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A Reforma Protestante na Escócia: os reflexos no clássico entre Celtic e Rangers

Luísa Almeida de Paula 27 de maio de 2021

A Reforma Protestante na Escócia, iniciada por John Knox e intensificada a partir do reinado de Maria Stuart, vai ser responsável por marcar a história do maior clássico de futebol do mundo: Celtic vs. Rangers. O Old Firm, como é chamado o clássico entre as duas equipes, é um reflexo da disputa política, religiosa e social que vai marcar toda a Escócia durante toda a idade moderna e contemporânea. A importância de se estudar o período da Reforma Protestante e localizá-lo na Escócia moderna para analisar uma disputa de clubes de futebol que tem efeitos até hoje, se dá pelo papel que as tradições ocupam nessa relação.

Segundo Giddens (1990), nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes. Eric Hobsbawn (1984) conceitua o termo tradição inventada como um conjunto de práticas invariáveis, de natureza ritualística ou simbólica, que visam inculcar certos valores através da repetição e que, para isso, são inseridas artificialmente em um contexto de continuidade histórica com o passado. Hobsbawm afirma, ainda, que essas tradições inventadas são mais presentes em situações de rupturas drásticas na política e nas sociedades, como por exemplo: revoluções ou golpes. Passado venerado, símbolos valorizados, continuidades e rupturas políticas drásticas compõem a Escócia antes, durante e após a Reforma Protestante no país, tendo seus reflexos impressos no futebol escocês. Para entender a dicotomia presente no Celtic Football Club e Rangers Football Club, o maior clássico de futebol escocês – e do mundo -, é preciso conhecer o contexto histórico da Escócia. O clássico tem sua origem em 1888, a primeira vez que há uma partida entre os dois clubes, mas suas raízes vem de séculos atrás, durante a Reforma Protestante de John Knox na Escócia. John Knox, a relação entre Inglaterra e Escócia e a emigração irlandesa no século XIX são três dos principais atores do Old Firm.

O jogo das identidades também vai ser um elemento importante na configuração do clássico entre as duas equipes de Glasgow. Os nacionalismos, ideologia surgida a partir do século XIX, quando se consolidaram os Estados nacionais na Europa, vão servir para representar o ideal de pertencimento dos indivíduos para com suas nações. Como a Reforma Protestante na Escócia movimentou estruturas e sistemas antes estabelecidos, as identidades nacionais vão se configurar como um reflexo do movimento político-ideológico que Lutero iniciou em 1517, na Alemanha e chegou até a Escócia.

John Knox
John Knox. Fonte: Wikipédia

A Reforma Protestante de Lutero em 1517, não ficou restrita às fronteiras alemãs. A influência das cinco solas e das teses do monge alemão viajaram por toda a Europa, levando o protestantismo para os demais Estados nacionais. A doutrina reformada chega na Escócia por meio do principal nome do protestantismo escocês: John Knox. O pregador nasceu na Escócia no início do século XVI e recebeu ordenação sacerdotal antes de 1540 – a Reforma na Alemanha já em vigor. Knox nasceu em um berço católico mas abandonou a fé em troca das doutrinas protestantes que George Wishart pregava, após este ter conhecido o protestantismo na Alemanha. O protestante pregava as doutrinas protestantes pela Escócia e conseguia mais e mais adeptos à nova fé, criando uma tensão com a já estabelecida igreja católica escocesa. Em 1546, Knox vê Wishart ser condenado pelo cardeal Beaton, o lorde-chanceler da Escócia e um dos mais ferrenhos líderes da resistência à ascensão política do protestantismo na nação (ALENCAR, 2016). Inconformado com a condenação do pregador, John Knox e outros discípulos conspiraram e assassinaram o lorde chanceler como vingança, por conseguinte, foram presos pelos franceses em 1547. Knox cumpre a pena estabelecida pela corte francesa e, uma vez livre, prefere se estabelecer na Inglaterra do que na Escócia, onde se aprofunda no calvinismo difundido amplamente no reino dos Tudor. Até sua volta definitiva para a Escócia, John Knox viaja por toda a Europa e entra em contato com vários reformadores – como Calvino – para aprender mais sobre a estrutura eclesial protestante e como resistir às pressões católicas.

