24.8

A representação simbólica do jogador de futebol

A volta de Ronaldinho Gaúcho ao futebol brasileiro gerou grande expectativa dos clubes que tentavam contratá-lo e das torcidas que queriam vê-lo com a camisa de seu time. Mas antes de entender como foi o processo de sua volta é preciso retornar ao momento de sua saída do futebol brasileiro.

Seu ingresso na categoria infantil do Grêmio de Porto Alegre aconteceu quando tinha apenas sete anos de idade e foi por indicação do seu irmão, Assis, que na época era atleta do clube e atualmente é o seu empresário. Após 13 anos de clube o jogador foi acusado de forçar a saída para o futebol europeu ao acertar um pré-contrato com o Paris Saint-Germain. A torcida não gostou do modo como o jogador articulou a sua venda para o clube francês, em 2001, e o acusou de mercenário. Amparado pela Lei Pelé e após nove meses de disputas jurídicas, o clube francês teve que pagar 6 milhões de dólares ao Grêmio, quando o clube gaúcho queria 30 milhões pela saída do jogador .

No início de 2011, três clubes brasileiros – Palmeiras, Grêmio e Flamengo – estiveram na disputa para ter o craque. Esse episódio trouxe à tona algo que havia ficado perdido no passado de Ronaldinho Gaúcho e que só o tempo foi capaz de cicatrizar: a relação entre a paixão clubística dos torcedores e o salário que o jogador recebe.

Ronaldinho Gaúcho

Com o Grêmio na disputa para ter o jogador, a torcida gremista temia que aqueles momentos vividos dez anos antes poderiam retornar com intensidade. Uma faixa colocada embaixo de um viaduto em Porto Alegre dizia: “Grêmio, se não for por amor não queremos TRAIDOR! ” (grifo do próprio cartaz). Não nos esqueçamos da existência de um ideal romântico na relação das torcidas com os jogadores de suas equipes. Enquanto os torcedores são constituídos, em sua maioria, por algum critério afetivo, os jogadores são funcionários do clube e estão lá em troca de um salário. Esse simples detalhe coloca torcedores e jogadores em condições distintas perante o clube. Segundo Damo (2007, p. 50):

A crença dos torcedores é de que um time de mercenários não vai a lugar algum, sendo preciso forjar outros vínculos, de ordem emocional, entre atletas e clube. O processo de formação, prolongado e realizado no interior do clube, seria a estratégia para forjar jogadores com sentimento de torcedor, os únicos verdadeiramente capazes de entregar-se de corpo e alma à causa coletiva.

Na disputa pelo jogador, todos os clubes possuíam argumentos capazes de convencer Ronaldinho Gaúcho e seu empresário-irmão Assis. Segundo ele, no Palmeiras está o técnico Luiz Felipe Scolari, o Felipão, com quem o jogador viveu um grande momento pela seleção brasileira na conquista de Copa de 2002. O Grêmio está localizado em sua terra natal, além de ser a chance do atleta tentar recuperar a sua imagem junto ao clube após a sua saída, retomando os valores que as torcidas tanto gostam, qual seja, o amor do jogador pelo clube que representa. Já o Flamengo é o clube com maior torcida no Brasil e esse é sempre um argumento irresistível, pois significa jogar para a massa. Ao penetrar no campo afetivo o jogador deu grandes esperanças ao Grêmio, pois é o clube de sua cidade natal e pelo qual criou vínculos desde à época em que era criança.

Durante o período em que se transcorreu a negociação junto ao seu clube da Itália, o Milan, o caso foi permeado de grande expectativa, que foi da convocação da imprensa para a divulgação do nome do clube pelo qual Ronaldinho jogaria à coletiva informando que ainda não havia nada decidido. O Grêmio havia preparado uma festa após o anúncio oficial, contratou aparelhos de som para a sua torcida, mas teve que cancelar o show previsto, pois não havia nenhuma certeza dos rumos do atleta.

Incomodado com a pressão da imprensa para saber qual seria o seu destino, Ronaldinho Gaúcho declarou: “Não sou objeto de leilão. Pela minha vontade já estaria com a camisa do Grêmio, até ganhando menos. O problema não é a proposta que fizeram para mim, mas o que o Milan está pedindo. Ninguém chegou perto” . Ao declarar qual é a sua vontade, o seu desejo, Ronaldinho acessa uma via emocional e se aproxima do torcedor gremista. Pois, em outras palavras, dizer que quer estar com a camisa do Grêmio por livre e espontânea vontade significa que ele tem amor à camisa e que apesar dos valores financeiros serem importantes que ele vai levar em consideração a proposta do clube que o projetou para o futebol.

