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A crise chilena e o futebol

Sidney Dupeyrat de Santana 16 de dezembro de 2019

Em 18 de outubro de 2019, o Chile mudou. O país andino, considerado por analistas e pelo próprio presidente Sebastián Piñera um oásis em meio a uma América Latina convulsionada, viu o início da explosão social que transformou profundamente a rotina dos chilenos e promete alterar a forma de se fazer política e o modelo social da nação. 

O anúncio por parte do governo do aumento da tarifa do metrô de Santiago de 800 para 830 pesos foi o estopim para que estudantes – que já haviam sido protagonistas de imensos protestos em 2006 e 2011 – iniciassem uma nova insurreição popular. Tomaram as ruas e estações de metrô, pularam as catracas e convidaram os passageiros do transporte público a não pagar as passagens. O movimento rapidamente ganhou a sociedade chilena, e pouco depois os protestos já não eram somente contra o aumento no metrô da capital. As demandas eram agora também por mudanças no sistema de pensões gerido pelas Administradoras de Fundos de Pensões (AFP), melhorias na saúde e educação públicas e também pela criação de uma nova constituição que substitua a atual – feita em 1980, ainda durante a ditadura de Augusto Pinochet.

Pouco mais de um mês e meio após o início das manifestações, 23 pessoas morreram, mais de 200 perderam a visão e muitos outros ficaram gravemente feridos, foram torturados ou violados. Aconteceram saques e depredações, o aumento na tarifa do metrô foi cancelado, o país experimentou a decretação de estado de emergência e toque de recolher, diversos ministros caíram, um plebiscito foi anunciado para abril de 2020 para questionar se a população está de acordo com a formulação de uma nova constituição e os campeonatos locais de futebol não voltaram a ser disputados – a primeira final única da história da Copa Libertadores, que seria realizada em Santiago, acabou sendo transferida para Lima. Apesar de algumas concessões do governo, os protestos seguiram – e seguem – grandes nas ruas chilenas, o que obrigou a Associação Nacional de Futebol Profissional (ANFP), na sexta-feira do dia 29 de novembro, a dar por encerrada a temporada do futebol chileno antes do término das competições.

A última rodada da primeira divisão disputada foi a vigésima quarta, que iniciou no dia 13/10 com uma vitória do Universidad Concepción sobre o O’Higgins por 2 a 1 e terminou em 17/10 com o Everton batendo o Curicó Unido e a Universidad de Chile superando o Deportes Iquique pelo mesmo placar. Um dia depois, o movimento iniciado alguns dias antes pelos estudantes na capital chilena se espalhou por Santiago e pelo país, o estado de emergência e o toque de recolher no período noturno foram decretados e os torneios locais, suspensos. Com o ápice dos protestos e milhares de pessoas presentes nas ruas no fim de semana e nos dias seguintes, não era possível a realização das partidas. As vias e praças das cidades chilenas foram tomadas por uma multidão, e chamou a atenção as cenas de bandeiras de clubes rivais tremulando lado a lado nas manifestações. Torcedores que nunca dividem a mesma arquibancada estavam ali, compartilhando o espaço público em busca de algo maior, além do futebol.

Protestos no Chile. Foto: Carlos Vera/Colectivo2+.

Barras: em contato com os pontos mais cruéis, mas também com a esperança

Daniel “Baracu”, professor de história e integrante da Los de Abajo Antifascista, explica que praticamente todas as barras-bravas se somaram aos protestos ainda nos primeiros dias. As torcidas foram um importante fator de organização política para os jovens das barras, que em sua maioria são provenientes das comunidades e periferias. As hinchadas estimularam seus integrantes a estarem presentes nas manifestações, e isso não foi algo exclusivo do movimento desse ano.