Knox volta à Escócia em um ambiente mais favorável à sua pregação, com o propósito de implantar o calvinismo e fundar a igreja presbiteriana escocesa, conseguindo reunir muitos apoiadores entre o povo e os nobres. No entanto, mesmo em um ambiente mais favorável, Knox adota uma postura anticatólica muito intensa e violenta. O protestantismo, particularmente o calvinismo dos presbiterianos, se difundia com considerável eficácia; John Knox, principal pregador presbiteriano, havia voltado à Escócia em 1555, conseguindo grande quantidade de adeptos e, com o apoio dos lordes da Congregação, organizando o presbiterianismo escocês como uma religião militante (ALENCAR, p. 9, 2016). Segundo Alencar (2016), Knox considerava os católicos como verdadeiros idólatras e afirmava, publicamente, que o extermínio dos idólatras era dever dos príncipes e magistrados cristãos, ou mesmo de qualquer crente individual. Em 1560, o reformador e seus discípulos iniciam, então, a Reforma na Escócia, estabelecendo algumas medidas e regras que deveriam ser seguidas pela população. Entre essas regras, Knox declara a missa ilegal, pondo fim ao domínio papal na Igreja escocesa; a Igreja Católica na Escócia é declarada extinta e seus bens são confiscados; o protestantismo é instituído como religião oficial do país, sendo a Igreja da Escócia – Kirk – sua representante. Com essa postura e influência do líder escocês, o partido protestante do país torna-se mais poderoso, como também, violento. Após sermão de John Knox, uma multidão saqueia a cidade, igrejas e mosteiros foram invadidos, pilhados e destruídos, cenas de pilhagem e devastação de igrejas e mosteiros partiram por diversas cidades da Escócia.

A Reforma Protestante fincou suas garras na Escócia com mais ferocidade do que em qualquer outro lugar da Europa. Quando os discípulos de John Knox se espalharam para o norte a partir de sua base em Glasgow e Edimburgo, esmagaram violentamente as cidadelas católicas, em alguns casos recorrendo à limpeza étnica. Sua teocracia executava estudantes de Edimburgo por duvidarem casualmente da existência do Senhor – e extirpou da sociedade a maioria dos vestígios do papismo. Ao final do século XVIII, Glasgow tinha 39 sociedades católicas e 43 anticatólicas” (FOER, p. 44, 2005).

Segundo o Reverendo Hélio de Oliveira Silva,[1] a contribuição mais importante de Knox para a teologia protestante foi o seu conceito de relacionamento entre Igreja e Estado. Ele cria que Igreja e Estado perfaziam a mesma comunidade, ou seja, a reforma protestante não se imporia sem uma reforma política. Na época da Reforma, a religião do príncipe era a religião do povo, então, como Knox lutava contra o governo das rainhas católicas, achou um precedente no Antigo Testamento para a desobediência civil quando as autoridades do povo contradiziam a Lei Superior das Escrituras. A teologia de Knox era essencialmente calvinista, protestante e, por isso, era tão enfático em seus sermões contra a doutrina católica (SILVA, s/d).

Em meio a esse turbilhão religioso, Maria Stuart assume o trono escocês. Prima de Elizabeth I, rainha da Inglaterra, e tendo vivido na França por vinte anos, a escocesa católica volta à Escócia para tomar posse do trono real, encontrando forte oposição de John Knox.

“As referências recorrentes ao Antigo Testamento nos discursos de Knox – em que Jezabel é Maria Stuart, os sacerdotes de Baal são os padres católicos, os idólatras são os fiéis católicos e o povo eleito são os presbiterianos” (ALENCAR, 2016).