Damo (2008, p. 146) afirma: “Por ter passado quase metade da sua vida no interior do clube, os torcedores acreditavam que ele havia incorporado o pertencimento, tornando-se um amador entre os profissionais”. Por conta desse vínculo criado nas categorias de base do Grêmio, os torcedores – isso vale para todos os clubes, estabelecem uma relação direta entre o desejo dos meninos de ingressarem no futebol e defenderem as cores do seu time de coração. Embora essa seja uma possibilidade – a do garoto tentar ser jogador do clube pelo qual torce – se ele tiver chance de jogar pelo rival irá fazê-lo, pois o ingresso em um clube de futebol é permeado por uma série de incertezas. Portanto, é mais comum do que se imagina encontrar atletas da categoria de base que não torcem pelo time o qual são jogadores.

Essa visão dos torcedores de que o sentimento a ser disponibilizado pelos jogadores é o amor ao clube é compartilhado pelo ex-jogador Pelé: “Se ele gosta tanto do Grêmio, que vá jogar até de graça lá, pois já está com a vida feita ”. Pela estrutura que apresenta atualmente o futebol profissional não existe a menor chance de Ronaldinho jogar de graça tal como propõe Pelé. Quando se deixa de lado os supostos valores afetivos, mesmo que sejam declarados publicamente pelo jogador, o que resta são somente as bases contratuais oferecidas. Sem o valor financeiro que pretendia receber Ronaldinho Gaúcho não teria como disponibilizar afeto perante os torcedores.

Após dias de indefinições saiu o comunicado oficial dizendo que Ronaldinho Gaúcho era jogador do Flamengo. Ao acertar com o clube carioca estava acabada a possibilidade de acessar a via romântica, saldar a sua dívida simbólica com os gremistas e contestar o futebol profissional. Assim comentou Verissimo (2011, p. D8):

O retorno do Ronaldinho ao Grêmio, de onde saiu mal há dez anos – se tudo acontecesse como o Grêmio queria –, seria um triunfo de folhetim à antiga. Um filho do clube voltando perdoado e (se ainda jogasse metade do que jogava no seu auge) levando o time a novas grandes conquistas, resgataria o romantismo de um mundo tornado cínico e sem grandeza. Infelizmente – inclusive para a literatura – não deu certo.

Rapidamente a torcida gremista se manifestou com ofensas ao jogador. Em faixa colocada no campo de treino do Grêmio a torcida ou parte dela tornou público o seu ponto de vista: “R10 e Assis: que Deus perdoe vocês porque a nação gremista não vai perdoar ”. Se tivesse optado por retornar ao Grêmio teria a chance do atleta apagar a imagem de “traidor” e de mercenário que ficou desde a sua saída do clube gaúcho, além de declarar amor eterno à agremiação que o projeto ao futebol.

Se a torcida do Grêmio ficou insatisfeita com o desfecho do caso, o mesmo não aconteceu com a torcida do Flamengo. Ao oferecer as bases contratuais estabelecidas, a torcida do Flamengo estava pronta a receber o afeto que o jogador tem a ofertar aos flamenguistas, pois caso contrário não estabelecerá uma relação harmoniosa com a torcida. Diante de 20 mil pessoas, o atleta foi recebido pela torcida do Flamengo e disse: “Obrigado, obrigado pelo carinho. E [eu queria] dizer que espero retribuir todo o carinho de todos vocês dentro de campo. Obrigado pelo carinho e vamo com tudo nação rubro-negra, estamos junto, estou fechado com vocês e agora eu sou mengão [sic]”.

Nesse futebol altamente profissional, ditado pelas regras do mercado capitalista a pergunta de Damo (2008, p. 147) nos faz refletir: “Seriam, pois, os afetos, o último reduto da mercadorização?”. Tomar o afeto como o último reduto da mercadorização é uma estratégia interessante para não sermos contraditórios na análise. Ser o último reduto não significa que esteja ausente. Pelo contrário, o afeto está disponível em algum lugar, só precisa ser acessado. Se tivesse ido para o Grêmio, o afeto estaria, pelo menos enquanto discurso, à frente de tudo, até do dinheiro da negociação. Como o Grêmio foi preterido e ao que tudo indica por conta das bases contratuais restou em sua apresentação, quando as pendências financeiras já estavam acordadas e acertadas, retomar o discurso do torcedor para se aproximar de seus novos fãs: o afeto. Ao dizer que agora é mengão significa que renuncia os seus desejos declarados de representar o Grêmio.

