115.18

A guerra do Santos: 50 anos de uma viagem histórica – O jogo de Calabar (parte II)

José Paulo Florenzano 22 de janeiro de 2019

A popularidade do futebol na Nigéria havia sido conquistada ao longo de um processo histórico que remontava ao início do século XX, quando os agentes do colonialismo europeu, missionários, soldados e comerciantes, introduziram-no nas cidades de Calabar e de Lagos, pontos de implantação e difusão da prática lúdica na antiga colônia da África Ocidental Britânica[1]. A primeira partida sobre a qual existe alguma documentação histórica foi realizada no dia 15 de junho de 1904, em Calabar, nas dependências da Hope Waddell Training Institution, estabelecimento de ensino voltado às elites nativas, fundado em 1895 por missionários presbiterianos. A partir daí o “Jogo de Calabar” – como se designava o futebol no país em alusão à cidade portuária na região sudeste que lhe servira de berço – acabaria por se propagar pelo vasto território do Protetorado Britânico, contribuindo para o advento e a afirmação da identidade nigeriana, fornecendo aos grupos étnicos que ela abrigava uma história comum na qual podiam se reconhecer[2].

A princípio, porém, o futebol se constituíra em uma forma cultural encarregada de reproduzir as práticas lúdicas, os valores morais e os códigos de comportamento que os colonizadores consideravam civilizados[3]. De fato, já no período do entre guerras, ele figurava como o elemento-chave da educação colonial direcionada às elites africanas[4]. A denominada missão civilizadora do Império Britânico, segundo Frederick Lugard – fundador e governador-geral da Nigéria –, consistia em “levar a essas obscuras regiões da Terra – morada da barbárie e da crueldade – a tocha da cultura e do progresso”[5]. O futebol se inseria dentro desta lógica imposta pela dominação colonial, desvelando-se o facho de luz capaz de alumiar o espírito e disciplinar o corpo, formar o caráter e moralizar a conduta –, aspectos constitutivos do “cristianismo muscular” concebido no âmbito das escolas religiosas, propagado pelas agências governamentais e empresas comerciais envolvidas na montagem de equipes e na organização de campeonatos na colônia.

As iniciativas nesse sentido não demoraram a aparecer. Para citarmos dois exemplos: em 1932 veio a lume a Lagos and District Amateur Football Association, e, pouco depois, em 1937, a Ibadan District Football Association[6]. De um modo geral, embora houvesse uma ou outra exceção, as equipes das agências e empresas governamentais instituíam uma linha de demarcação entre europeus e africanos a fim de evitar o encontro inter-racial dentro das quatro linhas do gramado[7]. Todavia, além da barreira racial entre negros e brancos, a disseminação do futebol deparava-se também com a divisão religiosa estabelecida no país, expressa na existência de um Sul predominantemente cristão e de um Norte majoritariamente muçulmano[8].

Ao contrário das regiões meridionais onde a atuação das escolas missionárias popularizara a modalidade esportiva entre as elites ocidentalizadas, nas províncias setentrionais a predileção das aristocracias islamizadas recaíra a princípio sobre as práticas do críquete, do hóquei e do polo. Embora em um ritmo mais lento e porquanto enfrentando resistência maior, o Jogo de Calabar foi contornando obstáculos e conquistando espaço em lugares como Jos, Kaduna e Kano, em consequência da migração dos trabalhadores sulistas, bem como da iniciativa das companhias ferroviárias e das empresas de mineração. A rigor, desde os anos trinta do século passado verificavam-se encontros inter-raciais envolvendo autoridades coloniais e populações autóctones em localidades tão distantes como na cidade de Maiduguri, na região nordeste, hoje, a mais pobre e miserável do país, e, não por acaso, o berço do movimento radical islâmico.

Fosse através das escolas missionárias e das agências governamentais, fosse por intermédio das empresas comerciais, companhias ferroviárias ou indústrias de mineração, o futebol foi se deslocando pelo território da colônia, conectando as regiões geograficamente distantes, contornando tanto as barreiras raciais entre negros e brancos quanto os antagonismos religiosos entre cristãos e muçulmanos. Conforme nos mostra a análise acurada do historiador Wiebe Boer, ao transpor as fronteiras étnicas traçadas entre os diversos grupos culturais e linguísticos do país, o futebol foi se constituindo no idioma comum a todos os nigerianos[9]. Subvertendo os pressupostos teóricos da sociologia colonial, ao invés de se limitar a transmitir aos africanos um modelo de vigor físico e de caráter moral, o esporte bretão, à esta altura em boa parte africanizado, veiculava um conjunto bem mais ambíguo e complexo de valores, códigos e significados.