O reinado de Maria Stuart vai marcar outro momento de grande tensão entre católicos e protestantes na Escócia, agora, com a Inglaterra e França envolvidas. Durante o reinado dos Jaimes na Inglaterra, a Escócia se alia à França em diversas guerras contra a Inglaterra. Maria Stuart, escocesa, casa-se com Francisco II, da França mas, após seu falecimento, volta para a Escócia a fim de ser coroada rainha. Pela relação antagônica entre França e Inglaterra, a rainha Elizabeth I incentiva a Reforma Protestante na Escócia, exaltando os sentimentos anti-franceses e anti-católicos (MARTIN; BELLINI, 2020). Em um ambiente desfavorável e pela falta de articulação política, Maria Stuart abdica do poder em favor de seu filho, Jaime VI, que vai ser coroado pelo líder da igreja presbiteriana escocesa, John Knox. Ao contrário de sua mãe, Jaime VI vai ser criado como um calvinista, impondo à religião um importante papel político e social no país, criando leis que banem qualquer manifestação contrária às crenças calvinistas (MARTIN; BELLINI, 2020). Novamente indo de contra à política de sua mãe, Jaime VI aproxima a Escócia da Inglaterra ao casar com Elizabeth I, unindo as coroas em 1603. Antagônicas, Escócia e Inglaterra vão formar alianças sob o reinado de Jaime VI.

Jaime VI
Jaime VI da Escócia. Fonte: Wikipédia

Por mais que as tentativas de Jaime VI de aproximar Inglaterra e Escócia tivessem dado certo em nível institucional, o rei não conseguiu unir o povo, uma vez que os ingleses não toleravam serem governados por um rei escocês e os escoceses não tinham simpatia pelos ingleses (MARTIN; BELLINI, 2020). O conflito entre ingleses e escoceses se intensifica por alguns anos, com crises institucionais e diplomáticas, alterando demasiadamente o jogo político entre as nações. A política inglesa-escocesa vai ser ver palco de uma disputa fundamentalista sem fim, com deposições e capturas de reis, conflitos militares e convulsão social, intensificando a disputa entre católicos e protestantes. Os escoceses se organizam para invadir a Inglaterra e depor o novo rei, Carlos I, filho de Jaime VI.

Posteriormente, temos um período em que os protestantes tentam instalar um governo local com bases fundamentalistas, só que os católicos resistem, dando início a uma guerra civil, vencida pelos católicos. Por conta do vencimento da guerra civil, os católicos iniciam os “Tempos de Morte”, uma época de aproximadamente oito anos em que os católicos fazem todo tipo de atrocidades contra os protestantes em todo território escocês. Jaime VII da Escócia (e II na Inglaterra) assume o trono e põe fim a esse período a fim de trazer convivência pacífica entre católicos e protestantes, que não se contentaram com esse apagamento do horror católico e vão se arquitetar, juntamente com os ingleses, para depor o rei Jaime e coroar o protestante Guilherme de Orange. “Guilherme de Orange foi muito bem assessorado e conseguiu estabelecer um governo protestante moderado no qual havia tolerância religiosa” (MARTIN; BELLINI, 2020). Após todos esses anos e disputas entre ingleses e escoceses, protestantes e católicos, em 1707 é promulgado o “Ato de União”, unindo a Inglaterra e a Escócia, dando origem ao Reino Unido.

Os nacionalismos vão fazer parte desse grande jogo político e religioso presentes no Old Firm. De um lado temos o Celtic Football Club, um clube irlandês-escocês que demonstra sua irlandade nos símbolos institucionais e durante as partidas do clube e, do outro, temos o Rangers Football Club, com forte orgulho inglês-escocês. O jogo das identidades vai desempenhar um papel fundamental no clássico, sendo reflexo das questões políticas envolvendo Inglaterra, Escócia e Irlanda a partir do século XVIII, retratadas a seguir.