A história de um jogador com o clube estabelece-se a partir da criação de vínculos que irão gerar a construção de uma identidade perante os torcedores. Aquele atleta que sustenta sua base com o clube somente no campo financeiro, rapidamente será esquecido ou, na melhor das hipóteses, será lembrado por muito tempo como mercenário. Se a base é estabelecida por meio de um afeto declarado, tal como acontece com os goleiros do São Paulo e do Palmeiras, no imaginário da torcida aqueles jogadores que se enquadram nessa condição representam os atletas que jogam por amor ao clube. Rogério Ceni está no São Paulo desde 1990 e Marcos está no Palmeiras desde 1992, ambos esperaram alguns anos para conquistarem a condição de titular e desde então figuram como os grandes ídolos dessas duas equipes. Porém, se não recebessem salários será que defenderiam os times?

Ronaldinho Gaúcho
Ronaldinho Gaúcho, atacante do Flamengo em jogo contra o Botafogo. Foto: Fábio Borges/VIPCOMM.

A todo momento nessa relação entre os jogadores e os torcedores, ou melhor, profissionais-especialistas-torcedores (TOLEDO, 2002), já que a imprensa é ativa na intermediação entre as partes, o que se apresenta é uma relação entre o simbólico e o imaginário.

Castoriadis (1982) define que imaginário e simbólico se relacionam, sendo que o imaginário utiliza o simbólico para existir. O autor também estabelece relação entre a instituição e o simbólico. Entende que o simbólico e o mundo social-histórico estão entrelaçados, no qual os atos reais, individuais ou coletivos não são símbolos, mas necessitam de uma rede simbólica. O símbolo pode ser encontrado na linguagem, mas também pode ser encontrado nas instituições, em outro grau e de outra forma. As instituições não se reduzem ao simbólico, porém, só existem no simbólico e constitui cada qual sua rede simbólica.

Portanto, se utilizarmos o termo instituição como sinônimo para os clubes de futebol chegaremos a relação proposta pelo autor que coloca a necessidade do campo simbólico para que algo exista. O simbólico entendido pela construção dos clubes de futebol para além do interno do jogo. O que se passa nas quatro linhas é apenas uma parte do que representa o futebol para o brasileiro. As discussões em torno do que acontece em campo tomam dias, quiçá semanas. Será nesse campo da linguagem que o simbólico tomará vida, por meio de uma rede simbólica que conecta as pessoas em torno do futebol, e que permitirá ações jocosas e mesmo violentas entre torcedores de times rivais.

Aos jogadores restam as ofertas do mercado da bola, que o atleta profissional não pode seguir a mesma dinâmica dos torcedores embora essas duas lógicas sempre estejam em diálogo. Ao optar por outro destino que não o Grêmio, que não as suas origens, tanto Ronaldinho Gaúcho quanto o seu irmão reforçaram que no futebol espetáculo as relações são outras e que o amor, a paixão, o clubismo cabe aos torcedores. Aos jogadores restam as leis do mercado e para alguns torcedores – no caso os gremistas – ficará essa eterna dívida simbólica do jogador com o Grêmio.

Referências Bibliográficas

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

DAMO, Arlei S. Do dom à profissão: formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Ed., Anpocs, 2007. 

_____.  Dom, amor e dinheiro no futebol de espetáculo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Campinas, v. 23, n. 66, p. 139-150, 2008.

TOLEDO, Luiz H. de. Lógicas no futebol. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2002.

VERISSIMO, Luis F. Não deu. O Estado de S. Paulo, 13 de janeiro de 2011.

______________

[1]  Em 2001, saída nada amigável de Porto Alegre. O Estado de S. Paulo, 5 de janeiro de 2011, p. E1.
[2]  Idem.
[3]  Ronaldinho quebra o silêncio e diz que sua vontade é de jogar pelo Grêmio. Folha.com. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/esporte/855239-ronaldinho-quebra-o-silencio-e-diz-que-sua-vontade-e-de-jogar-pelo-gremio.shtml. Acesso em 2 de fevereiro de 2011.
[4]  Pelé ataca Ronaldinho, Assis e os clubes. O Estado de S. Paulo, 8 de janeiro de 2011, p. E2.
[5]  13 de janeiro de 2011, p. D8.
[6]  Gremistas chamam atacante de traidor e mercenário. O Estado de S. Paulo, 11 de janeiro de 2011, p. E4.
[7] Apresentação de Ronaldinho Gaúcho. Disponível em http://youtu.be/SRRP0RemJ3g. Acesso em 2 de fevereiro de 2011.

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. A representação simbólica do jogador de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 24, n. 8, 2011.
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