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A favela entra em campo

Caio César de Souza Gomes 7 de julho de 2019

Enquanto a seleção brasileira decide a Copa América, a Taça das Favelas é o grande sonho de dezenas de jovens do Rio de Janeiro

Dia 14 de junho de 2019: Brasil e Bolívia entram em campo no Estádio do Morumbi, em São Paulo, para a estreia da Copa América. Depois de 69 anos de trauma, após a derrota contra o Uruguai na Copa do Mundo de 1950, a Seleção Brasileira veste branco de novo para homenagear os campeões do Sul-Americano de 1919. Longe dali, cerca de 400 km e separado pela Rodovia Presidente Dutra, um menino morador de Belford Roxo, cidade do Grande Rio, está alheio a tudo aquilo. Em casa, no bairro Bom Pastor, Ronald Barcellos Arantes sequer olha para a televisão para acompanhar a partida. Seus pensamentos estão única e exclusivamente em um outro jogo: Gogó da Ema e Engenho Velho de Itaboraí, marcado para às 11 horas da manhã do dia seguinte.

Ronald no jogo entre Gogó da Ema e Engenho Velho, semifinal da Taça das Favelas. Foto: Gil Cunha/CUFA.

A semifinal da Taça das Favelas do Rio tira o sono do jovem Ronald, 17. Faltam menos de 12 horas para o grande jogo contra o Engenho Velho. Nada tira seu foco. Nem os dois gols de Philippe Coutinho e um de Everton na vitória brasileira por 3 a 0 contra a Bolívia. O foco de Ronald é só um: chegar às finais da Taça das Favelas. No caminho de Belford Roxo até Realengo, feito de carro, Ronald tem consciência que sua comunidade está levando dois ônibus lotados e mais uma dezena de pessoas está indo de outra forma.

Eles estão sempre do nosso lado, ajudando, cantando, apoiando. Sabíamos dos ônibus, mas nada que tirasse nossa concentração do jogo. Apenas aumentou nossa felicidade em estar ali e a nossa confiança na vitória também”.

Ao adentrar no Campo do Realengo, Ronald imagina como seria se “aparecesse na televisão para disputar a final da Taça das Favelas”. Desde que começou a se arrumar para o jogo, vestir o uniforme, ouvir a preleção de Vinícius e fazer o alongamento com seus colegas de equipe, Ronald tem certeza que jogar a final da Taça poderia ser o melhor dia de sua vida. Antes do apito inicial um grito ensurdecedor vem das arquibancadas e ganha o Campo do Realengo: “Ai, meu Deus do Céu, o meu 10 é melhor que o Lionel!”, número que Ronald vestia. Como há uma semana, o time do Gogó começa nervoso e é pressionado pelo Engenho Velho, aos poucos o time se encaixa, a torcida apoia e, Ronald, tímido durante o início do jogo, aparece. Aos gritos de “Festa na Favela”, o Gogó da Ema vence por 3 a 1, com um gol e uma assistência do camisa 10 que, mais uma vez, é o grande destaque da classificação.

Ronald no jogo entre Gogó da Ema e Engenho Velho, semifinal da Taça das Favelas. Foto: Gil Cunha/CUFA.

Ronald é um talento de um Projeto que visibiliza meninos e meninas como ele. Iniciada em 1999, a Taça das Favelas é a reunião de jovens de várias favelas organizadas na CUFA (Central Única das Favelas). Vinte anos depois, a CUFA se tornou uma organização reconhecida internacionalmente por desenvolver importantes projetos sociais que contaram com o esforço do rapper MV Bill (um de seus fundadores), Nega Gizza (referência do Rap entre as mulheres) e com o ativista, escritor e produtor Celso Athayde, coordenador geral do projeto.

Em 2012, segundo a própria CUFA, foi criado um torneio de futebol com a intenção de “promover a integração das comunidades através do esporte e descobrir talentos, afinal, grandes gênios da bola vieram da periferia das grandes cidades”.