Odfirm
Torcedores de ambos os clubes no Celtic Park. Fonte: Wikipédia

A Revolução Industrial tem início na Inglaterra em meados do século XVIII e se consolida no século XIX. O capitalismo emergente, a explosão das indústrias e fábricas e a grande classe trabalhadora vão compor o novo cenário europeu durante os próximos anos. A introdução do capitalismo na Inglaterra e, consequentemente, na Escócia, traz grande desenvolvimento econômico e social no país, atraindo os escoceses dos campos para os grandes centros em busca de trabalho, aumentando a densidade demográfica das duas maiores cidades da Escócia, Glasgow e Edimburgo. Em outras palavras: mais escoceses concentrados em uma mesma região, criando nos grandes centros um sentimento de escocividade entre a população e a noção de identidade nacional.

Na década de 1840, a Irlanda passa por um difícil momento com a Grande Fome da Batata,[2] o que ocasiona em uma emigração em massa dos irlandeses para a Escócia. Os irlandeses, dessa forma, encaram quatro anos de miséria extrema, que se agravou pela negligência do Império Britânico, então responsável por governar a Ilha (GIULIANOTTI, 2003). Com um novo contingente populacional irlandês na Escócia, os nativos vão se ver em uma competição por vagas de emprego com os irlandeses e é “nesse cenário caótico que nascem os times de futebol tratados” (MARTIN; BELLINI, 2020). Mais irlandeses, mais católicos, mais disputas por empregos e salários melhores, a Escócia vai se ver envolvida em mais um caldeirão político-social. Os irlandeses, que vão se ver obrigados a saírem de sua terra natal a fim de sobreviverem e buscarem melhores condições de vida, vão carregar consigo sua identidade nacional, suas irlandades, para a terra nova, suas tradições. Em meio a trabalhos degradantes, o preconceito e discriminação dos escoceses protestantes, os irlandeses encontram uma forma de resistir: unir-se em comunidades em torno das Igrejas para serem assistidos e reivindicarem tratamentos iguais. É nesse contexto histórico que o Celtic Football Club é fundado.

Brother Walfrid
Irmão Walfrid. Fonte: Wikipédia

O Celtic foi fundado em 1887 com o principal objetivo de levantar fundos para prover comida para os mais pobres da região leste de Glasgow, uma área da cidade muito empobrecida e com uma alta taxa de mortalidade infantil. Nessa região havia uma grande comunidade de imigrantes irlandeses e a tensão entre os nativos de Glasgow e o novo fluxo de irlandeses estava crescendo. O irmão Walfrid, fundador do clube, viu a necessidade de integração social e sua ideia inicial era um clube de futebol que tanto a Escócia quanto a Irlanda, protestantes e católicos, pudessem apoiar. Um clube de futebol que pudesse seguir de veículo para trazer as comunidades para perto e juntá-las (CLANCY, 2010). É fundado para dar assistência aos católicos pobres, com forte orgulho irlandês-católico e, em seus mais de cem anos, vai dialogar com esses sentimentos de identidades e pertencimentos de seus torcedores. É um clube escocês e irlandês ao mesmo tempo, duas identidades nacionais em jogo.

Por outro lado, o Rangers Football Club foi fundado antes, em 1873, sem uma carga política e religiosa de fato. Diante do acúmulo de vitórias e protagonismos do clube alviverde logo nos anos iniciais de sua fundação, a Escócia protestante busca por uma equipe escocesa para recuperar o título e o protagonismo no futebol nacional. Quando o Rangers consegue acumular vitórias contra o arquirrival, os protestantes escoceses adotam o clube, transformando-o no que é hoje: um clube com forte viés protestante, sindicalista, anti-católico, monarquista, com forte vínculo escocês e inglês (FOER, 2005). É um clube que expressa o nacionalismo escocês e inglês, novamente, duas identidades nacionais em jogo.

