos a um projeto coletivo de pesquisa, coordenado pelo Museu do Futebol e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). O projeto foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e compreendeu um total de 150 horas de gravação, com mais de cinquenta jogadores que estiveram presentes em Copas disputadas entre 1954 e 1982.

O objetivo foi constituir um banco de entrevistas, para consulta pública, disponível no Centro de Referência do Futebol Brasil, inaugurado em 2013 nas dependências do Museu do Futebol, no estádio do Pacaembu. Graças à anuência da Associação de Ex-Atletas da Seleção, os futebolistas foram contatados e gravaram entrevistas – que variaram de uma a cinco horas de duração – no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte, entre 2011 e 2012. A estrutura das gravações passou por um período preparatório de levantamento de dados e de montagem do roteiro. A metodologia empregada para as entrevistas foi a da História Oral, método que transforma fontes orais em documento escrito – depois da gravação, ele é transcrito e editora. A técnica permite a análise do passado, numa interface temática e conceitual da história com a memória.

Das dezenas de entrevistas gravadas, selecionamos para este livro aquelas da Copa de 1970, pela importância acima destacada. A seleção englobou nove atletas, que narram nos depoimentos suas lembranças e suas versões dos acontecimentos, alguns deles já mencionados neste texto, outros ainda desconhecidos ou não conhecidos daquele ponto de vista. Para o projeto, combinaram-se duas modalidades da História Oral – a história de vida e a história temática. Ou seja, o fio condutor das perguntas seguiu um critério cronológico do percurso biográfico do atleta e teve por finalidade chegar ao ponto central da entrevista, com a versão dos depoentes sobre a vivência do Mundial no ano de 1970, visto e reconstruído décadas depois.

A proposta não se propõe ser um projeto com intenções teóricas ou com análises aprofundadas. Sabe-se que o debate sobre o papel da memória na reconstituição histórica tem sido alvo de várias abordagens nos últimos anos. A interface muitas vezes é associada a outras referências conceituais, como os “lugares de memória” (Pierre Nora), os “enquadramentos de memória” (Michel Pollak) ou ainda as “artes da memória” (Francis Yates). Se este é um flanco promissor a ser explorado na reflexão acerca da esfera esportiva, o propósito da pesquisa que coordenei foi mais modesto, embora não menos importante, pois teve em vista constituir uma fonte primária para consulta.

Com ele, visou-se servir de referência a estudiosos que queiram voltar ao tema da Copa e lançar mão dos relatos enfeixados. Entende-se que tais relatos, por sua vez, trazem uma visão de conjunto dialógica e intersubjetiva, capaz de suscitar novos ângulos e pontos de vista sobre o evento em questão. Para o público mais amplo, a exemplo de um leitor não acadêmico, mas aficionado do futebol, o projeto das entrevistas almeja oferecer uma experiência prazerosa, que guarde o frescor das reminiscências daqueles que entraram em campo e compuseram essa bela página da história do futebol brasileiro. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. A Copa de 1970 no cinema e nos estudos acadêmicos (parte 2). Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 27, 2020.
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