O envolvimento da comunidade com a competição é intenso, diverso e contínuo: produtores, treinadores e jogadores participam da organização da competição. O projeto que acaba de completar 8 anos de existência levou a ideia de alcançar mais visibilidade, elevar a autoestima ou até mesmo abrir oportunidades para os jovens boleiros para São Paulo, em 2019.

A realização de um sonho antigo: o futebol fazendo a diferença na comunidade

Franklin nem bem chega à Praça do Aviador, em Bangu, e já é cercado por inúmeras crianças. O treino, marcado para às 16 horas, vai começar em poucos minutos e elas não veem a hora de entrar na quadra de terra bem no meio da praça. É ali que treinam os mais jovens do projeto Craques da Vida Vila Aliança, que oferece aulas gratuitas de futebol para as crianças da comunidade. Franklin Ferreira, de 39 anos, idealizador do projeto, cria da Vila Aliança, como ele mesmo gosta de dizer, conta com orgulho que sua família foi uma das primeiras a chegar na Vila, fundada em 1962: “quando eles chegaram só haviam três ruas aqui e meu avô foi o primeiro barbeiro da comunidade”.

Sua primeira lembrança de futebol vem de 1986: o pênalti perdido por Zico no tempo normal e depois o outro perdido por Sócrates nas disputas derradeiras fizeram seu pai chorar em casa. No fim da partida contra a França jurou a si mesmo que daria alegrias a seu pai com o futebol. Anos mais tarde, Franklin decidiu enxergar o futebol como um estudo e dedicou sua vida a isso, por ironia do destino, em 1998, durante a Copa da França, ganhou a chance de cursar uma faculdade através do Projeto Gota de Esperança e não pensou duas vezes: Educação Física.

O Projeto, que deu a Franklin a chance de alargar seus horizontes de estudo, o escolheu entre mais de 400 jovens. Ainda em 1998 teve a chance de ir até a França, onde conheceu Delphine Claudie Douyère, socióloga francesa que estudava meninos de rua pelo Mundo, uma das criadoras da ONG Terr’Ativa. Delphine foi decisiva nos rumos da história de  Franklin e de tantos jovens da Vila Aliança: ela começou a dar aulas de francês no Rio de Janeiro para bancar a faculdade de Educação Física para Franklin e o ajudou a tirar  seu primeiro grande sonho do papel: “o Projeto Craques da Vida era um sonho meu que a ONG Terr’Ativa abraçou”.

Uma tragédia interrompeu o desenvolvimento do projeto: Delphine e outros membros da ONG foram assassinados, vítimas da violência no Rio. Somente em 2012, com a criação da Taça das Favelas, Franklin começou a vislumbrar um novo futuro que se concretizou cinco anos mais tarde com a Vila Aliança levantando o troféu de campeã…

Hoje, o projeto conta com quase 200 jovens entre 3 e 18 anos de idade que encontram no esporte uma perspectiva de vida muito distinta da realidade violenta noticiada sobre o Rio de Janeiro. O desejo de Franklin era o de passar uma imagem diferente do local onde nasceu: “meu sonho sempre foi ver a Vila Aliança de uma forma positiva e eu detectei que o Craques da Vida poderia ser uma fonte disso”. E seu esforço ainda trouxe uma recompensa que marcaria a vida dos jovens “Craques da Vida”.

Franklin e parte dos meninos de Vila Aliança no jogo Chile e Uruguai. Foto: Franklin Ferreira/Craques da Vida.

Por meio dos projetos CBF Social e Gol do Brasil, os meninos foram convidados para acompanhar partidas da Copa América de 2019.  Grupos de diferentes idades acompanharam as partidas realizadas no Estádio do Maracanã: Paraguai e Qatar, no dia 16 de Junho, Bolívia e Peru, no dia 18 e Chile e Uruguai, no dia 24. Para a maioria dos meninos, era a primeira vez no estádio que sempre sonharam em conhecer.

