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A racialização das práticas esportivas e a triste invisibilidade

Fiquei pensando sobre o título da mesa [1] que diz Vidas negras importam e o racismo nas práticas esportivas. Posso retornar as duas sentenças, primeiro, vidas negras importam com uma interrogação, será que importam? Uma postagem nas redes sociais, que utilizo em tom provocativo, diz ser o esporte um espaço onde as vidas negras mais importam.

“O maior no golfe? O maior no basquete? A maior no tênis? O maior da F1? O maior do atletismo? O maior do boxe? A maior na ginástica? A maior no futebol? O maior no futebol? A maior no vôlei? São pretos e pretas”.

Parece paradoxal que com essa notoriedade, os feitos e as realizações desses atletas ainda tenhamos que falar sobre racismo que sofrem. Então, assim chegamos a segunda sentença: o racismo nas práticas esportivas. Em outras palavras, vamos conversar sobre os motivos para permanência ou persistência do racismo mesmo com o reconhecimento dos atletas negros/pretos no esporte.

Nessa caminhada que proponho, gostaria de afirmar que vidas negras importam, e não estamos falando de vidas mais importantes que outras, pois é evidente que todas as vidas importam, estamos falamos de morte porque algumas pessoas morrem com mais facilidade, isto é, são mais desprezadas que outras.

Esporte e suas modalidades

Podemos dizer que o esporte é racista? Como primeira observação, direta, sem muita discussão, vou ser enfático, sim, de maneira geral ele é racista. Pois, como fenômeno social e veículo ideológico da modernidade, propaga valores e ideais aceitos como civilizatórios, muitos deles carregados de preconceitos. Agora, é importante dizer sobre que tipo de esporte estou falando.

Quando pensamos o “campo esportivo” no sentido Bourdieusiano podemos destacar inúmeras áreas interessadas no corpo e suas práticas, como: medicina, treinamento, materiais esportivos e turismo, só para apontar algumas delas. Também podemos identificar o esporte em seus vários nuances: lazer, condicionamento físico (saúde), educação, estética e performance (com rendimento, que já não significa saúde), consumo, amadorismo e profissionalismo.

Vou me restringir aos dois últimos que, neste caso, associo como sinônimos, a partir do ponto em que se vive “do” e “para” o esporte, dedicando boa parte do tempo e recursos à busca do resultado e do reconhecimento, isto é, do alto rendimento.

O esporte geralmente é considerado democrático, mas precisamos reconhecer seu lado excludente. Ele é considerado democrático por disseminar práticas que se tornam populares, muitas ligadas à educação, ao lazer e ao condicionamento físico. Assim, parece que algumas modalidades são mais acessíveis, logo democráticas, um pensamento muito comum. No entanto, quando identificamos o esporte como democrático, esquecemos que muitas modalidades necessitam de equipamentos, instalações e de tempo para sua prática.

Tomemos duas modalidades como exemplo: tênis e natação. Quantas quadras ou piscinas estão em espaços públicos em nossas cidades? Em nossas escolas públicas? Onde vamos encontrar com maior facilidade essas instalações? Em grandes escolas privadas ou clubes sociais. Outros esportes que podemos incluir nesse grupo são o skate, o surfe e o ciclismo. Embora os espaços para sua prática possam ser considerados acessíveis, os equipamentos, o vestuário, os acessórios e os deslocamentos para os locais de treinamento requerem um aporte financeiro nem sempre disponível. Bom, parece ficar nítida uma questão ligada ao acesso e que destaca um recorte social e econômico.

Portanto, a maior ou menor presença de atletas negros em determinadas modalidades não é uma questão genética, ela é social e econômica. Os ideais racistas associam o reduzido número de atletas negros em determinadas modalidades, com uma suposta falta de capacidade intelectual, cognitiva e até biológica para justificar impedimentos ou a falta de êxito. Em 1936, nos Jogos Olímpicos em Berlin, Jesse Owens mostrou como esse tipo de propaganda não se sustenta.

Ao identificar a desigualdade social como ela impacta na escolha por uma prática esportiva, podemos também perceber que o alto rendimento, com seu objetivo e finalidade, alarga o fosso, pois, o capital físico (biotipo) é um padrão de corte ou de direcionamento. Aliado ao capital físico temos o capital corporal, isto é, aquilo que entendemos como habilidade, talento, a técnica que pode já estar desenvolvida ou sinalizando um potencial de desenvolvimento. O esporte permite, em princípio, que todos o pratiquem, mas a performance e a forma corporal aceitável podem ser inclusivas ou não. Nesse sentido, os sujeitos podem ter ou ser direcionados para determinada modalidade, como, no caso de ser alto e ágil, para o atletismo, vôlei, basquete ou para posição de goleiro no futebol. A questão é por que não nadador? Respondo: porque encontramos condicionantes sociais.

Isso significa que há modalidades esportivas racistas? Não, apenas refletem à desigualdade social, desigualdade que alimenta o racismo que, por sua vez, contamina a instituição esporte que passa a aceitar os corpos negros como ótimos para o futebol, atletismo, luta, basquete, vôlei etc., não sendo aptos para o tênis, pilotagem, natação etc. Por essa razão, o apresentador de um determinado telejornal, ao entrevistar um jovem negro que disse estar indo para clube X em São Paulo, faz o comentário ao finalizar a conversa, questionando a condição do jovem como boleiro (pegador de bolinhas), quando na verdade ele era um dos atletas. Comentário semelhante, Bernie Ecclestone ex-chefão da F1 proferiu sobre Lewis Hamilton ao dizer: “se eu não soubesse que ele é piloto, nunca saberia”. E ainda concluiu: “bastava olhar para Schumacher e Piquet para saber o que faziam”.