Mais do que ninguém Nnamdi Azikiwe havia compreendido as potencialidades revolucionárias contidas no Jogo de Calabar, o quanto ele se achava imbricado na luta política pela independência, a importância estratégica de convertê-lo em símbolo da nação autônoma e soberana dos nigerianos. Nascido em 1904, na cidade de Lagos, educado na escola presbiteriana de Hope Waddell Training Institution, em Calabar, atleta da equipe de futebol do Diamond Football Club, na capital da colônia, Nnamdi Azikiwe, cognominado Zik, emigrara nos anos trinta para os Estados Unidos na condição de bolsista da Universidade da Pensilvânia. De volta à Nigéria ele utilizaria a experiência acumulada na América do Norte para se projetar na arena futebolística através da fundação, em abril de 1938, do Zik Athletic Club (ZAC). Todavia, além do combate à discriminação racial imposta pela dominação britânica, os motivos que estavam por trás da criação do ZAC passavam também pelas divisões étnicas existentes na colônia africana. De fato, a recusa do Yoruba Tennis Club em aceitá-lo como sócio da agremiação por causa da sua ascendência Igbo persuadira Nnamdi Azikiwe a conceber uma associação aberta aos homens e mulheres “de todas as raças, nacionalidades, tribos e classes”[10].

Santos na Nigéria, em excursão para a África no ano de 1969. Foto: Blog SantosFCWorldSoccer.

O ZAC, com efeito, adentrava a cena esportiva representando o nacionalismo pan-étnico, o cosmopolitismo urbano, a capacidade e a competência organizacionais dos africanos ilustradas pelos títulos arrebatados às equipes brancas, administradas pelas agências governamentais e pelas empresas comerciais dirigidas pelos colonizadores. A notoriedade obtida a partir da dupla conquista da Lagos League e da War Memorial Cup, disputadas em 1942, levaria o ZAC a cruzar o país de um extremo ao outro, abrindo filiais em todas as partes, no Norte, em Kano, no Oeste, em Abeokuta, no Sul, em Port Harcourt. As partidas realizadas em cada uma destas localidades ensejavam à Nnamdi Azikiwe a oportunidade desejada de se dirigir às massas populares a fim de lhes denunciar a política britânica, cuja contradição residia no fato de se debater pela democracia nos campos da Europa, no contexto da Segunda Guerra, ao mesmo tempo em que mantinha sob tutela a Nigéria, no quadro da dominação colonial (Boer, 2004:64).

A estratégia implicava, portanto, um combate em diversas frentes, desencadeava ações convergentes que passavam tanto pela esfera da política partidária, através da criação em 1944 do National Council of Nigeria and the Camerrons (NCNC), quanto pela esfera da imprensa escrita, por intermédio da fundação em 1937 do West African Pilot, cotidiano popular que se colocava como desafio intercambiar o universo do torcedor de futebol com o do militante anticolonial, superando as desconfianças mútuas e as resistências recíprocas que se interpunham entre eles. De fato, ao entrelaçar dois universos concebidos a priori como tão distintos e distantes entre si, senão, mesmo, antagônicos, Nnamdi Azikiwe foi capaz de veicular de forma rápida, ampla e eficaz a mensagem a favor da emancipação política[11].

No transcorrer da primeira metade do século XX, com efeito, a elaboração do nacionalismo nigeriano se desenrolava em várias frentes de batalha. A do futebol, em especial, incluía várias etapas, a saber: em primeiro lugar, a instituição dos clubes organizados e dirigidos de forma autônoma pelos próprios africanos, caminho indicado pelo exemplo pioneiro do Zac Athletic Club; em segundo lugar, a renomeação dos torneios e campeonatos nos quais eles tomavam parte, como a Governo`s Cup, criada em 1945 pelo governador-geral da colônia e transformada em 1954 na Nigeria Football Association Cup; e, por último, mas não menos importante, o advento do selecionado nacional, cuja formação remontava ao ano de 1949 quando atletas das principais agremiações de Lagos foram reunidos pelas autoridades esportivas para empreender uma turnê pelos gramados da Inglaterra. Na viagem de volta a delegação deteve-se em Freetown para a realização de um amistoso. A vitória por 2 a 0 sobre Serra Leoa veio ser considerada posteriormente como a ata de fundação da Seleção da Nigéria, lavrada cerca de dez anos antes da emancipação política.

Contudo, poucos anos após a conquista da independência, celebrada no dia 1 de outubro de 1960, a jovem nação substituía as esperanças suscitadas ao longo da luta anticolonial pelo pesadelo da mais brutal das guerras civis do período pós-colonial. A ideia nacional da qual o Zick Athletic Club se fizera portador na primeira metade dos anos quarenta: jogando bola, fazendo política, narrando a nação nos termos de uma comunidade livre e aberta a todos os grupos étnicos que haviam sido amalgamados no território administrativo arbitrariamente definido no contexto do imperialismo europeu, encontrava-se agora posta em xeque. Depois de exercer o cargo de governador-geral da Nigéria, entre os anos de 1960 e 1963, Nnamdi Azikiwe contemplava, impotente, o esgarçamento da unidade nacional tão cuidadosamente tecida no contexto da luta pela independência.

