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A modernização da várzea em Belo Horizonte

Raphael Rajão Ribeiro 21 de agosto de 2020

Na série de textos que tenho publicado na sessão arquibancada, compartilho com os leitores alguns dos resultados do estudo integrante do Inventário do Futebol Amador em Belo Horizonte realizado entre 2016 e 2018. No artigo anterior examinei as reconfigurações do circuito de competições da várzea local, o qual estrutura o calendário das equipes mais tradicionais da cidade. Neste artigo, explorarei as transformações da várzea frente as inovações sociais e tecnológicas: a maior participação feminina, as mudanças nas formas de torcer, o impacto das redes sociais na marcação dos jogos e a polêmica acerca da adoção da grama sintética.

A renovação de clubes é uma constante no futebol amador. A cada momento novos times se formam, tentam trilhar o caminho rumo à oficialização e o ingresso nas competições de prestígio, em alguns casos, ou se mantém como organizações de cunho recreativo, sem grandes ambições, em outros. De todo o modo, a demanda por adversários e jogos segue presente. Muitos clubes, inclusive, conseguem manter horários fixos em campos da cidade, para o que sempre estão em busca de oponentes.

Nesse sentido, uma antiga tradição permanece, a “Federação”. O ponto de encontro na Rua Rio de Janeiro, ainda hoje, aglomera participantes do futebol de várzea em busca de adversários para seus amistosos. Contudo, não se observa a mesma efervescência do passado. Ali se concentram alguns mais velhos, adaptados àquele sistema, além de novatos, em busca de inserção no meio.

Uma inovação tecnológica vem gradativamente substituindo o antigo hábito: as redes sociais. Em especial o Whatsapp tem sido mobilizado para a marcação de partidas, com a criação de incontáveis grupos com essa finalidade. Da mesma forma, os “marcadores” seguem em atividade, oferecendo o serviço de agendamento de jogos.

A várzea sempre desempenhou um papel importante no desenvolvimento do futebol feminino em Belo Horizonte. Atividade proibida entre 1941 e 1979, ela era experimentada mesmo antes de sua liberação. Praticamente sem estrutura profissional, foi no meio amador que boa parte das atletas se formou. A partir dos anos 2000, ganhou espaço em competições, com destaque para a Copa Centenário.

Há um número crescente de times femininos nos clubes de várzea da cidade, o que implica na inclusão cada vez maior de mulheres nesse o universo, o que não ocorre sem tensões, que vão desde a ausência de infraestrutura para acolhê-las, como vestiários e banheiros femininos, até disputas pelos horários de utilização dos jogos. Há casos de clubes que são especializados na formação de atletas mulheres.

Para além das incontáveis demonstrações de machismo, outro problema enfrentado é a dificuldade de acessar postos de comando, que normalmente cabem aos homens. A falta da categoria feminina em competições de maior visibilidade como a Copa Itatiaia e o Torneio Corujão também dificulta a afirmação dessa expressão.

Equipe feminina do Racing Esporte Clube, anos 1980. Acervo: Racing Esporte Clube.

As experiências em torno do futebol amador acabam tendo o universo profissional como um referencial que não pode ser ignorado. Nessa perspectiva, os desdobramentos dessa cultura esportiva popular acabam sendo atravessados pela expressão espetacularizada do jogo. É o caso, por exemplo, das torcidas das agremiações varzeanas, que reproduzem a linguagem daquelas associadas aos times de renome.

A estruturação de torcidas organizadas para clubes de futebol amador, com a confecção de uniformes, bandeiras e montagem de baterias mimetiza o movimento percebido nas arquibancadas dos estádios. Seus cânticos referem-se a músicas que embalam as partidas profissionais. Em um contexto de criação de arenas e elitização do público, a várzea tem sido uma alternativa para que juventudes periféricas possam ter experiências torcedoras.

No meio varzeano, um raro fenômeno pode ser presenciado, já que rivais na esfera profissional, pertencentes a torcidas organizadas opostas, confraternizam-se nas acanhadas arquibancadas dos campos do futebol amador, em favor da agremiação do seu bairro. Cantos característicos de uma ou outra torcida do universo profissional são entoados, com substituições pelo nome da equipe local.

Concentração da torcida do Roma Esporte Clube, 2016. Foto: Ricardo Laf.
Bandeira do São Bernardo Esporte Clube, 2016. Foto: Mariana Botelho.
Torcida do São Bernardo Esporte Clube, 2016. Foto: Mariana Botelho.
Bateria da torcida do São Bernardo Esporte Clube, 2016. Foto: Mariana Botelho.

Sua implantação aumenta a capacidade de uso do espaço, já que muitas pessoas não se dispõem a atuar em campos de terra. Esse aumento de demanda implica em melhoria da arrecadação dos clubes. Por fim, uma inovação tecnológica que impacta e gera inúmeros comentários e especulações no meio varzeano é a grama sintética. De manutenção relativamente simples, ao contrário da natural, que demanda enorme quantidade de água e replantio regular, ela é um caminho para a substituição do tradicional piso de terra. Contudo, seu custo de implantação é alto, cerca de 500 mil a 1 milhão de reais, o que dificulta a transição. Apenas dois campos administrados por equipes de futebol amador têm esse piso hoje em Belo Horizonte.

Para alguns, a maior procura e o eventual encarecimento do preço de custo, pode ser prejudicial, já que desfavoreceria os clubes das comunidades com baixa capacidade financeira. Para outros, seria uma saída para uma gestão mais sustentável dos espaços, que conseguiriam se manter de maneira autônoma.

Vale destacar que a maior parte dos campos está em terrenos da Prefeitura, em regime de permissão de uso, no qual é vedada a geração de recursos a partir do espaço. Por outro lado, todos os custos de manutenção ficam a cargo do cessionário. Nessa medida, os clubes vivenciam um forte impasse para conservarem os espaços dos quais usufruem. Se já enfrentam dificuldades para preservar, a modernização, com a implantação da grama sintética, torna-se uma perspectiva distante. Assim, apenas por meio de parceiros ou recursos públicos seriam capazes de efetivar a melhoria.

No caso do Pitangui Esporte Clube, essa alteração foi possível. A entidade ocupa campo de sua propriedade, que foi doado pela Prefeitura de Belo Horizonte na década de 1960. Há mais de 5 anos, por meio de parceria com empresa privada reformou todo o local, que recebeu grama sintética e passou a ser explorado com o aluguel de horários de segunda a sábado, sendo o domingo reservado ao uso gratuito pela agremiação. Nessa medida, o Pitangui recebe um valor fixo para seu custeio e tem a prerrogativa de uso no dia de domingo, dia em que faz seus jogos, bem como cede o espaço a outras equipes da Lagoinha e da Pedreira Prado Lopes. Durante a semana, mantém atividades de seus times de base, em acordo com os parceiros do empreendimento.

Dependências do Pitangui Esporte Clube, com campo de grama sintética, 2016. Foto: Mariane Botelho.

Esse se trata de um caso atípico frente à realidade da maioria dos times cujo campo não é de sua propriedade. Mas inovações como a grama sintética são realidades a serem enfrentadas pelos clubes, que lançam desafios para a preservação e a continuidade da prática.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

RIBEIRO, Raphael Rajão. A modernização da várzea em Belo Horizonte. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 46, 2020.
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