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A pior noite da história do Morumbi

Na noite de 27 de outubro de 2004, Serginho, então zagueiro titular do São Caetano, o clube sensação do futebol brasileiro no início dos anos 2000, caiu no gramado do estádio do São Paulo e morreu em razão de um mal súbito, diante dos companheiros de profissão desesperados e de milhares de torcedores atônitos.

Até àquela noite, ninguém, no Brasil, havia pensado que o futebol, a alegria do povo, poderia matar e menos ainda que atingisse a elite do futebol brasileiro como aconteceu com Serginho.

Antes da fatídica partida, porém, dois casos semelhantes assombraram o mundo da bola. No ano anterior, em junho, Marc-Vivien Foé, jogador da Seleção Camaronesa, fora o primeiro caso de um jogador de futebol a morrer em campo que ganhou grande repercussão.

O camaronês sofrera um ataque fulminante durante o jogo entre Camarões e Colômbia, válido pela semifinal da Copa das Confederações de 2003. Imagens da agonia do atleta rodaram o planeta com Foé revirando os olhos, tomado por uma convulsão, em seus últimos instantes de vida.

Poucos meses depois, em janeiro de 2004, Miklós Fehèr, atacante do Benfica, sofreu do mesmo fim trágico. Mais uma vez o espetáculo macabro, com imagens da cara da morte, rodou o mundo mostrando o húngaro arcado com as mãos nos joelhos, pouco antes de desabar desacordado, vítima de uma parada cardíaca fulminante.

O contexto da tragédia

Na noite de 27 de outubro de 2004, uma quarta-feira, São Paulo e São Caetano tinham confronto marcado no gramado do Cícero Pompeu de Toledo. Válido pela 38ª rodada do Campeonato Brasileiro, o jogo colocava frente a frente o quarto — São Paulo — e o quinto — São Caetano — colocados na tabela do nacional, ambos com 65 pontos.

Durante a primeira etapa, apesar do jogo equilibrado, o Tricolor foi melhor, mas não abriu o placar e o 0 a 0 encerrou os primeiros 45 minutos, resultado incomum para dois times qualificados.
O São Paulo, dirigido por Emerson Leão, era o embrião do timaço que conquistaria a América e o mundo no ano seguinte. O São Caetano era o atual campeão paulista e mantinha a base do incrível time que surpreendeu o Brasil numa meteórica ascensão no início dos anos 2000.

Serginho era um dos líderes do Azulão do ABC, o zagueiro participou das campanhas da Copa João Havelange 2000 e do Brasileirão 2001, em que o São Caetano foi vice-campeão nacional. Também participou do vice-campeonato da Libertadores, em 2002.

No auge da forma física, aos 30 anos, Serginho envergava a camisa 5 do Azulão e dava segurança defensiva ao time. O que ninguém sabia, porém, é que no início daquele ano, o zagueiro descobriu um problema cardíaco nos exames de pré-temporada.

A pior noite do Morumbi

O segundo tempo da partida no Morumbi começou da mesma forma que terminou a primeira etapa. O São Paulo dominou as ações até que aos 14 minutos, a imagem de Serginho desabando nas pernas de Grafite chamou atenção.

No primeiro momento, houve quem pensou que fosse cera, mas Serginho não fazia o perfil do jogador catimbeiro. Logo Grafite percebeu a gravidade e começou a acenar em busca de socorro, o goleiro Silvio Luiz se aproximou e em segundos o caos e o desespero tomaram conta dos jogadores.

Torcedores atônitos acompanhavam das arquibancadas sem saber exatamente o que acontecia, mas em pouco tempo, por meio das emissoras de rádio, ficaram sabendo do que acontecia com o jogador do São Caetano e acompanharam, apreensivos, o atendimento.

Euller e Grafite rezavam no gramado, Fabrício Carvalho era um dos que choravam copiosamente. O nervosismo era evidente entre profissionais calejados do futebol. Marco Aurélio Cunha, então médico do São Paulo, era um dos mais preocupados e declarou:

“Ele está com uma parada cardiorrespiratória. Tudo está sendo feito para que ele seja reanimado. O caso dele é bem grave. A situação é crítica”.

Analisando as imagens é possível perceber que não havia um protocolo definido para a situação e muitas e a desordem fez com que as coisas não acontecessem como o esperado, por exemplo, a demora para encontrar a pessoa responsável pelas chaves da ambulância. Depois de tentarem exaustivamente a reanimação do jogador no gramado, a equipe médica decidiu remover Serginho, de ambulância, para o hospital São Luis, nas proximidades do estádio do Morumbi.

A comoção era evidente entre os jogadores e comissões técnicas, os capitães das suas equipes comunicaram ao árbitro que os atletas não tinham condições emocionais para dar continuidade ao jogo. Assim, Cleber Wellington Abade decidiu pela suspensão da partida.

Antes de deixarem o gramado, jogadores e as comissões técnicas dos times se juntaram no centro do campo e, de mãos dadas, fizeram uma oração por Serginho, enquanto a torcida são-paulina gritava o nome do zagueiro. Horas depois, porém, a notícia que ninguém queria chegou: Serginho estava morto, vítima de uma parada cardiorrespiratória.