“Após o fim da ditadura, as barras substituíram as juventudes políticas; os jovens encontraram nelas um espaço de expressão e demonstração de suas frustrações. As barras têm um papel social muito grande na juventude chilena, pois estão muito presentes nas poblaciones, em lugares onde às vezes até o Estado não chega. As torcidas estão em contato com os pontos mais cruéis da sociedade chilena, como o narcotráfico e a violência, mas também com a esperança”, explica Daniel. Nesse contexto, as barras são vitais para oferecer a essa juventude um sentido de pertencimento que só ali é encontrado. Participar ativamente de uma torcida organizada é, também, ganhar senso de participação, cooperação, solidariedade e autogestão. 

Nos protestos de 2019 no Chile, as torcidas foram vistas envolvidas em manifestações contra a violência de gênero, as AFP e a violação de direitos humanos por parte da polícia e do Estado. Ainda que não exista um acordo formal de união feito pelas lideranças das barras, Daniel esclarece que distintos setores das torcidas fizeram um “pacto de não agressão” com as dos clubes rivais, para que fosse possível a união dos diferentes torcedores em prol de um objetivo em comum. Camisetas do Colo Colo, Universidad do Chile, Universidad Católica e outras equipes são vistas juntas nas ruas, incluindo nos momentos de maior dificuldade.

Manifestante com a camisa da Universidad de Chile. Foto: Colectivo +2/Carlos Vera M.

A atuação dos dirigentes ao longo da crise foi bastante dúbia. Com o início dos protestos no dia 18 os campeonatos foram interrompidos, e a continuidade das manifestações fez com que  o retorno do futebol fosse sucessivamente adiado. A posição oficial dos clubes foi favorável às reivindicações populares, mas poucas vezes esse posicionamento saiu da mera retórica. Uma notável exceção foram as audiências populares organizadas pelo Colo Colo, que abriu as portas de seu estádio para que os cidadãos discutissem soluções para a crise social chilena.

Tentativa de retorno

Os líderes das instituições, em sua maioria empresários que comandam as sociedades anônimas donas dos clubes de futebol, não possuem legitimidade junto à sociedade para cobrar algo, afirma Daniel. No discurso, corroboravam as reivindicações do povo e apoiavam a continuidade do campeonato, desde que com as devidas condições de segurança para todos os envolvidos. No entanto, a situação mudou com a tentativa de retomada do campeonato em 22 de novembro.

Na pequena cidade de El Salvador, localizada no deserto do Atacama, o Cobresal venceu o Unión Española por 3 a 2, no que foi a primeira partida do Campeonato Chileno disputada desde o início dos protestos. Na mesma data, em Santiago, o Unión La Calera e o Deportes Iquique empatavam em 0 a 0 quando integrantes da torcida organizada colo-colina Garra Blanca conseguiram entrar no estádio para arremessar objetos no gramado; o que acabou gerando a suspensão dessa e de todas as partidas posteriores.

A partir dos acontecimentos ocorridos no estádio Bicentenário La Florida, um número cada vez maior de clubes, nem sempre imbuídos das mais nobres intenções, passou a defender a suspensão dos torneios. Muitas diretorias viram no término do ano futebolístico uma oportunidade de garantir alguma vantagem para o ano seguinte, sem correr o risco de perdê-la no campo. Ao Colo Colo, por exemplo, convinha dar o campeonato por encerrado pois isso significaria que o Cacique herdaria a segunda vaga chilena na fase de grupos da Copa Libertadores. O Palestino, que perderia a chance de alcançar o Colo Colo, ao menos garantiria o posto na pré-Libertadores. Unión La Calera, Coquimbo Unido, Huachipato e Audax Italiano teriam presença confirmada na Copa Sul- Americana, enquanto a Universidad de Chile garantiria terminar o ano fora da zona de rebaixamento e assim eliminaria qualquer possibilidade de disputar a segunda divisão no próximo ano. A posição contraditória de alguns dirigentes pode ser exemplificada pela opinião do presidente da La U, José Luis Navarrete, que foi favorável ao término do campeonato nacional e ao mesmo tempo deseja que a Copa Chile seja disputada – para que seu clube ainda tenha chances de classificação à próxima Copa Libertadores.