Alheio aos terríveis acontecimentos que engolfavam o país, o Santos de Pelé desembarcava em Lagos, na sexta-feira, 24 de janeiro de 1969, procedente de Kinshasa, trazendo na bagagem o gosto amargo da primeira e única derrota sofrida pelo time no continente africano. Na saída do aeroporto internacional de Ikeja, localizado nos subúrbios da capital, os recém-chegados se deparavam com um imenso outdoor, estrategicamente posicionado na estrada pelas autoridades do governo militar, no qual se destacava a foto idílica de uma infância cercada de cuidados: “Bem-vindo à Nigéria onde os bebês são saudáveis e felizes”[12].

O cartaz transmitia a imagem de fartura e bem-estar no território nacional da Nigéria, em flagrante contraste com a situação de Biafra onde homens, mulheres, e, sobretudo, crianças, definham até à morte nos campos de refugiados, privados de alimentos, remédios e dignidade. A mensagem veiculada pela propaganda de guerra evidenciava o clima bélico que envolvia a incursão do Santos de Pelé pelo país africano. De fato, ao desembarcar no aeroporto internacional de Lagos, o elenco alvinegro não poderia suspeitar que ele próprio seria utilizado como peça de propaganda de um conflito armado que transformava a fome em arma de guerra.


[1] Na primeira metade do século XIX, tanto Lagos, no Golfo do Benin, quanto Calabar, na Baía de Biafra, participavam do comércio negreiro. A futura capital da Nigéria, em especial, figurava como um “empório de escravos de primeira importância” no tráfico transatlântico. Esta condição só começaria a mudar a partir de 1851 quando ela foi submetida ao domínio britânico. Cf. Cunha, Manuela Carneiro da [1985] (2012) Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. 2ª edição. São Paulo, Companhia das Letras, p.138.

[2] Boer, Wiebe (2004) A Story of Heroes, of Epics: The Rise of Football in Nigeria. In: Football in Africa: Conflict, Conciliation and Community. Edited by Armstrong,Gary; Giulianotti, Richard.  New York: Palgrave Macmillan, p.62.

[3] Cf. Appadurai, Arjun (2005) Après le colonialismo: les conséquences culturelles de la globalization. Paris, Éditions Payot & Rivages. 

[4] A obra de Frederick Lugard sobre a administração indireta nas colônias, “The Dual Mandate in British Tropical Africa” publicada em 1922, “teve um êxito retumbante nos meios coloniais, nomeadamente na Grã-Bretanha”. M`Bokolo, Elikia (2011) África negra: história e civilizações. Tomo II. Do século XIX aos nossos dias. Salvador, Editora da Universidade Federal da Bahia; São Paulo, Casa das Áfricas, p.452.

[5] In: Dietschy, Paul; Keimbou, Kemo (2008) Le Football et L´Afrique. Paris, EPA (Hachette Livre), pp.44-56.

[6] Wiebe Boer, op. cit.pp.66-67.

[7] O Public Works Department (PWD), time criado em 1929 e considerado pela historiografia não somente o mais antigo da Nigéria, como também o primeiro a acolher indistintamente empregados brancos e negros. Cf. Alegi, Peter (2010) African soccerscapes: how a Continente Changed the World`s Game, pp.10-20.

[8] A divisão se encontra formulada de maneira esquemática e deve ser tomada com as devidas ressalvas: “a ideia de que a Nigéria se compõe de um Norte muçulmano, um Sul cristão e um mosaico de remanescentes ´pagãos`” traduz uma imagem “inexata” de um quadro muito mais complexo do ponto de vista das identidades sociais. Appiah, Anthony (1997) Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro, Contraponto, pp. 247-248.

[9] Wiebe Boer, op. cit. p.62.

[10] Peter Alegi, op. cit., pp.37-39

[11] Peter Alegi, op. cit., pp.41-43. Achebe, Chinua (2012) There was a conuntry. A personal history of Biafra. New York, Penguin Books, pg.42.

[12] A foto do bebê “saudável e feliz” no cartaz aparece em uma matéria especial do correspondente Alfred Friendly Jr. Cf. “The pessimists have always been right”, New York Times, 28 de julho de 1968. O correspondente do The Observer, John de St. Jorre também dedica um comentário à peça de propaganda do governo militar da Nigéria (1972:258).

 

Amanhã, a terceira parte (“A guerra civil”) deste artigo em série estará disponível.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A guerra do Santos: 50 anos de uma viagem histórica – O jogo de Calabar (parte II). Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 18, 2019.
Leia também: