Em um recente documentário produzido pelo CPDOC e em parceria com o Museu do Futebol, sob direção de Bernardo Buarque de Hollanda, Thaís Blank e Isabella Jannotti, intitulado Territórios do Torcer o fundador da Torcida Organiza Gaviões da Fiel, Chico Malfitani, lembra que o contexto de sua criação em plena ditadura militar, em 1969, os Gaviões tinham como objetivo fiscalizar o clube. Para isso, a torcida teria que ter força, ser independente, enfim, ser uma força fiscalizadora já que a grandeza do clube são seus torcedores. Naquele momento, estava no poder do clube o lendário Wadih Helu, que se utilizava politicamente do Corinthians para constantemente se reeleger politicamente.

Também surgiu no Corinthians, anos 80, um movimento chamado Democracia Corinthiana. Sob o slogan “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”, o movimento proporcionou aos atletas uma participação ativa nas decisões do clube fato que gerou uma autogestão do time. Naquela época a relação política entre a Democracia Corinthiana, por meio de seus líderes Sócrates, Casagrande e Wladimir também se aproximava da ação da Gaviões da Fiel. Em 1979, a Gaviões coloca no meio de sua torcida uma faixa: “Anistia ampla, geral e irrestrita“. Esse é um dos principais exemplos que aparecem para falar da politização da torcida do Corinthians. No entanto, para o pesquisador Flávio de Campos, em entrevista ao caderno Aliás do Estadão afirmou que a torcida não tinha conhecimento e tampouco entendia o conteúdo daquela faixa que havia sido idealizada por dois integrantes da Gaviões, Chico Malfitani e Antônio Carlos Fon.

O tempo passou e desde os anos 90, as Torcidas Organizadas vem sendo alvo de várias sanções, inclusive da Justiça, após confrontos que deixaram diversas vítimas, algumas fatais. Um dos casos mais emblemáticos ficou conhecido como A Batalha do Pacaembu e envolveu as torcidas do São Paulo Futebol Clube (Independente) e Sociedade Esportiva Palmeiras (Mancha Verde). Naquela ocasião o jovem promotor de Justiça Fernando Capez foi um dos mais ferrenhos defensores pela extinção e punição das Torcidas Organizadas.

Se tomarmos o futebol e o seu universo como um espaço político, sendo os jogadores os principais agentes desse esporte, eles deveriam ser uma voz atuante para reivindicar melhorias na profissão. Ser atuante aqui é ter consciência de que suas ações são um ato político frente as instâncias que controlam o futebol (seja em relação ao clube, federação e/ou confederação).

No entanto, foi somente em 2013, mais especificamente em 30 de setembro, que surgiu um movimento entre, principalmente, os jogadores chamando Bom Senso FC. Com protestos promovidos em várias partidas oficiais do Campeonato Brasileiro, o movimento pretendeu chamar a atenção da opinião pública a respeito da situação dos atletas nos clubes de futebol. A primeira conquista efetiva do movimento foi a garantia dos 30 dias de férias.

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Torcedor corintiano cobre o rosto com o símbolo do clube. Foto: Fábio Soares / futeboldecampo.net.

Sendo, portanto, o futebol um espaço para que as pessoas possam se expressar, por direitos garantidos na Constituição, chegamos ao Campeonato Paulista de 2016. Na quinta-feira, 11 de fevereiro, jogavam Corinthians e Capivariano, na Arena Corinthians, partida iniciada às 21h. A partida, válida pela terceira rodada desse campeonato se tornou alvo de uma ação de censura, mediante violência perpetrada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, quando os torcedores da Gaviões da Fiel estenderam, no decorrer do jogo, três faixas com mensagens de protesto:

1) “Jogo às 22h também merece punição”;

2) “Rede Globo, o Corinthians não é seu quintal”;

3) “Cadê as contas do estádio?”

Após o episódio, que foi extensamente relatado pela mídia, a referida torcida emitiu uma nota oficial questionando a ação policial e destacou que as faixas não violavam o “Art. 13-A, inciso IV, do Estatuto de Defesa do Torcedor, é proibido “portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo”.

Também criticaram a análise do jornalista Antero Greco, do jornal O Estado de S. Paulo e ESPN-Brasil, que afirmou ter um pé atrás com ação espontânea da torcida até porque os horários nesse padrão das 22h estão no futebol brasileiro há muito tempo. A Gaviões, por sua vez, se defendeu dizendo que reclama do horário há muito tempo. O fato, no entanto, é que essa reclamação tomou conta do estádio somente agora e não aparece em outras torcidas, embora, também devem fazer críticas ao horário dessas partidas.

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Torcida Gaviões da Fiel. Foto: Fábio Soares / futeboldecampo.net.