Os desdobramentos

O episódio gerou forte comoção no meio futebolístico e mudou sensivelmente o controle de clubes com a saúde de seus atletas. A exigência de ambulâncias equipadas com desfibriladores em todos os jogos profissionais no Brasil passou a valer após a morte de Serginho.

Uma semana depois, no dia 3 de novembro, a CBF determinou que as equipes terminassem a partida. Mesmo com protestos dos próprios jogadores que classificaram a sequência da partida como “falta de respeito”, a meia hora de jogo que faltava foi jogada apenas uma semana após a morte do zagueiro.

Com o claro abalo emocional dos jogadores, os 30 minutos de bola rolando apresentaram 6 gols e o placar apontou São Paulo 4 a 2 São Caetano, com tentos de Júnior, Rodrigo Costa, Danilo e Grafite para o São Paulo, e Marcinho e Ânderson Lima para o Azulão.

Dininho, companheiro de zaga de Serginho, falou em entrevista à ESPN, sobre a sensação na partida:

“O enterro dele foi no sábado [em Coronel Fabriciano-MG], vários jogadores foram, e na quarta a gente estava em campo de novo. O jogo não podia ter continuado, foi uma indignação do elenco. Preferíamos ter dado os pontos para o São Paulo.
Foi muito inoportuno por parte da CBF, pois tentamos mudar a partida e não conseguimos. Foi uma falta de respeito da parte deles, já que ninguém queria jogar. Eu entrei em campo e senti uma coisa que nunca tinha sentido antes: eu olhava para o chão e ainda via o Serginho lá caído, morto. Eles continuaram o jogo como se nada tivesse acontecido! Em 20 minutos, tomamos quatro gols, não estávamos com cabeça. Para não prejudicar ainda mais o clube no tribunal, nós tivemos que acatar a decisão. Mas só jogamos porque fomos obrigados, não queríamos entrar em campo”.

Porém, a cena da substituição de Serginho, no complemento da partida, está entre as imagens mais tristes do futebol brasileiro. A ação de levantar a placa indicando a saída do camisa 5 já morto foi um ato violento, como se fizessem questão de matá-lo de novo.

Depois da comoção pela morte, a família de Serginho precisou lutar na justiça pelo seguro de vida do jogador. As seguradoras alegavam que o zagueiro sabia do risco que corria e “agiu de má-fé”, por isso não pagariam os valores. Apenas em junho de 2012, oito anos depois da morte, a família ganhou na justiça o direito de receber o seguro.

O São Caetano também foi punido e perdeu 24 pontos, só não foi rebaixado por ter feito boa campanha no Brasileirão que ainda era disputado por 24 clubes. O Azulão terminou a temporada com 77 pontos em quinto lugar, mas com a perda da pontuação caiu para a 18ª posição.

Nairo Ferreira de Souza, presidente do São Caetano, e Paulo Forte, médico do clube, também foram punidos. Investigados criminalmente, responderam inquérito por homicídio culposo, mas o caso foi arquivado. Esportivamente, porém, sofreram suspensões de quatro e dois anos, respectivamente, mas tiveram as penas reduzidas pela metade.

O São Caetano depois de Serginho

Talvez a maior punição tenha acontecido no âmbito esportivo onde inexplicavelmente, ou de forma autoexplicativa em razão de tudo que houve, o São Caetano despencou na mesma velocidade em que subiu à elite do futebol brasileiro. Em poucos anos após a morte de Serginho, o clube já estava sem divisão nacional e sequer figurava entre os melhores times paulistas. A atual situação do clube é de total ostracismo comparada ao que o Azulão do ABC representou no início dos anos 2000.

No último sábado, sob a presidência do mesmo Nairo Ferreira, o São Caetano sofreu uma de suas maiores vergonhas ao perder por 9 a 0 para o Pelotas, pela Série D. Os jogadores profissionais não recebem salários a quatro meses e se recusaram a entrar em campo, a diretoria mandou os garotos do sub-20 ao gramado e o resultado foi um vexame que só foi menor que a nota redigida pelo presidente do clube após o desastre.

Engana-se quem pensa que Serginho assombra o São Caetano, pois cabe o terror cabe aos dirigentes que ressurgiram na vida do clube mesmo após a morte do jogador. Na verdade, Serginho acabou servindo de exemplo para mudança de algumas práticas no futebol brasileiro. Depois da morte prematura, as ambulâncias presentes nos jogos devem ter equipamentos para tratar uma parada cardíaca e são obrigatórios acessos rápidos do veículo ao gramado.

Além disso, a rotina de exames foi intensificada e ao menor sinal de algo errado, a equipe médica do clube inicia uma investigação aprofundada. Jogadores como o volante do Atlético Mineiro, Adílson, que se aposentou recentemente, aos 32 anos, depois de descobrir um problema cardíaco, têm de agradecer a Serginho, um bom jogador, um líder leal ao time que o projetou para o futebol e um ser humano que pagou com a vida por uma sucessão de erros e falhas no tratamento de sua situação.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. A pior noite da história do Morumbi. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 63, 2020.
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