Stuart Hall, importante sociólogo britânico-jamaicano, em sua obra Identidade cultural na pós modernidade (2006), apresenta a identidade como um sistema de representação cultural, em que as pessoas não são apenas cidadãos de uma nação, estado ou grupo, mas sim, participam da ideia da nação. Hall (2006) define o sujeito da idade moderna como um indivíduo que tem sua identidade pautada na relação com as pessoas, uma concepção interativa da identidade. Os indivíduos passam a ser formados, subjetivamente, através de integrações sociais mais amplas, com o contato com diferentes sujeitos. Traçando um paralelo com o nosso objeto de estudo, o escocês do período moderno vai se relacionar, ora positivamente, ora negativamente, com ingleses e irlandeses e, dessarte, sua identidade pessoal vai ser incorporada. À medida que os escoceses se veem dentro de conflitos políticos, religiosos e sociais com outros grupos sociais – irlandeses e ingleses – sua identidade pessoal e coletiva vai se desenvolvendo.

Michael Pollak (1992) também segue a mesma linha: “a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros”. Falar da Reforma Protestante na Escócia e seus reflexos no futebol escocês é falar do jogo das identidades escocesas, irlandesas e inglesas que, ao interagirem entre si, fortalecem suas próprias identidades pessoais. Os irlandeses que fundaram o Celtic, por exemplo, usam de elementos e categorias para explorar a irlandade: o clube é alviverde porque as cores branca e verde estão presentes na bandeira irlandesa; o trevo, símbolo do clube, remonta a São Patrício, o padre responsável pela cristianização da Irlanda e que usava o trevo para explicar sobre a Santíssima Trindade; o próprio nome do clube – Celtic – representando o mundo celta, gaélico, no qual a Irlanda faz parte. O próprio estatuto do clube descreve-o como um clube de futebol escocês com forte orgulho irlandês.

Em nosso entender, o caso do Celtic é um tanto quanto peculiar, pois, na maioria dos casos que clubes de futebol encarnam ideias nacionalistas, como é o caso do Barcelona na Catalunha e do Athletic Club de Bilbao no País Basco, esse ideal se refere ao território em que esse clube está situado. Porém, como citado anteriormente, o Celtic é uma lembrança das contradições do Reino Unido; é uma marca que está longe de se cicatrizar da política inglesa em relação a ilha vizinha e das perseguições promovidas aos católicos pelos monarcas ingleses nos séculos XVI e XVII (REZENDE; VIEGAS, 2020).

Em contrapartida, o Rangers fortaleceram uma identidade unionista e protestante para negar a identidade republicana e católica do Celtic, ou seja, pautaram a identidade do clube em referência à identidade do Celtic. Elencado a isso, também possui elementos que trazem a identidade pró-monarquista, pró-protestante do clube: seu escudo, com os dizeres Rangers Football Club em azul e um leão em vermelho, o Leão Rampart, ligado a Escócia desde o século XIII, presente no emblema oficial do país. O leão do escudo não só relaciona o clube com a Escócia, como também demonstra suas preferências inglesas, uma vez que a Inglaterra e o Reino Unido também possuem um leão em seus brasões oficiais. As cores oficiais dos Gers, como são comumente chamados, são o azul royal, branco e vermelho, cores também presentes na bandeira escocesa, na bandeira inglesa e na bandeira oficial do Reino Unido.

Torcedores Rangers
Torcedores do Rangers em 2008. Fonte: Wikipédia

Outro elemento presente no Rangers que dialoga com essa identidade escocesa-inglesa está em seu terceiro modelo de uniforme, geralmente na cor laranja. A cor é utilizada para fazer menção a Guilherme de Orange – laranja, em inglês – e sua consequentemente vitória em 1690, na Batalha do Boyne, onde venceu e massacrou os católicos da Irlanda, instaurando o protestantismo na ilha esmeraldina. Inclusive, a impotente vitória do Rei Billy é comemorada todo dia 12 de julho, sendo o estádio do Rangers – Ibrox Stadium – um dos locais de comemoração dos protestantes escoceses. Giulianotti (2003) segue uma narrativa diferente e alega que ambos os times, Celtic e Rangers, se afastaram da escovididade, privilegiando as narrativas irlandesas e inglesas, respectivamente.

