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A Questão Regional e a falácia da Copa do Brasil “democrática”

Emanuel Leite Júnior 14 de maio de 2021

Em texto publicado neste espaço a 20 de abril de 2021, a camarada de ReNEme Hevilla Fernandes nos trouxe uma interessante análise acerca do fenômeno dos “mistos e anti-mistos” entre as torcidas do Nordeste, demonstrando como essa questão está diretamente ligada às desigualdades regionais do Brasil (FERNANDES, 2021). Pegando carona no ensaio de Hevilla, pretendo aqui discutir um outro aspecto da “Questão Regional” (OLIVEIRA, 1993) e de como a Copa do Brasil, embora seja celebrada por muitos como a “competição mais democrática do país” e “o caminho mais curto para a Libertadores”, é também sintoma da dominação hegemônica do centro do poder político, econômico e cultural do país e, portanto, igualmente retrata e reforça as assimetrias regionais.

Richard Giulianotti argumenta que “o futebol é uma das grandes instituições culturais, que forma e consolida identidades no mundo inteiro” (GIULIANOTTI, 2010). O futebol, portanto, reflete seu contexto social, político e econômico. É por essa razão que da mesma forma como o desenvolvimento e a expansão do capital no país, principalmente a partir da exploração cafeeira, geraram enormes assimetrias regionais, criando uma relação de centro-periferia interna, o futebol também evidencia não apenas essa desigualdade, como também a subordinação de uma região dominada por uma dominante.

O centro do poder global relegou à periferia do sistema econômico a mera condição de fornecedor de alimentos e matérias-primas, não havendo espaço para que os países novos desenvolvessem suas indústrias (PREBISCH, 1962). No futebol brasileiro, a concentração do poder econômico fez com que as regiões periféricas se tornassem essencialmente fornecedoras de matérias-primas (atletas) para os clubes das regiões do centro e, em muitos casos, meras consumidoras do produto final (massificado pela alta exposição midiática, fruto da hegemonia cultural).

Do mesmo modo que a “Questão Regional”, como afirma Francisco de Oliveira, “é, antes de tudo e sobretudo, o caso de uma unidade nacional mal resolvida” (OLIVEIRA, 1993, 45), o aprofundamento dos desequilíbrios regionais futebolísticos também se deve a um processo de integração nacional que poderia ter sido implementado de outra maneira. Sabemos, porém, que nada disso é fruto do acaso, afinal, “o subdesenvolvimento é um negócio, para os que tiram proveito dele através do capitalismo dependente” (FERNANDES, 2008, p. 54).

Aliás, esta é a lógica da expansão do capitalismo. Como aponta Rosa Luxemburgo, para se expandir o capitalismo precisa de uma fronteira externa, de algo fora dele, para colonizar, devastar e absorver (LUXEMBURGO, 1970). O mercado esportivo também precisa desta fronteira externa. É por isso que as elites do centro do sistema nacional buscam se expandir para os territórios da semiperiferia e periferia brasileiras como forma de preservação e reserva de mercado.

Ao mesmo tempo em que clubes da semiperiferia nacional – como no caso do “CEPEBA” (Ceará, Pernambuco e Bahia), termo cunhado pela turma do podcast Baião de Dois – tentam se preservar no mercado nordestino, fagocitando os menores de seus estados e dos estados vizinhos. E aqui se faz necessário destacar particularmente Bahia, Vitória e Sport, que por anos foram associados ao Clube dos Treze, exercendo, assim, o que Francisco de Oliveira descreve como oligarquias regionais aliadas da burguesia (no caso, do C13) “que, em determinados período e processo, caminharam em razão de seus interesses (…) para liquidarem seus concorrentes locais e regionais na estrutura de poder econômico e político” (OLIVEIRA, 1973, p. 51). Comportamento que não surpreende, afinal os capitalistas menores também vão sendo expropriados, conforme vão se expandindo a centralização e acumulação de capital (MARX, 1990).