A nota oficial da Gaviões termina assim:

“[…] os Gaviões da Fiel Torcida vêm a público reafirmar todas as recentes posturas críticas à falta de transparência por parte da diretoria do Corinthians, aos mandos e desmandos da FPF, e ao infeliz banco de negócios futebolísticos, que coloca os interesses da Rede Globo a frente dos interesses do futebol, que deveriam envolver, sobretudo, os jogadores, clubes e torcedores”.

É importante destacar que as faixas, embora tenham sido estendidas no setor onde fica a Gaviões no Estádio, em nenhuma delas havia menção à referida Torcida Organizada exatamente porque a Federação Paulista de Futebol (FPF) havia proibido a Gaviões de utilizar faixas, bandeiras, instrumentos musicais que identificassem a sua torcida por 60 dias. A sanção era consequência da utilização de sinalizadores na final da Copa São Paulo de Futebol Junior no estádio do Pacaembu no dia 25 de janeiro de 2016. A resolução referente a essa proibição, sob o número 46 de 27 de janeiro de 2016, foi assinada pelo presidente da FPF Reinaldo Carneiro Bastos.

Na partida seguinte, válida pela quarta rodada do mesmo Campeonato Paulista, em 14 de fevereiro, o Corinthians recebeu o São Paulo, novamente na Arena Corinthians. No início do segundo tempo, novas faixas apareceram no meio da Gaviões da Fiel. Desta vez, eram quatro faixas que traziam os seguintes dizeres:

  1. “Quem vai punir o ladrão de merenda?”
  2. “Futebol refém da Rede Globo”
  3. “Ingresso mais barato”
  4. “CBF, FPF vergonha do futebol”

A ação da Gaviões da Fiel contra o deputado Fernando Capez não ficou apenas na faixa. A Torcida tem promovido uma campanha de arrecadação de alimentos não perecíveis para ajudar escolas, creches e ONGs.

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Campanha difundida no Twitter. Imagem: Twitter oficial da Gaviões da Fiel (reprodução).

As faixas continuavam criticando a rede Globo, CBF e FPF, instituições que comandam o futebol brasileiro. Críticas não só aos últimos escândalos de corrupção que envolvem as duas entidades, como também ao controle que a Rede Globo possui do futebol brasileiro. Em entrevista ao jornal Lance!, em 2013, o então jogador Alex, hoje comentarista da ESPN-Brasil declarou:

“Acho que a CBF não tem uma interferência dentro do futebol tão grande. A CBF cuida apenas da seleção. Quem cuia do futebol brasileiro é a Globo. A gente sabe que a Globo trabalha na dependência da novela. […] Pô, a gente joga bola dez horas da noite. Isso é ruim. Mas eu estou dentro de um hotel, confortável, tranquilão. Vou jogar 90 minutos, tomar banho e ir para casa. E o torcedor? O cara sai de casa ou do trabalho, precisa ir ao estádio dez horas da noite, assistir ao jogo, voltar para casa e ainda acordar sete horas da manhã no outro dia. Poxa, isso é desumano. Por isso que os estádios estão vazios. A CBF é apenas uma sala de reuniões”.

Mas agora uma nova crítica aparecia: a punição solicitada ao ladrão de merenda é direcionada para o agora deputado estadual Fernando Capez (PSDB-SP), que foi denunciado e acusado de participar de um esquema de pagamento de propinas em contratos superfaturados da merenda escolar no Estado de São Paulo. Capez nega qualquer envolvimento. Por consequência, a faixa atinge o próprio governo estadual do governador Geraldo Alckmin (PSDB), haja vista que Capez é o presidente da Assembleia paulista e que membros do Gabinete do Governador também estariam envolvidos no esquema.

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) realiza audiência pública interativa para instruir a PEC 47/2012, que divide com estados e municípios o poder da União de criar leis. Em pronunciamento, presidente do Colegiado de Presidentes, deputado Fernando Capez (SP). Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado.
Deputado Fernando Capez (SP). Foto: Marcos Oliveira / Agência Senado.

Ao ver as faixas no meio da torcida o árbitro do clássico Luiz Flávio de Oliveira parou o jogo e e imediatamente solicitou ao capitão do Corinthians, o zagueiro Felipe, para que ele pedisse à  sua torcida para retirar as faixas de protesto. O zagueiro seguiu as ordens do árbitro sem apresentar questionamentos. O que assusta na ação do árbitro é que, se algo o incomodava na torcida, deveria se reportar ao quarto árbitro da partida e não ao capitão do Corinthians. Além disso, se a função do árbitro passa a ser o de fiscalizador de faixas na torcida não há sentido em mantê-lo dentro de campo, haja vista que sua concentração deve se ater aos lances de jogo e não o que ocorre ao redor. Por outro lado a atitude do zagueiro foi passiva, sem questionamentos. Cumpriu o que foi solicitado (ou ordenado) pelo árbitro sem maiores problemas, talvez por não entender direito o que estava acontecendo. Será que outros jogadores no futebol atual poderiam agir de forma diferente? Uma pergunta que paira sobre o ar. Talvez não. O fato é que a torcida apenas mudou as faixas de lugar dentro do próprio estádio.