Já, ao contrário, para alguns dos elementos mais agressivos dentro do Exército Xadrez, os fãs do Old Firm distanciaram-se simbolicamente da Escócia e da escocividade: torcedores do Celtic, através de seu tradicional hábito de exibir a bandeira tricolor irlandesa e de cantar algumas canções irlandesas; os fãs do Rangers, através de sua mais recente adoção de símbolos ingleses, tais como a bandeira e camisetas do futebol inglês. Sobretudo durante campeonatos contra o Old Firm (e em particular os Rangers), fãs de outros times escoceses algumas vezes cantam o hino nacional escocês, Flower of Scotland, para enfatizar seu nacionalismo cultural como forma de destacar-se de seus rivais de Glasgow (GIULIANOTTI, p. 53, 2003)

A Reforma de John Knox na Escócia não vai criar, apenas, um sentimento de identidade nacional escocesa, irlandesa e inglesa, mas se refere também às identidades religiosas: protestantes e católicos. Ao reprimir violentamente as massas católicas na Escócia e Inglaterra, Knox, indiretamente, fortalece as identidades pessoais e coletivas desses grupos, uma vez que irão resistir, coletivamente. Quando os católicos vencem os protestantes na
guerra civil e destilam ódio e atrocidades durante os Tempos de Mortes, eles estão, indiretamente, criando um sentimento de pertencimento à doutrina protestante desses grupos, fortalecendo suas identidades religiosas. Quando escoceses, ingleses e irlandeses enfrentam o preconceito e a segregação dos outros povos, suas identidades nacionais são colocadas em jogo, criando nesses povos a consciência de pertencimento e orgulho de suas culturas nacionais.

Sendo assim, o futebol escocês pode ser visto como uma metáfora à resistência. De um lado, o Celtic, com sua irlandade-escocividade resiste aos fundamentalistas protestantes, monarquistas e anti-católicos e, do outro, o Rangers resiste aos princípios republicanos, católicos e irlandês do Celtic. No jogo das identidades, ambos os times criam suas próprias narrativas e expressam-nas em seus torcedores. E por criar sua própria narrativa, a cultura nacional se torna um elemento muito importante na filosofia do clube e dos adeptos.

“Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. […] As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre ‘a nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos são contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas” (HALL, p. 50-51, 2006).

Quando pensamos no Celtic, pensamos nas culturas nacionais irlandesas e escocesas e como o clube trabalha essas questões. Com o Rangers, as culturas nacionais escocesas e inglesas. Sendo assim, por terem diferentes identidades nacionais e culturas nacionais envolvidas na institucionalidade do clube, é imprescindível que saibam construir bem suas narrativas, a fim de expressar essas culturas em seus torcedores. Stuart Hall (2006) nos apresenta os três elementos fundamentais para tanto: para constituir uma narrativa de cultura nacional é preciso se apegar às memórias do passado, ao desejo por viver em conjunto e à perpetuação da herança, das tradições.

Quanto ao primeiro elemento, os torcedores dos Bhoys – como são chamados os torcedores do Celtic – se apegam às memórias da Reforma Protestante, da opressão que os católicos sofreram nas mãos de John Knox e dos governos das coroas britânicas, da fome e miséria na Irlanda e a consequente emigração, às disputas entre protestantes e católicos por empregos; já o Rangers, se apegam aos fundamentos protestantes e reformistas, à proximidade entre Escócia e Inglaterra, aos terríveis Tempos de Morte, em que sofreram nas mãos dos católicos. Quanto ao desejo por viver em conjunto, ambos os clubes demonstram isso ao servirem como grandes comunidades para que esses torcedores escoceses, ingleses, irlandeses, protestantes, católicos, pró-monarquistas,
republicanos, se sintam livres e unidos. E por fim, criam uma narrativa de cultura nacional ao perpetuar suas heranças e tradições, com as ritualidades envolvidas em cada time: torcedores do Celtic mostram cachecóis e camisas nos jogos com os dizeres “Deus abençoe o Papa” e “Deus abençoe o irlandês”, cantam a música You’ll Never Walk Alone antes dos jogos começarem, celebram o Dia de São Patrício; os torcedores do Rangers, por sua vez, bradam hinos de exaltação à Rainha da Inglaterra em seus jogos, com cachecóis e bandeiras britânicas e ofendendo o papa e os católicos, celebram o aniversário do triunfo do Rei Billy, entre outras.

