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“A minha sorte grande”

Véspera da final do campeonato Estadual de Futebol do Rio de Janeiro de 2019, um jornal carioca de grande circulação afirma as redes sociais do Clube de Regatas Flamengo receberam um suposto veto ao uso do termo “Festa na Favela”. Motivo: foi aventado o entendimento de que o termo traz referência à violência.

O canto “Festa na Favela” é normalmente cantado a plenos pulmões pela torcida flamenguista em comemorações. Ela reproduz um trecho da canção “Sorte Grande”, gravada pela cantora baiana Ivete Sangalo em 2003, no álbum Clube Carnavalesco Inocentes em Progresso. O trecho apropriado pelos torcedores rubro-negros substitui a versão original de um refrão cantado como “Poeira, poeira, poeira / Levantou poeira” por “Favela, favela, favela. Festa na favela”.

Inicialmente entoado nas arquibancadas pela Torcida Jovem do Flamengo, sendo posteriormente adotada por todas as torcidas organizadas e torcedores em geral, trata-se de uma resposta afirmativa dada ao que seriam cantos que se propõem a qualificar a torcida do Flamengo pejorativamente como ‘favela’.

“Festa na Favela” afirma a diversidade étnica e social que compõe o grupo e reforça a autoestima da origem de parte significativa dessas pessoas em classes populares.

Independente se foi a empresa responsável pelas redes sociais ou a administração do clube, ‘confundir’ pobreza ou simplicidade com violência denota grande nível de desconhecimento ou até mesmo de preconceito.

Em resposta à matéria, Flamengo clube publicou em seu site um Nota Oficial em seu site intitulada “É mentira o veto à expressão festa na favela”.

“Certamente há muito tempo.

Não somente nos jornais do referido grupo, como também na grande maioria dos veículos de comunicação e nos comunicados de empresas/instituições.

Já tem tempo que favela não é mais uma palavra utilizada na comunicação institucional.

Estranhamente, neste sábado, o jornal Extra faz uma matéria sobre o Flamengo com a expressão “festa na favela” sendo apresentada num contexto parcial e tendencioso, numa clara tentativa de se criar um possível constrangimento com a torcida um dia antes da decisão do Campeonato Carioca.

Coincidentemente a mesma tentativa que foi feita pouco tempo antes da decisão da Taça Rio, quando se deu um enorme destaque à “demissão de um psicólogo“.

O porquê disto? Só o veículo para responder.

A matéria, ao pegar parte de uma conversa de profissionais do clube – que deveria ser restrita a eles –  tenta passar a ideia que “existe um veto“ na utilização da expressão “festa na favela”. Não é verdade.

O fato é que um canto alegre e contagiante da torcida não necessariamente precisa ser a melhor maneira para a comunicação da Instituição.

Não usá-la regularmente na comunicação Institucional não significa nenhum veto ao termo ou desvalorização de uma tradição da torcida.

Esta é a verdade. Nada mais que isto.

Na realidade mais que palavras ou promessas, o Flamengo de hoje se mostra cada vez mais forte, inclusivo, praticando preços altamente populares, trazendo o seu torcedor de volta ao Maracanã e tendo, disparado, os maiores públicos do futebol brasileiro neste ano.

Para a tristeza daqueles que apostaram no contrário”.

A torcida do Flamengo fez um mosaico Festa na Favela. Foto: Alexandre Vidal/Flamengo.

A nota afirma que o veto à utilização “Festa na Favela” não existiu. Apela para preceitos de comunicação institucional e, aí sim, diz “não ser a melhor maneira” de falar da torcida. Torcida, apontada de maneira contínua como um enorme patrimônio da instituição Flamengo.

O clube se posicionou falando em ser “inclusivo” e mesmo em praticar “preços altamente populares, trazendo o seu torcedor de volta ao Maracanã”. O termo “preços altamente populares” é contestável, mas é verdade que o modelo anterior era absolutamente elitista e a flexibilização do preço dos ingressos é um dos fatores responsáveis pelo aumento da média de público em jogos do clube. A nota também cita ‘em passant’ da origem da informação: colhida em uma conversa informal de um aplicativo de comunicação. Tudo para desqualifica-la.

Mas por que a comoção, a indignação e todo esse debate?

Simples, tudo está baseado na contradição que sustenta a representação sobre o Clube de Regatas Flamengo. A instituição tem origem notadamente burguesa, cuja sede está localizada hoje em dia em localidade de grande valor imobiliário, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas (pudera, é um clube originalmente de remo), mas que ganhou notoriedade pela massa de torcedores, principalmente identificados pelos oponentes pelas origens populares. Daí a utilização do termo ‘favela’ como pejorativo.

A instituição fundada por uma elite branca e burguesa tem seu ‘modus operandi’, tem seus sócios e uma frequência própria e elitista em sua sede. Esse é o Flamengo do CNPJ, que faz contratos, que traça estratégias de marketing, o “Flamengo da gestão”. Do outro lado, está o clube do imaginário dos torcedores mais simples e espalhados pelos país, o Flamengo que começou a ser construído na década 30, concomitante e posterior ao discurso nacionalista do Estado Novo. E isso também se deve a ações de marketing de décadas atrás que passavam a mensagem sedutora de que todos poderiam ser flamenguistas, independente de classe social, étnica, unidade da federação ou qualquer outra possível identidade.

Ao mesmo tempo que o clube se manteve elitista, ganhou uma torcida diversa étnica e socialmente, presente nas classes populares de norte a sul do Brasil. Enquanto essa mesma elite procura manter sua distinção encastelada em sua sede e ato internos, a representação criada em torno do clube ganhou o termo “nação” devido a seu alcance diverso, indo da mesma favela até seu endereço nobre à beira da Lagoa.

Logo, a suposta condenação à “Festa na Favela” traz à tona a contradição cotidiana de um dos maiores clubes do país: “O Flamengo do CNPJ x Flamengo da Nação, o Flamengo favelado”.

Ironicamente, antes do início da final do Campeonato de 2019, a torcida expôs um enorme mural onde se lia “Festa na Favela”. Após a vitória na partida que conferiu ao clube o seu trigésimo quinto título estadual, a comemoração foi completa. Entoou-se o canto com a coreografia que lhe acompanha, com camisas agitadas em círculo sobre as cabeças dos torcedores. Não há perigo em dizer que “a sorte grande”, nome original da canção, é do clube em ter essa massa de torcedores que amplia o poder de mercado do “Flamengo do CNPJ”, pela capacidade de ter seus produtos consumidos. Pena mesmo, é que a referência a um lugar onde vivem seus torcedores mais pobres seja confundido de maneira leviana com violência, como se atos violentos dependesse exclusivamente da pobreza.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Vicente Magno Figueiredo Cardoso

Um jornalista que leva seu bairro de origem, Bangu, do subúrbio carioca para todos os cantos. Além de ser um devotado amante do futebol e do samba. Já andou no universo torcedor de França e Estados Unidos, além do brasileiro.

Como citar

CARDOSO, Vicente Magno Figueiredo. “A minha sorte grande”. Ludopédio, São Paulo, v. 118, n. 24, 2019.
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