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A democracia em jogo: o W.O. como uma jogada estratégica

Fidel Machado 31 de outubro de 2018

Atravessado e inquieto com as discussões, as problemáticas e os movimentos pertinentes ao contexto que a eleição para presidente do Brasil vem causando, sou tomado por um saudosismo dos tempos de atleta e da adrenalina dos jogos. Associada a essa lembrança, me recordo da frustração causada pelas partidas vencidas por W.O. A vitória, nesse caso, possuía um valor diferenciado. Não era disputada e não havia o enfrentamento direto. A disputa era inviabilizada pela ausência do adversário. O embate e o conflito eram comprometidos pela lacuna presente que impossibilitava o jogar.

Farei uso desse mote para propor uma discussão acerca da necessidade da presença, do conflito e do encontro para a existência do jogar. O esporte, mais precisamente os esportes coletivos, servirão como lugar profícuo para a reflexão dada a necessidade da presença do adversário. Contudo, o jogo ao qual me refiro nesse texto foi a eleição para presidente do Brasil em que, nessa partida específica, estava e está em disputa a frágil democracia. Corremos um sério risco desse jogo findar a possibilidade de manutenção do campeonato democrático. O risco pode ser expresso quando o candidato Jair Messias Bolsonaro optou, estrategicamente, pelo W.O. como mecanismo para a vitória. Uma inversão esdrúxula de um princípio esportivo básico. Ademais, o mesmo presidenciável e hoje presidente eleito utilizou como potencializador do treinamento o caixa dois que aqui, para não sair do contexto esportivo, compararei ao dopping. Tais comportamentos são passíveis de punição severa e podem culminar na desqualificação do atleta e na saída da própria equipe da competição.

O jogo da democracia foi decidido sem jogo, de maneira escusa e autoritária. As jogadas foram construídas por fintas e corta luzes, redundantemente, falsos que visaram ludibriar não só o adversário, mas, sobretudo, o público. Uma incoerência ilógica, pois nesse cenário, o W.O tornou-se estratégia para se vencer o jogo. A ausência foi, deliberadamente, afirmada. Uma parcela assustadora da plateia ovacionou e aplaudiu sem saber que a permanência no próprio estádio está ameaçada e pode resultar no aumento absurdo no preço dos ingressos. Além disso, muitos torcedores fanáticos permanecem a clamar por um pulso firme, uma arbitragem rigorosa e um policiamento ostensivo nos estádios, pois a família tradicional brasileira prima por um Deus absoluto e por segurança para manter a ordem e os bons costumes. Família essa que também vocifera o ódio contra os outros tipos de família e, uma boa parcela, contraditoriamente, corrobora com o armamento da população.

Em Brasília, os eleitores do candidato eleito à presidência da República, Jair Bolsonaro (PSL), concentram a comemoração pela vitória na Esplanada dos Ministérios. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Na contramão desse cenário, outros torcedores reivindicaram o início da partida. Estavam ávidos pelo jogo, pelo encontro, pelo entrar em campo ou em quadra. Estavam munidos de cores, de falas e de música. A equipe, por sua vez, abriu mão do mando de campo e anunciou que poderia jogar no departamento médico ou na casa do adversário, pois a primazia neste setor é o jogo, é a possibilidade de jogar. É a consideração à torcida, pois é o respeito à democracia que está em jogo.

O esporte, enquanto prática entre corpos, não se dá somente nos bastidores e reduzi-lo a isso seria ceifar a potência da tensão do movimento e da estética pertinente à prática. Retirar do jogo a dimensão da presença e do conflito na dinâmica da partida é despotencializar a criação que só se dá na presença do adversário. Eximir-se é impossibilitar o jogo. É desrespeitar o adversário, é desconsiderar e deslegitimar um contrato ético. É jogar um jogo moral e individualmente produzido. É uma afronta. É, inclusive, descaracterizar o papel do espetáculo.

É na presença dos corpos que a abertura ao imprevisível acontece. Sou um defensor da potência do encontro e do conflito de interesses manifestos em jogadas, gestos, dribles e fintas no ato de jogar. Jogar o jogo é estar permeável às investidas surpreendentes do adversário, é a certeza da dúvida e da tensão (in)constante. É o movimento de recriação ininterrupta durante a partida. É possibilitar um movimento a cada estratégia reinventada na dinâmica conflituosa do jogo.

O jogar traz consigo o elemento do impertinente, do imprevisível e do imponderável que muito nos ensina sobre a existência e a vida. Ademais, versa sobre os movimentos que estamos vivendo na sociedade contemporânea em que as identidades e os valores morais – dispositivos controladores –  não são mais suficientes para explicar os corpos, mas permanecem, incisivamente, sendo reivindicados. Desse modo, o imponderável e o imprevisível dialogam diretamente com a existência, com as dúvidas, com a insegurança de nos percebermos não mais ancorados em muletas metafísicas, mas construtores e artistas do nosso próprio viver. Tais características aqui elencadas correlacionam-se em alguma medida com a dimensão inconstante e porque não dizer caótica da vida. O controle passa a ser, constantemente, negociado, borrado e incessantemente revisitado. Uma ética do “querer ser” dissonante de uma moral que tem como definição o “dever ser” assim como pensou o filósofo francês Michel Maffesoli.

Bolsonaro após votar. O candidato foi eleito sem ir aos debates do segundo turno. Foto: Tânia Regô/Agência Brasil.

O jogar se constitui por essas negociações, por esses ajustes, por essas adaptações e por esses cont(r)atos. A dinâmica do conflito que se instaura entre o objetivo do jogo e os interesses dos adversários pode possibilitar belos e desconcertantes movimentos. Pode propiciar a invenção de jogadas até então não pensadas. O elemento de potência reside nessa dinâmica: na arte do encontro, do contato. Na (re)construção, frequentemente, revisitada e, eticamente, ressignificada. Na compreensão da dinâmica do devir, ou melhor, da vida em movimento. Uma busca de um diálogo constante e não somente um uso momentâneo e utilitário de alguns discursos e práticas subsidiadas por renda não declarada.

Pudera o sistema eleitoral ser semelhante às disputas e aos campeonatos esportivos. O não comparecimento resultaria em derrota e, muitas vezes, em exclusão da competição. Assim, talvez, não estivéssemos a viver na iminência da interdição do jogo da democracia.

A utilização do W.O. como estratégia denota um descaso, um jogo não jogado. Será que, democraticamente, apitamos o término da democracia? Acreditava que a partida estaria findada no momento da divulgação do resultado de todas as urnas, errei. Acabou somente o primeiro tempo. Temos um pequeno momento para reorganizar e voltar com mais pressão. Continuar o jogo de corpo a corpo e, quando preciso, tomar as ruas e enfrentar uma árdua partida. Afinal, aqui: “ninguém solta a mão de ninguém”.

Joguemos…

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. A democracia em jogo: o W.O. como uma jogada estratégica. Ludopédio, São Paulo, v. 112, n. 28, 2018.
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