Antes de analisarmos como a Copa do Brasil também espelha os contrastes regionais, é importante mencionar a “Questão Meridional”, trazida por Antonio Gramsci. No Caderno 25 dos “Cadernos do Cárcere”, Gramsci apresenta os mecanismos de dominação do Norte da Itália para manter o Sul do país subordinado. Com as devidas diferenças, pode-se afirmar que há semelhança na relação de dominação hegemônica entre Norte vs. Sul italianos e Sul/Sudeste vs. Nordeste brasileiros.

Gramsci sustenta a necessidade de se estudar as histórias dos grupos subalternos e elabora critérios metodológicos para tal (GRAMSCI, 2002, pp. 139 e 140). E o Nordeste brasileiro é também alvo de preconceitos e estereótipos. Não por acaso, assim como no futebol brasileiro há a hegemonia do Sudeste(/Sul), no italiano é do Norte. Das 117 edições do Campeonato Italiano, os clubes da Lombardia e Piemonte (mais ricas do país) conquistaram 89 títulos (o número sobe para 107 com as conquistas de Veneto, Liguria e Emilia-Romagna, também do Norte). Em compensação, as regiões que compõem o Mezzogiorno (Sul) somam apenas três Campeonatos.

Copa do Brasil

Copa do Brasil
Copa do Brasil. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

Criada em 1989, a Copa do Brasil sempre foi tratada como a “competição mais democrática do país” (por reunir clubes dos 26 estados e do Distrito Federal) e o “caminho mais curto para a Libertadores” (por ser mata-mata e porque para chegar ao título se disputam menos jogos do que o Brasileirão, quando este ainda tinha mata-mata). O que não deixa de ser verdade que a Copa do Brasil. Afinal, é o torneio nacional de primeiro escalão que permite a participação de clubes de estados periféricos e semiperiféricos. Bem como, por ter menos jogos, é o menor trajeto até a Copa Libertadores da América.

O problema está nos detalhes. Por exemplo, antigamente nas duas primeiras fases se o time visitante vencesse por dois ou mais gols no jogo de ida, estaria classificado. Esta regra mudou e de uns tempos para cá a primeira fase é jogada em partida única, com a equipe menor ranqueada atuando em casa, mas o time visitante joga pelo empate. Ou seja, beneficia-se os mais fortes.

Porém, a regra que mais privilegia os que já são privilegiados surgiu a partir da edição de 2013, quando os participantes da Libertadores passaram a disputar também a Copa do Brasil. O problema é que estas equipes ganharam o privilégio de entrar diretamente nas oitavas de final da Copa do Brasil. Seis das 16 equipes tinham vaga fixa. E nas quatro edições em que isso aconteceu sempre foram clubes dos estados que historicamente detiveram a hegemonia do futebol nacional: Rio-São Paulo, Rio Grande do Sul-Minas.

Esta regra foi alterada a partir de 2017, com a ampliação de vagas fixas de seis para 11. Isso mesmo, dois terços dos participantes das oitavas de final entram diretamente nesta fase. Aqui, entretanto, abriram-se vagas para os campeões da Copa do Nordeste, Copa Verde e Série B. Nas quatro edições em que isto aconteceu, apenas duas vezes Nortes/Nordeste/Centro-Oeste tiveram três de 11 clubes, ou seja, apenas um clube para além das vagas fixas dos seus campeões regionais: foi em 2019 com o Fortaleza campeão da Série B 2018 e 2017 com o Atlético-GO campeão da B 2016.

Evans (2014), em revisão da literatura existente, apresenta diversos métodos de medição do balanço competitivo. Dentre eles, vamos buscar em Goossens (2006) o modelo do Top 3, aqui adaptado para Top 4 (semifinalista) e a concentração de títulos a partir do total de títulos por região e percentual de títulos (EVANS, 2014), mas também o número de campeões e vices (e percentual).