Em 29 de novembro, foi finalmente decidido em assembleia da Associação Nacional de Futebol Profissional (ANFP) o encerramento de todos os campeonatos no Chile. A Universidad Católica, líder com folgas, foi declarada campeã da divisão principal e as vagas nas competições internacionais serão distribuídas de acordo com a tabela de classificação do campeonato. Foi também definido num primeiro momento que não haveria rebaixamento – o que beneficia as equipes que frequentavam a parte de baixo da tabela – e acessos – o que revoltou o tradicional Santiago Wanderers, que liderava a Primeira B e exigiu disputar a primeira divisão em 2020. Posteriormente a segunda decisão foi revista.

Para Daniel e muitos compatriotas, a paralisação foi uma vitória do povo chileno, pois o cancelamento das competições impede que o futebol seja usado pelo governo como fator de distração e desmobilização. Muitos outros possuem a mesma opinião de Cristian Barreras, repórter do jornal La tercera, que acredita que o futebol faria com que o movimento social ganhasse ainda mais força. De acordo com o jornalista, jogadores e torcedores poderiam ser importantes “vitrines” das manifestações, o que daria maior potência ao descontentamento do povo chileno com o governo e as condições de vida. Ainda segundo Cristian, havia condições para se jogar futebol no país, e os campeonatos só foram suspensos pelos atos e ameaças de pequenos grupos de algumas barras.

É verdade que outras indústrias como a dos shows musicais, espetáculos e exibições de cinema não foram interrompidas. No entanto, o futebol é um setor mais sensível e complexo, que envolve multidões passionais e demanda maiores preocupações com a segurança. O fato é que a paralisação do futebol prejudicou milhares de trabalhadores que dependem do esporte para sobreviver – são jogadores, funcionários de clubes e vendedores informais que tiram seu sustento da rotina de jogos. Sem partidas, muitos deixaram de ganhar dinheiro e estão correndo o risco até de ter que deixar suas casas.

Se o Chile vive um momento de instabilidade em busca de melhorias sociais para escapar de um presente ainda ligado a um cruel passado ditatorial, a situação do futebol no país para 2020 também é incerta. A fórmula de disputa e a quantidade de integrantes de cada divisão do campeonato nacional só agora parece estar se desenhando – após clubes da “Primeira B” impedidos de conquistar o acesso pela decisão da ANFP prometerem recorrer à justiça, a associação mudou de posicionamento no dia  6 de dezembro e oficializou a volta do Wanderers à elite. Determinou um torneio entre os outros nove melhor classificados para definir a segunda vaga  – e ainda não se sabe o que será feito com a vaga na Libertadores prevista para o campeão da Copa Chile – o torneio foi suspenso na fase semifinal, quando estava sendo disputado por Colo Colo, Universidad Católica, Universidad de Chile e Unión Española.

Os clubes, nesse contexto, vivem um momento adverso: perderam receitas de bilheteria com o cancelamento das rodadas e a alta do dólar significa maiores gastos com salários. Muitos dizem que a instabilidade fará com que as instituições reduzam seus orçamentos, irá afugentar jogadores estrangeiros e estimulará os bons valores locais a deixar o país. 2020 tende a ser um ano complexo para o país; e a esperança é que o futebol chileno – entre ser um fator de desmobilização ou um meio de organização e promoção das manifestações – possa no futuro se aproveitar das vitórias sociais que podem ser conquistadas através da luta popular no Chile.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Sidney Dupeyrat de Santana

Sidney Dupeyrat de Santana é natural do Rio de Janeiro, formado em Comunicação Social pela UFRJ e pós-graduado em Fotografia e Imagem pela IUPERJ-UCAM. Em 2018 participou da exposição coletiva “O que eu vejo”, com curadoria de Rogério Reis; foi pré-selecionado na convocatória do Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco 2017 e junto ao Inventivo Coletivo venceu  o edital 2018/2019 do CCJF/RJ com a exposição “100 anos Dela” - realizada entre novembro de 2018 e janeiro de 2019. 

Como citar

SANTANA, Sidney Dupeyrat de. A crise chilena e o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 126, n. 18, 2019.
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