Todos esses fatores e elementos são articulados pelo Celtic e Rangers a fim de construírem uma forte narrativa que viabilize o sentimento dos torcedores de pertencerem à uma nação, que viabilize suas próprias identidades. Dessa forma, vemos o quanto a Reforma Protestante na Escócia acirrou discussões, conflitos, nutriu animosidades não só religiosas, como também, políticas e sociais, refletindo até os dias de hoje, contribuindo para um fortalecimento identitário dos torcedores.

Torcedores Celtic Rangers
Torcedores do Celtic e Rangers. Fonte: Wikipédia

 

Conclusão

Em virtude dos aspectos abordados, chegamos às seguintes conclusões: a Reforma Protestante, que tem sua origem em 1517 após as noventa e cinco teses de Martinho Lutero serem expostas na Catedral de Wittenberg, na Alemanha, chegou na Escócia por meio de John Knox, um destemido e intenso pregador protestante que vai legitimar a religião presbiteriana como a oficial do país. Durante os períodos em que John Knox esteve à frente da igreja escocesa, os católicos foram perseguidos e oprimidos, enquanto os protestantes gozavam de uma certa liberdade e privilégios no país. Elencado a isso, as instituições políticas também vão sofrer consequências das disputas religiosas e a coroa inglesa vai encontrar formas de intervir na política escocesa, acirrando ainda mais os ânimos entre protestantes e escoceses de ambos os países. Temos séculos de conflitos entre os grupos católicos e protestantes nos dois países e que, com a introdução e consequente consolidação do capitalismo na Europa, vão ter que lidar com mais uma força em meio a esse conflito: os irlandeses. Os reflexos do movimento político-religioso não finda após a Reforma, resultando em uma sociedade dividida e inflada – 15% da sociedade escocesa eram provenientes da Irlanda -, que vai passar a lutar por empregos melhores, salários mais altos e melhores condições de vida. Os escoceses vão sair na frente, resultando em uma comunidade irlandesa dentro do país cada vez mais pobre e segregada. A partir desse contexto, o Rangers Football Club é fundado e, quatorze anos depois, o Celtic Football Club nasce. À medida que os clubes crescem e enxergam a realidade política, social e religiosa que a Escócia se encontrava, vão servir de porta-voz para seus diferentes torcedores, criando uma identidade entre eles que dialogue com as culturas nacionais presentes nos clubes. Por aspirar bandeiras tão opostas e dicotômicas, o clássico Old Firm se torna mais do que apenas uma partida de futebol, sendo visto como o maior representante dos conflitos que permeiam a Escócia desde meados do século XVI.

 

Notas

[1] Acesso em: John Knox: O Reformador da Escócia (monergismo.com)

[2] Uma bactéria se alastra por todas as plantações de batata da Europa, tendo sido a Irlanda o país mais afetado, uma vez que dependia do tubérculo em suas plantações. Estima-se que aproximadamente um milhão de pessoas morreram e mais de um milhão de irlandeses emigraram do país para os Estados Unidos, Canadá e Reino Unido.

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Luísa Almeida de Paula

Formada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. Mineira. Atleticana.

Como citar

PAULA, Luísa Almeida de. A Reforma Protestante na Escócia: os reflexos no clássico entre Celtic e Rangers. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 51, 2021.
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    Luísa Almeida de Paula