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A Era Marta: trajetória, luta e empoderamento

Ao conversar com uma jogadora de futebol ou ex-atleta é fácil escutar que, no começo, e, para muitas, ainda hoje em dia, jogam “por amor”. Algumas sem salários, outras que não conseguem sobreviver com o que ganham, só encontram na paixão pelo futebol a justificativa para fazer o que fazem.

O que Marta representa para o futebol tem pouco a ver com ter recebido o título da FIFA de melhor jogadora de futebol do mundo seis vezes. A Rainha Marta nasceu na cidade de Dois Riachos, em Alagoas, onde deixava de ir para escola para jogar bola. Tinha o talento nos pés desde criança e, não por já ter sido a melhor do mundo e ser a melhor do Brasil, mas sua história se parece muito com a de atletas paraibanas. Ao fim desse capítulo, será possível perceber que “se não fosse por amor” muitas delas não teriam chegado onde chegaram ou sequer teriam feito a modalidade se edificar. É importante deixar claro, no entanto, que o “por amor” é uma expressão relatada com frequência pelas atletas de futebol e pode ser explicado pelo fato de que não havia incentivo, sequer salário ou remuneração para que essas mulheres atuassem no esporte. Faziam porque gostavam e como uma forma também de luta para que, mais à frente, outras mulheres não precisassem jogar apenas “por amor”, mas sim, como profissão. É importante destacar, também, que esse jogar “por amor” não significava apenas uma maneira de dizer , tendo em vista que não existir salários para essas mulheres era também um reflexo da sociedade patriarcal e sexista. A partir disso, a gente precisa dialogar sobre dois conceitos, machismo e sexismo, que nos levam a compreender o fato de que as mulheres entendiam essa entrega enquanto “amor” e não enquanto um sacrífico ou luta para combater uma sociedade que as renegava.

O machismo é um fenômeno cultural que engrandece as características masculinas e a crença na superioridade dos homens. Isso acontece a partir do uso da violência, da crença de que as mulheres são propriedade dos homens, de uma acentuação da virilidade e, consequentemente, um entendimento de que que a heterossexualidade é a norma aceita. O termo, na prática, expressa essa ideia de superioridade do homem e também de coisificação da mulher, de objetificação e propriedade. Já o sexismo pode ser entendido por meio de práticas e atitudes que promovem um tratamento diferenciado das pessoas em razão do seu sexo biológico. Isso porque a maioria das pessoas entendem que há características e comportamentos específicos por parte das mulheres e dos homens. Ou seja, a sociedade cobra atitudes a partir do sexo.

Portanto, tendo esses conceitos, é possível entender que o “jogar por amor” não era/é simplesmente uma opção, mas uma realidade cerceada por condições heteronormativas que colocam a mulher em um plano não só inferior aos homens, mas desigual, associado a uma questão de proibição (até certo momento mascarada e, em 1941, decretada). Com isso, muitas mulheres que viveram o futebol nos seus primórdios em que as discussões de gênero e feminismo não estavam tão afloradas como hoje, acabavam por entender que o envolvimento delas na modalidade era “por amor” e não por luta, por talento, por uma construção de uma sociedade que dispõe dos mesmos direitos para homens e mulheres. Não dá, portanto, para não pensar nessa construção do futebol “por amor” enquanto um reflexo da sociedade que vigorava.

Afinal, é nos anos de 1980 que as mulheres consolidam sua força política no Brasil. O discurso feminista ganha mais força, assim como as relações de gênero passam a ser mais discutidas. A mulher passa a ser tratada, aos poucos, como um sujeito social na sua individualidade, sem que seja indicada a partir de generalizações – claro, esse parece o cenário dos sonhos, mas é importante lembrar que esse momento se tratou apenas de um início da consolidação e de uma modernização. Podemos ver, inclusive, ainda nos dias de hoje, que muitas atletas, inclusive as que estão aqui retratadas mais à frente, também utilizam a mesma expressão. O que se percebe, por sua vez, é que falta, para muitas atletas, a percepção de que o futebol de mulheres é uma profissão, no entanto, não reconhecida. O jogar “por amor” precisa ser entendido como um acréscimo ao que é feito em campo enquanto luta pelo fortalecimento de uma modalidade que precisa de incentivo, patrocínio e investimento para crescer. Jogar “por amor” é uma realidade de todos que praticam o futebol, acredito eu, afinal, devem fazer aquilo que amam. No entanto, expressar o futebol de mulheres apenas dessa forma é também uma iniciativa, embora involuntária, também de menosprezá-lo.

Marta Vieira da Silva começou como uma dessas mulheres.[1] Nascida em 1986,[2] quando nem sabia a história que deixaria guardada. Uma época, claro, em que o futebol não era para meninas nem para mulheres. A Ditadura Militar acabava um ano antes e os resquícios no país ainda podiam ser vistos. A história era recente, mas o futuro de Marta é longínquo. Da sua geração também surgiram grandes jogadoras, que fizeram, junto com ela, um futebol de mulheres de resistência, como Formiga, Cristiane e Pretinha. Marta jogou pelo Vasco, Santa Cruz (um clube amador de Belo Horizonte), Umea IK (na Suécia), Los Angeles Sol (Estados Unidos), Santos, FC Gold Pride (Estados Unidos), Western New York Flash (Estados Unidos), Tyresö FF (Suécia) e pelo Orlando Pride (Estados Unidos), onde joga atualmente.

Sua primeira Copa do Mundo aconteceu em 2003 e foi eleita a melhor jogadora de futebol do mundo, pela primeira vez, em 2006. É importante destacar que esse prêmio só começou a ser entregue em 1991e apenas homens recebiam. Em 2001, as mulheres começaram a também participar dos prêmios. O primeiro foi entregue a Mia Hamm. De grandes títulos, tem o vice-campeonato da Copa do Mundo de 2007, a medalha de prata nos Jogos de Atenas, em 2004, e nos de Pequim, em 2008.

O que Marta fez pelo esporte foi por suas próprias mãos. Suas vitórias e o seu destaque não foram bem aproveitados por quem poderia impulsionar a modalidade, como algumas entidades. Hoje, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) tornaram obrigatório que todos os times masculinos da primeira divisão tivessem também uma equipe feminina. Isso garantiu estabilidade e profissionalização para algumas jogadoras. Além da sua luta por igualdade, muito representada na Copa do Mundo de 2019, na França, Marta também é embaixadora da ONU na luta contra o sexismo no esporte.

Nesta mesma Copa do Mundo da França, Marta, ao lado de outras jogadoras que também acabaram levando uma representação de peso para o futebol de mulheres – como Megan Rapinoe, eleita a melhor jogadora de futebol do mundo em 2019 pela Fifa e campeã pelos Estados Unidos no então Mundial – se engajaram em uma luta por igualdade. O momento foi histórico porque pela primeira vez a TV Globo transmitiu os jogos ao vivo. Outras emissoras de canais abertas já tinham garantido o feito, mas a audiência não conseguiu ser a mesma. Em um dos jogos, Marta usou uma chuteira preta com o símbolo da igualdade de gênero. Fez gol e, na comemoração, apontou para o pé.

Registrar o que Marta fez e faz pelo futebol é tornar tudo isso visível. É dar atenção e representatividade a um futebol de devir, isto é, um futebol que subverte, que está em constante transformação, em evolução, em mudança e debate, sendo refeito e construído, reconstruído. O que o futebol evoluiu na sua geração é indiscutível, no então, é preciso ter foco e sensatez para dizer que muita coisa ainda precisa melhorar. O cenário do futebol em São Paulo, por exemplo, não pode ser comparado com o da Paraíba. As cenas mudaram em alguns estádios, mas o roteiro ainda é o mesmo em muitos outros. Marta teve sua visibilidade, enfim, garantida. Hoje ela é única, sem comparações aos homens – salvo exceções que, infelizmente, ainda acontecem. Mas o caminho ainda é pedregoso e o futebol de mulheres segue precisando de apoio, investimento e visibilidade.