Saudades do tempo de Sócrates que preferiria – ao menos pensamos que assim o faria – sair de campo a ter que pedir para a torcida esconder uma faixa de protesto que não era agressiva e tampouco preconceituosa. Outro ponto desse debate que envolve a ação política e liberdade dos jogadores é que o movimento Bom Senso FC que, nos últimos anos, vem fazendo uma série de protestos nos campos de futebol, demorou a se pronunciar sobre o protesto da Torcida do Corinthians, que reflete em muito as próprias reivindicações do Bom Senso.

Apenas na quarta-feira (17/02/16) o Bom Senso fez alguma menção ao episódio. Como forma de apoiar os protestos, lançou uma campanha pela internet para pressionar os mandatários do futebol. Para um movimento que pretende alterar as bases do futebol brasileiro é muito pouco enquanto ação política utilizar-se apenas de campanha #LiberaFaixa: por um futebol sem censura. Veja, a campanha tem seu sentido, mas ela por si só não atinge o alvo. Corre-se o risco de fazer muito barulho (virtual) por nada (nenhuma mudança). Para ver a campanha acesse o site Panela de Pressão.

O jogador Paulo André (Atlético-PR), um dos líderes do movimento declarou à Folha:

“Qualquer pessoa ou grupo têm o direito constitucional de protestar, graças a Deus. A decisão foi arbitrária, o juiz decidiu sem nenhuma orientação. O estatuto do torcedor é claro quando proíbe atos de racismo e xenofobia. A PM também não tem nada que reprimir esse movimento. É de conhecimento público que há dezenas de coisas não corretas dentro das torcidas organizadas, mas este protesto é legal. E o Felipe, que é um grande amigo e uma pessoa de bem, estava concentrado no jogo e não tinha informações suficientes para tomar sua decisão. Foi o famoso inocente útil”.

O Bom Senso que tem como lema um futebol melhor para jogadores e torcedores, em dois anos de atuação apenas na ação #OcupaCBF o movimento se aproximou dos torcedores. Talvez o Bom Senso tenha receio de se posicionar a favor de uma ação de uma determinada Torcida Organizada e sofrer algum tipo de abalo em sua imagem no futebol.

A FPF, por sua vez, somente se manifestou, por meio de uma nota oficial, no dia 18 de fevereiro. Diante de um assunto urgente, afinal, a Federação estava sendo considerada como uma das responsáveis pela proibição e retirada das faixas se posicionou a favor das manifestações pacíficas nos estádios de futebol. A nota oficial diz o seguinte:

A Federação Paulista de Futebol vem a público esclarecer que não se opõe a nenhum tipo de manifestação pacífica durante os jogos, e que seus regulamentos não vetam a exibição de faixas ou bandeiras de protesto. Não há, tampouco, qualquer orientação por parte da FPF a árbitros, delegados de partida, profissionais envolvidos nos campeonatos paulistas, ou mesmo à Polícia Militar, para que oprimam estes movimentos. A única regra que versa sobre manifestações em estádios é o Estatuto do Torcedor, legislação federal que veta faixas com mensagens ofensivas. No entanto, na visão da FPF, as faixas expostas nos últimos jogos do Campeonato Paulista não feriram esta lei e, assim como qualquer manifestação pacífica, devem ser respeitadas, sem prejuízo ao andamento da partida. No caso do clássico de domingo (14) entre Corinthians e São Paulo, por exemplo, o jogo não deveria ter sido paralisado. A FPF defende, sim, a liberdade de expressão, princípio básico da democracia.

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A torcida do Corinthians mostra a sua força. Foto: Fábio Soares / futeboldecampo.net.

Seria interessante que, de alguma forma,  torcedores e jogadores se unissem para  modificar  a estrutura desse nosso futebol ou continuaremos a ter ações isoladas e que pouco alteraria, de fato, essa  estrutura.

Esses dois casos das faixas ilustram o quanto o Estádio de futebol, visto muitas vezes como o grande espaço democrático da sociedade brasileira, tem sido alvo de censura por parte dos poderes políticos e econômicos estabelecidos. Estamos vivendo um tempo estranho em que manifestação são bem vindas se forem elogios, caso contrário, se forem críticas ao poder estabelecido são duramente reprimidas e subjugadas. Porém, enquanto houver torcedores dispostos a questionar e publicizar suas críticas ao processo de elitização e gentrificação do qual encontra-se o futebol atualmente saberemos que, ao menos, diante das resistências que a FPF e CBF representam, o futebol e sua arquibancada ainda é um espaço para se expressar e falar sobre seu povo.

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Marco Antunes de Lima

Graduado em História pela USP e editor do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani; FIGOLS, Victor de Leonardo; LIMA, Marco Antunes de. A despolitização do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 80, n. 10, 2016.
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