Foto: Steve Etherington for Mercedes-Benz Grand Prix Ltd.

Comentários que estão naturalizados em nossa sociedade expressam um desejo de aproximar supostas relações biológicas e cognitivas com a prática e a eficiência em determinadas modalidades ou posições dentro da configuração do jogo. Um exemplo são os goleiros, aos atletas negros são atribuídas condições de inferioridade técnica.

Recentemente, o goleiro Hugo, do Clube de Regatas Flamengo (RJ), cometeu uma falha que muito chamou atenção, porque gerou a possibilidade do gol da vitória do adversário ao final do jogo. Ela pode ser identificada como infortúnio, inexperiência, falta de habilidade ou decisão equivocada, um erro que faz parte de qualquer atividade profissional.

No entanto, poucos se restringiram a identificar como falha na execução de um movimento, logo atribuíram características associadas à sua cor para justificar o erro, como imaturidade, inocência, irresponsabilidade, inclusive deixando claro que o goleiro “negro” falhou! [2]

Hugo, goleiro do Flamengo. Foto: Alexandre Vidal/Flamengo.

Tal relação encontramos, ainda no futebol, quando desejamos elogiar determinados jogadores. Devemos observar as adjetivações a jogadores brancos que citam sua racionalidade; inteligência; frieza na tomada de decisão; precisão; “robozão” (a máquina como máxima racionalidade); homem de gelo, que tem controle das emoções; joga de terno, o que remete a profissões de gestão e direção; que o atleta possui classe, mas quando se fala classe, remete-se a qual estrato social?; também são identificados como homens e que possuem maturidade. São todos elementos que lembram a civilização ou o que entendemos como modelo ideal de sujeito civilizado.

Os jogadores negros, por outro lado, são adjetivados ou identificados como: fenômeno; showmam; mágico; furacão; bruxo; brincalhão; irreverente; moleque; inconsequente; e, são meninos, imaturos que não seguem regras. Elementos que lembram a proximidade com a natureza, não são civilizados, portanto, se assemelham a selvagens e lhes é atribuída uma condição infantilizada. Adjetivações que escondem seu teor racista, pois se exaltam que uns são melhores que outros, que uns atingiram a civilização e outros permanecem selvagens, que uns atingiram a maturidade, outros são infantes.

Quando se enfatiza que determinado jogador é mais racional, aponta-se para um valor civilizatório, o uso da razão. Quando se atribui a outros sujeitos valores mágicos, sobrenaturais, bem como, fragilidade emocional, descreve-se sua proximidade com a natureza e tudo que pode receber igual comparação, em geral, depreciativa.

Talvez por essas razões colegas do ginasta Ângelo Assumpção se sentiram autorizados a falar que a sacola utilizada para guardar as compras do mercado é branca, já o lixo é colocado em saco preto. Após, denunciar a ação, hoje o atleta está desempregado e sem clube. [3]

Vidas negras importam no esporte?

Vidas negras importam quando seu alto desempenho está ligado aos resultados, mas mesmo assim não é uma garantia. Temos um exemplo prático de algo que muitos não acreditavam ser possível superar na F1, Lewis Hamilton há poucos dias se tornou hepta campeão mundial, o maior e considerado por alguns como o melhor de todos os pilotos, consideração que pode ser discutida, desde que isso nada tenha a ver com cor da sua pele. Mas, quantas matérias foram noticiadas sobre esse feito? Quantas postagens nas redes sociais? Isso se chama invisibilidade…

Se durante a carreira as relações se apresentam dessa maneira, no caso do pós-carreira o racismo que se constitui estrutural, impregnando as instituições, mostra a sua face mais nefasta. No meio esportivo, em determinadas modalidades, os atletas são predominantes negros (o que significa que desenvolveram um capital corporal de excelência), mas não são vistos na mesma proporção ocupando lugares na gestão, no treinamento ou mesmo comentando sobre ele. Quando realizamos o “teste do pescoço” para identificar dirigentes, gestores, técnicos e outros profissionais especialistas que estão autorizados a sentar à mesa, não reconhecemos ex atletas ou profissionais negros, eles ainda são exceções. Este é um outro problema, pois podemos acreditar que as exceções são regras, associando-as com o mérito pessoal.

Os atletas negros entram e saem do esporte sofrendo com o racismo. Já escutei de um amigo que disse nas universidades não temos professores negros porque os negros não querem ser professores universitários. A mesma relação se faz com os ex atletas nas posições de gestão. Meu amigo está errado e todos que pensam como ele também estão, pois, preconceitos e ações discriminatórias somadas aos condicionantes sociais devem fazer parte da resposta correta.

Pergunto, novamente, o esporte é racista? Como sou idealista, vou dizer que não, mesmo após minha afirmação inicial, mas digo que suas práticas acabam por naturalizar o racismo presente na sociedade. As instituições esportivas não estão em uma bolha separada e apartada da sociedade, portanto, o racismo estrutural é institucional. Ele será vivenciado por quem faz o esporte, por quem vive do esporte e por quem acompanha o esporte. Nessa disputa, nesse jogo que também é entre vida e morte, o empate não é resultado suficiente ou aceitável na luta antirracista.

Notas

[1] Texto apresentado na mesa: Vidas negras importam: o racismo nas práticas esportivas, no curso de Educação Física da Faculdade Estácio (Florianópolis/SC), dia 16/11/2020.

[2] Hugo Souza é alvo de racismo após erro contra o São Paulo. Acesso em: 19 de nov. de 2020.

[3] Portas fechadas – Ângelo Assumpção e a mãe, Magali, falam de racismo e da demissão do Pinheiros: “não é o clube, mas as pessoas”. Acesso em: 19 de nov. de 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. A racialização das práticas esportivas e a triste invisibilidade. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 41, 2020.
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