Marta
Marta durante jogo contra a Argentina pelo Torneio Internacional em Brasília, 2014. Foto: Bruno Domingos / MowaPress

A Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019 trouxe para o Brasil ainda mais popularização. As transmissões em TV aberta tiveram recorde de audiência. De acordo com a Fifa, essa edição do mundial foi a mais vista da história. Cerca de 1,12 bilhão de pessoas assistiu à competição, seja pela televisão, seja pela internet . Os dados são da Fifa e mostram que quatro jogos do Brasil estão entre os oito mais vistos no mundo durante o Mundial. As mulheres do país inteiro se mobilizaram para assistirem às partidas onde quer que estivessem. A jogadora Marta fez o manifesto em campo, pedindo igualdade entre os gêneros no futebol, mas quando a equipe foi eliminada, ela também deixou uma mensagem durante uma entrevista à TV Globo:

“é um momento especial e a gente tem que aproveitar. Digo isso no sentido de valorizar mais. Valorize! A gente pede tanto, pede apoio, mas a gente também precisa valorizar. A gente está sorrindo aqui e acho que é esse o primordial, ter que chorar no começo para sorrir no fim. Quando digo isso é querer mais, treinar mais, estar pronta para jogar 90 e mais 30 minutos e mais quantos minutos forem necessários. É isso que peço para as meninas. Não vai ter uma Formiga para sempre, uma Marta, uma Cristiane. O futebol feminino depende de vocês para sobreviver. Pensem nisso, valorizem mais. Chorem no começo para sorrir no fim”. (MARTA, 2019).

O discurso de Marta foi mal interpretado por muitas pessoas. Alguns entenderam que ela estava cobrando das atletas, que precisavam dar mais de si para o futebol de mulheres avançar. No entanto, o discurso de Marta tem uma carga do seu passado e do que as mulheres precisaram passar para avançar com o futebol de mulheres e com as suas próprias trajetórias enquanto mulheres. O discurso de Marta fala sobre fazer tudo que precisa ser feito sem depender de ninguém. Lutar pelo sonho, pelo jogo, sem depender que alguém vá ajudar. Não vão. As mulheres, desde muito cedo, lutaram por suas conquistas unidas entre elas mesmas. E o discurso de Marta passa muito por essa questão: pela solidão, ainda que em grupo, da luta feminista, da luta por direitos. Quando ela falava que o futebol de mulheres depende das atletas para sobreviver é porque, sem elas, dificilmente os clubes e as entidades responsáveis pela modalidade vão se interessar em investir. É por isso que mesmo com mais investimento e visibilidade ainda é das mulheres a luta por espaço no futebol.

Quando Marta surge na história do futebol, ela traz consigo a noção de empoderamento que poderia até existir anteriormente, mas estava escondido. O empoderamento é relativamente recente, mas já nos leva a entender que o aprendizado acontece na prática. Questionando e reinventando discursos e vitórias, Marta conseguiu realizar conquistas históricas, mas ao mesmo tempo construiu uma narrativa grupal e compartilhou os seus feitos com outras pessoas. Isso é empoderamento. Ou empoderar-se. “Elas têm se empoderado precisamente pela aprendizagem de como fazer com confiança e bem as coisas que eram muito experimentais e apreensivas, e suas habilidades são uma importante fonte dos prazeres que derivam do jogo.” (WHITSON, 2002, p. 234, apud KESSLER, 2015, p. 50, grifo do autor, tradução do autor).

 

Notas

[1] É importante lembrar que, antes de Marta, outra jogadora também teve sua representatividade elevada, embora muitos não aceitassem. É o caso de Sisleide Lima, que ficou conhecida como Sissi. Ela fez parte da primeira seleção brasileira de mulheres, em 1988, e atuou com a camisa da seleção até 2000. Sissi era conhecida, além pelo excelente futebol, por sua marca registrada: o cabelo raspado. Por isso, sofreu preconceito, olhares de negação e comentários maldosos. Mas, por se sentir bem consigo mesmo, passou a não ligar mais para esse problema. Para a própria CBF, não era legal vender a imagem de uma atleta com o cabelo raspado, afinal, era década de 90, e os padrões femininos estavam ainda muito impostos. Além da primeira Copa do Mundo, participou ainda a de 1995 e 1999, e dos Jogos Olímpicos de 1996 e 2000.

[2] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/04/eps/1559648295_962249.html. Acesso em: 30 mar. 2020.

 

Referências

KESSLER, C. S. Mais que barbies e ogras: uma etnografia do futebol de mulheres no Brasil e nos Estados Unidos. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.

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Ana Daniella Fechine

Paraíba, feminista e peladeira. Formada em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e mestrando em Antropologia pela mesma instituição. Atualmente, pesquisadora de futebol e gênero, integrante do grupo de pesquisa ReNEme e do Guetu (UFPB).

Como citar

FECHINE, Ana Daniella. A Era Marta: trajetória, luta e empoderamento. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 55, 2021.
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