Os meninos Isaque, de 8 anos, e Luis Fernando, de 7, faziam parte do grupo de cinco crianças da Vila que foram os primeiros a contemplar a Copa América no Maracanã. Enquanto Isaque entrou com a equipe do Qatar, Luiz Fernando acompanhou um dos jogadores paraguaios. Foi a primeira vez de ambos no Maracanã. Luiz Fernando conta como foi difícil dormir na noite anterior ao dia do jogo: “eu chorei de emoção depois de saber que iria ao jogo e não consegui dormir direito”. Isaque, ainda muito tímido, resumiu sua experiência com um “foi tudo maravilhoso”.

Dois dias depois foi a vez dos meninos Mateus e Diogo entrarem juntamente com o mascote Zizito antes do jogo entre Bolívia e Peru. Seis dias após, em um dos jogos mais esperados da primeira fase, foi a vez do próprio Franklin acompanhar um grupo de nove jovens, que entraram em campo acompanhando os craques uruguaios e chilenos. A maioria deles segurando a bandeira uruguaia, admirando os jogadores que só acompanhavam pela televisão ali, bem na frente deles.

João Victor, 14 anos, Luiz Felipe e Luiz Henrique, 16, e Lucas Gomes, 17, assumiram a grande responsabilidade de carregar a bandeira do Uruguai até o campo para a cerimônia dos hinos nacionais. Pela primeira vez pisaram no gramado do Maracanã e, já de cara, em uma situação “de outro mundo”, como pontuou o jovem Luiz Felipe. 

Lucas destaca o momento do hino uruguaio: “quando começou o hino, o Cavani e o Suárez olharam sérios para a bandeira que a gente segurava, dava até um pouco de medo”, enquanto o goleiro João Victor diz que nunca esquecerá o hino chileno: “quando o hino do Chile parou e os jogadores e torcedores continuaram cantando, como a seleção brasileira faz, foi um momento muito bonito”.

Luiz Henrique faz questão de destacar o apoio vindo das arquibancadas. Desse grupo de quatro meninos, era o único que já havia ido ao Maracanã, mas nunca nem havia sonhado em pisar no gramado. Para ele, ver a festa dos torcedores de outro plano foi completamente diferente: “as torcidas, tanto do Chile quanto do Uruguai, fizeram um grande espetáculo”. Wendell, de 18 anos, não entrou em campo, mas acompanhou seus amigos de Vila Aliança, e o jogo em si, diretamente da arquibancada: “a torcida é um pouco diferente da nossa, não tem brigas, confusões, e eles fizeram uma grande festa durante o jogo”. Wendell também diz que o jogo foi “muito europeu” devido ao grande número de jogadores de ambas as seleções jogarem no continente europeu.

Apesar do fascínio pela Europa já aparente nas falas, todos os meninos falaram de jogadores sul-americanos como espelhos para suas vidas em campo: os goleiros João Victor e Luiz Henrique apontaram, respectivamente, Alisson e Gatito Fernández. O jovem zagueiro Wendell falou, sem pensar duas vezes, em Marquinhos, para depois citar Thiago Silva e Godín. O lateral Luiz Filipe fez questão de elogiar a Copa América do também lateral Daniel Alves, o elegendo como o melhor em campo na semifinal contra a Argentina.

Duas finais separadas por 13 dias e 40 quilômetros.

Enquanto a Copa América avançava, a Taça das Favelas parava. Por questões de organização e policiamento as finais da Taça foram adiadas para o dia 27 de julho no Estádio de Moça Bonita, em Bangu. Exatamente 13 dias depois e 40 quilômetros de distância da final da Copa América entre a seleção brasileira e a peruana, no Estádio do Maracanã.