Um primeiro dado que salta à vista é que a hegemonia do Sudeste, assim como acontece no Campeonato Brasileiro, é indiscutível em todas as escalas: mais campeões, mais finalistas e mais semifinalistas que todas as outras regiões somadas. Sim, é verdade que o domínio Sudestino é menor do que no Campeonato Brasileiro, principalmente na era dos pontos corridos (100% dos títulos), mas existe e é inegável: 69% dos títulos da Copa do Brasil ficaram nas mãos de clubes do Sudeste (22 em 32). Se ampliarmos a questão regional da dominação hegemônica brasileira para Sudeste/Sul, vemos que estas duas ficaram com 31 dos 32 troféus.

Apenas um clube da (semi)periferia do Brasil se sagrou campeão da “competição mais democrática do país”: Sport Recife (um dos três Nordestinos membros do C13), em 2008. A título comparativo, na história do Campeonato Brasileiro desde 1959, apenas o Nordeste conseguiu furar a hegemonia do Sudeste e do Sul com foram três títulos Brasileiros: Bahia (1959 e 1988) e Sport (1987). Se considerarmos o período pós-1971, o Nordeste tem 6% dos títulos Brasileiros e apenas 3% da Copa do Brasil.

A limitação democrática da Copa do Brasil também se evidencia nos finalistas e semifinalistas. Claro, em termos percentuais a Copa do Brasil tem representatividade maior das regiões periféricas do que o Campeonato Brasileiro pós-1971. Enquanto no Brasileirão pós-1971 apenas 3% de campeões e vices são Nordestinos (5% se considerarmos apenas a era dos mata-matas) e 5% da soma de Nordestinos (3%) e Centro-Oeste (2%) nos quatro primeiros lugares (7% na era mata-mata), na Copa do Brasil estes percentuais são: finalistas 9% (6% Nordeste e 3% Centro-Oeste), semifinalistas 13% (7% Nordeste, 5% Centro-Oeste e 1% Norte).

A restrição do caráter democrático da Copa do Brasil se aprofundou, como era de se esperar, com as mudanças elitistas implementadas em 2013. Desde então, há uma hegemonia ainda maior do Sudeste/Sul, com um domínio que não é totalmente absoluto porque o Goiás chegou à semifinal em 2013. O último clube nordestino a atingir a semifinal do torneio foi o Ceará, em 2011.

A competição nacional que mais se aproximou de um modelo mais democrático e inclusivo, por ser menos elitista em seu formato, foi a Taça Brasil (1959-1968). Em 10 edições, o Nordeste conquistou um título (Bahia, 1959), teve seis finalistas (30%) e 13 semifinalistas (32%). Esta é uma discussão que carece de mais espaço. Mas, que em breve estará disponível (só não posso dizer, ainda, onde e quando).

 

Referências

EVANS, R. A review of measures of competitive balance in the “analysis of competitive balance ” literature. Birkbeck Sport Business Centre, 7(2), 1–59, 2014.

FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 5ª edição revista. São Paulo: Global Editora, 2008.

FERNANDES, Hevilla Wanderley. “Misto e anti-misto”: um sintoma das desigualdades regionais no torcer do Nordeste. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 41, 2021.

GIULIANOTTI, R. Sociologia do futebol – dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

GOOSSENS, J. Competitive balance in European football: comparison by adapting measures: national measure of seasonal imbalance and top 3. Rivista Di Diritto Ed Economica Dello Sport, 2, 77–122, 2006.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, volume 5: O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. Trad. Luiz Sérgio Henriques, Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

MARX, Karl. Capital, volume 1: A Critique of Political Economy. Trad. Ben Fowkes. London: Penguin Classics, 1990.

LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital: estudo sôbre a interpretação econômica do imperialismo. Trad. Moniz Bandeira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970

OLIVEIRA, Francisco de. A questão regional: a hegemonia inacabada. Estudos Avançados, 7(18), 43-63, São Paulo, 1993.

PREBISCH, R. O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas principais. Boletín económico de América Latina (Vol. VII). Santiago de Chile: CAPE, 1962

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Como citar

LEITE JúNIOR, Emanuel. A Questão Regional e a falácia da Copa do Brasil “democrática”. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 24, 2021.
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