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À moda Bangu: estigmas, futebol e lazer

Quem nunca ouviu a expressão à moda Bangu? Certamente, grande parte da sociedade carioca já ouviu ou reproduziu tal expressão. Na verdade, a locução adverbial de modo (à moda Bangu), cotidianamente presente na linguagem popular, e, em particular, relacionada ao futebol, expressa de certa forma a configuração do bairro arrabaldino: sem compromisso, amador ou de qualquer jeito. Isto é, “vamos fazer isso como se faz em Bangu”.

De fato, a constituição do bairro sempre apresentou peculiaridades. A região teve como primeiro proprietário o negociante português Manoel de Barcelos Domingos, que fundou, em 1673, a fazenda Bangu, tornando-a essencialmente produtiva. A região era basicamente rural, formada por fazendas que se dedicavam à produção de açúcar, aguardente e produtos que se destinavam à exportação pelo porto de Guaratiba, bem como ao mercado interno. Com a Proclamação da República, um novo fator veio alterar a condição exclusiva da agricultura da região: a construção de uma fábrica de tecidos.

Fundada em 1889, a Companhia de Progresso Industrial do Brasil teve um papel fundamental no desenvolvimento do bairro, já que levava o progresso e a modernização a um espaço ainda caracterizado pelo modo de vida das fazendas, transformando-o, rapidamente, de rural a urbano fabril.

Concomitante ao crescimento do bairro, a oferta de lazer foi sendo diversificada e logo clubes esportivos e dançantes foram caindo no gosto dos moradores. As principais bandas da região eram compostas por trabalhadores da fábrica, fazendo-se presentes em todos os eventos e bailes organizados na região . Suas festas foram, por muito tempo, “motivo de orgulho” para a população local, atraindo gente de todas as cores, crenças e idades, como expusera, em seu caderno de memórias, o Sr. Murillo Guimarães, um antigo frequentador dos clubes do bairro.

Além do mais, os clubes que organizavam tais eventos evidenciavam a existência de contextos diferenciados, sobretudo, na composição social de seus associados. Como definiu, por exemplo, o primeiro artigo dos estatutos do Clube Flor da União, uma das principais agremiações de Bangu: “o qual pode pertencer todas as pêssoas desde que sejão(sic) dignas e honestas sem distinção de nacionalidade, religiões, côr, ect. ect.” .

A partir desse exemplo, acreditamos que, ao explicitar em seus estatutos a intenção de representar um quadro mais geral, sem qualquer tipo de distinção, o clube apresentava um meio de afirmação das relações étnicas e sociais existentes no bairro. Talvez não seja exagero vermos no próprio uso do nome “união” um símbolo que revelava não somente as características da localidade – na qual ex-escravos e seus descendentes se misturavam a brancos pobres e imigrantes de várias nacionalidades –, como também o sentimento de pertença que despertava em seus associados, apontando a centralidade que esses elementos de sociabilidade e lazer assumiam na vida dos habitantes da região. Outro exemplo que compõe essa relação está presente na composição da sua equipe de futebol, Bangu Athletic Club, que teve Francisco Carregal em suas fileiras: filho de pai branco, português, e mãe negra, brasileira. Ou seja, um mulato.

Bangu
Equipe do Bangu. Foto: O Malho (reprodução).

Logo, a presença de Carregal geraria protestos entre os adversários. Em 18 de maio de 1907, pressionada por clubes da zona Sul da cidade, a Liga Metropolitana proibiu a presença de atletas negros nos times:

“Comunico-vos que a diretoria da Liga, em sessão de hoje, resolveu por unanimidade de votos que não serão registrados como amadores nesta Liga as pessoas de cor. Para os fins convenientes ficou deliberado que a todos os clubes filiados se oficiasse nesse sentido a fim de que cientes dessa resolução de acordo com ela possam proceder” .

Discordando de tal posição, o Bangu se desligou da entidade. Dessa forma, percebe-se que a política adotada pelos grêmios da região demonstra a composição variada que os caracterizavam. Suas ações produziam um estilo de vida singular, traduzindo o momento em que um grupo projetava simbolicamente sua representação do mundo. Além disso, eles constituíam no espaço a noção de pertencimento entre sujeito e bairro, compartilhando experiências e extratos da vida coletiva. Tal diversidade resultou em uma vida cultural dinâmica e multifacetada, marcada por um bairro que ainda tecia novas redes de sociabilidade, isto é, à moda Bangu.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Nei Jorge dos Santos Junior

Professor, suburbano de Campo Grande e botafoguense. Doutorando em Lazer pela UFMG e mestre em História Comparada na UFRJ.

Como citar

SANTOS JUNIOR, Nei Jorge dos. À moda Bangu: estigmas, futebol e lazer. Ludopédio, São Paulo, v. 69, n. 5, 2015.
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