A guerra do Santos: 50 anos de uma viagem histórica – O futebol no campo dos refugiados (parte V)
Ao ser declarada a secessão, em 30 de maio de 1967, Biafra abrangia um território de setenta e sete mil quilômetros quadrados e uma população de cerca de quatorze milhões de habitantes. Ao ser assinada a rendição, em 12 de janeiro de 1970, ela estava reduzida a uma área de três mil e oitocentos quilômetros quadrados com cinco milhões de habitantes[1]. Cercada por terra, mar e ar, exausta e faminta, a república separatista finalmente havia entrado em colapso. A Nigéria, desse modo, evitava a ameaça de “balcanização”, mas a um custo exorbitante em vidas humanas, homens, mulheres e crianças mortos não apenas nos campos de batalha, mas, sobretudo, nos campos de refugiados onde o bloqueio imposto pelas forças federais impedia a chegada de alimentos básicos e cuidados médicos.
Aprisionado em algum ponto do arquipélago carcerário, o dramaturgo, poeta e ativista político, Wole Soyinka, expiava a culpa de haver procurado articular, no início do conflito, uma ação conjunta envolvendo intelectuais, artistas e escritores de ambos os lados da fronteira com o objetivo de alcançar um cessar-fogo. Aos olhos do governo militar da Nigéria, a fome se afigurava uma “arma de guerra” legítima, enquanto a simples proposta de paz se desvelava um crime inafiançável[2]. Confinado em regime de solitária, Wole Soyinka não veria a explosão de alegria provocada pela rendição do território “rebelde”.
Com efeito, nas ruas da capital, Lagos, a população “cantava e dançava”, comemorando a vitória das forças federais, exibindo cartazes com a inscrição: “Biafra is dead”[3]. No aeroporto de Uli, no campo adversário, o líder militar, Emeka Ojukwu, partia para a segurança do exílio na Costa do Marfim, enquanto a população que o seguira e apoiara agora empreendia uma fuga desesperada em busca de refúgio e abrigo, sob as pesadas chuvas que atingiam a região oriental, impulsionada pelo medo do genocídio, espectro que lhes rondara a existência ao longo de toda a guerra civil:
A retirada de cerca de dois milhões de biafrenses – homens, mulheres e crianças – fugindo em direção às selvas, para evitar um encontro com as tropas federais, foi, na opinião de um correspondente de guerra, a própria visão do inferno.[4]
A visão do inferno se constituía, sem dúvida, numa imagem recorrente evocada nas crônicas ocidentais sobre o continente africano, proporcionada desta feita pelo confronto na Nigéria. Ela abrangia cenas em flagrante contraste entre si, como, por exemplo, a do “colar de cartuchos de metralhadora” do soldado federal e o do “olhar fixo” da criança biafrense, fragmentos dispersos de uma realidade despedaçada pelos interesses internos e externos que se articulavam de forma contraditória à economia do petróleo, ao monopólio do poder, à afirmação nacional, cuja identidade, ao invés de se abrir e expandir na direção do pan-africanismo; recuava e se encrespava na dos particularismos étnicos[5]. Pouco a pouco, porém, o país começava a reemergir do caos. O futebol, de maneira análoga à função desempenhada no período anterior à conquista da independência, voltava a se oferecer como idioma comum aos grupos em conflito, veículo privilegiado capaz de reaproximá-los e convertê-los, de inimigos de guerra em adversários de jogo. De fato, durante o longo impasse que se estabelecera no plano militar, entre maio e outubro de 1969, em alguns setores verificava-se por vezes o “curioso paradoxo” de “partidas de futebol” envolvendo nigerianos e biafrenses[6].
Das pistas de aviação da cidade de Benin onde o time do Santos havia se apresentado, decolavam, à noite, aviões de fabricação soviética, pilotados por mercenários da guerra civil do Congo. A palavra “genocídio” fornecia-lhes a senha para os ataques indiscriminados contra alvos civis nas cidades biafrenses[7]. Lá embaixo, a população buscava escapar da mira dos aviões e sobreviver às sequelas deixadas pela guerra. Em um campo de refugiados, localizado no interior do que restara do sonho de autonomia, cidadãos comuns e soldados anônimos jogavam uma partida de futebol. Com o auxílio de muletas e com o sangue que lhes escorria pelo corpo mutilado, alguns sem a perna direita, outros sem a esquerda, outros, ainda, sem ambas as pernas, eles se esforçavam para superar as próprias deficiências físicas, empenhando-se em alcançar a bola que lhes escapava e os desafia a todo instante a se manterem de pé, o corpo equilibrado, a alma ereta.
A viagem africana do Santos nos revela, dessa maneira, uma história bem diversa daquela propagada pela mitologia alvinegra. Não a do futebol que paralisara a guerra civil, mas a do futebol que brotara dos campos de refugiados, nos jogos dos mutilados, desvelando, nas palavras do poeta, a capacidade do ser humano de “enfrentar e vencer a adversidade”, de não se deixar “definir por ela”, de se recusar em ser “apenas seu agente ou sua vítima”[8].
[1] Cf. “Fome e força vencem Biafra”, O Estado de S. Paulo, 13 de janeiro de 1970. A Nigéria possui um território de novecentos e vinte e três mil, setecentos e sessenta e oito quilômetros quadrados, um dos mais vastos do continente africano.
[2] Cf. “Starvation the weapon”, New York Times, 2 de julho de 1969. Cf. St. Jorre, John de (1972) The Nigerian Civil War. London, Hodden Stoughton, p.244. Cf. “Nigerian poet, in a solitary cell 18 months, is reported to be lll”, New York Times, 8 de junho de 1969. Cf. Achebe, Chinua (2012). There was a country: a personal history of Biafra. New York, Penguin Books, pp.109-110. Wole Soyinka foi preso em agosto de 1967, após retornar de um encontro com Emeka Ojukwu, dirigente da República de Biafra. Ele nunca foi levado a julgamento, sendo transferindo de uma prisão para outra no território nigeriano. Wole Soyinka tornar-se-ia em 1986 o primeiro autor africano a vencer o Prêmio Nobel de Literatura.
[3] Cf. “Lagos comemora sua vitória militar”, O Estado de S. Paulo, 14 de janeiro de 1970.
[4] Cf. “Uma visão do inferno”, O Estado de S. Paulo, 13 de janeiro de 1970.
[5] Cf. “Ascensão e fim de Biafra”, O Estado de S. Paulo, 13 de janeiro de 1970.
[6] St. Jorre, John de (1972) The Nigerian Civil War. London, Hodden Stoughton, p.378. A foto da partida de futebol disputada por soldados biafrenses se encontra na obra do referido autor.
[7] John de St. Jorre, op. cit., p.318.
[8] Chinua Achebe (2012) A educação de uma criança sob o Protetorado Britânico: ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, p.31.