Enquanto a competição sul-americana ganha os holofotes no Brasil, Ronald, Franklin e os meninos da Vila Aliança acompanham, cada um da sua maneira, os jogos da competição. De um lado, Ronald confessa que não assistiu muitos jogos e que prefere “estar dentro de campo” ao assistir jogos pela TV. Conta os dias para entrar em campo com seus colegas de Gogó da Ema, aparecer na transmissão da partida contra o Patativas de Campo Grande e brigar pelo título é tudo o que importa para o menino de Belford Roxo.

Por outro lado, Franklin, apesar de considerar a maioria dos jogos da competição com um futebol fraco e sem novas ideias, sua visão de técnico e apaixonado por futebol o fez acompanhar praticamente todos os jogos. Se surpreendeu com a derrota uruguaia, assustou-se com o futebol jogado pela Argentina e apontou, segundo sua opinião, a Venezuela como a grande surpresa positiva da Copa América de 2019: “o que mais me chamou a atenção foi uma seleção que não chegou nas finais. A evolução da Venezuela me tocou. O esquema tático deles evoluiu de uma forma gigantesca para uma seleção que só estava acostumada com derrotas acachapantes contra os adversários sul-americanos”.

Segundo Franklin, o Brasil de Tite sofreu um nó tático dos venezuelanos no empate por 0 a 0, o que fez com que o técnico brasileiro tivesse de se reinventar para o jogo contra o Peru pela última rodada da primeira fase. Mas, para Franklin, a final de domingo será diferente da goleada da primeira fase.

Para os meninos da Vila Aliança, a Copa América não se resumiu a entrar no Maracanã nos jogos do Rio de Janeiro. Todos acompanharam a maioria dos jogos do torneio e gostaram do futebol apresentado pelo Brasil e pelo Chile. Perguntados sobre a final, Lucas, João Victor e Luiz Henrique também esperam um jogo diferente da goleada aplicada na primeira fase. Para Lucas o jogo “vai pegar fogo”: “certamente o Peru vai querer se vingar pelos 5 a 0. Mas confio no título do Brasil”. João Victor enxerga a possível vitória como uma espécie de pazes entre o futebol brasileiro e sua torcida: “espero que o Brasil ganhe, não só pelo troféu, mas também para alegrar o nosso país e ajudar a aproximar o povo de nossa seleção”. Já Luiz Henrique frisa a importância da seleção voltar a jogar no Maracanã depois de anos: “essa final foi muito esperada, já que há muito tempo a seleção não joga no Maracanã”.

O grupo que assistiu Chile e Uruguai. Foto: Franklin Ferreira/Craques da Vida.

Apesar de esperarem com animação a finalíssima da Copa América entre Brasil e Peru, todos eles concordam em uma coisa: a final mais importante deste mês não será disputada no Maracanã. Todos, sem exceção, aguardam com ainda mais ansiedade as finais da Taça das Favelas. No dia 27 de julho, o Gogó da Ema, de Ronald, enfrenta o Patativas de Campo Grande na final masculina, enquanto as meninas do Curral das Éguas, de Magalhães Bastos, buscam o título contra a equipe do Corte Oito, de Duque de Caxias.

A organização espera, assim como aconteceu na Taça de São Paulo, um grande público presente no Estádio de Moça Bonita. Franklin já imagina a fileira de ônibus chegando de todos os lugares do Rio de Janeiro, como já aconteceu nos anos em que a Vila Aliança chegou às finais. Os meninos do Projeto Craques da Vida imaginam o dia em que estarão lá novamente. Ronald já se imagina levantando o troféu de campeão ao lado de seus amigos de Belford Roxo.


Durante a Copa América, Puntero Izquierdo e Ludopédio publicam uma série de reportagens sobre a história e a atualidade da competição.

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Caio César de Souza Gomes

Jornalista, apaixonado por História e narrador da Taça das Favelas do Rio de Janeiro 2019.

Como citar

GOMES, Caio César de Souza. A favela entra em campo. Ludopédio, São Paulo, v. 121, n. 11, 2019.
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