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A saga de um Leão centenário (parte III)

Caio Araujo 6 de maio de 2019

          

Vestido com a réplica do manto tricolor, o senhor Biro passa a pé todas as manhãs pela Av. João Pessoa e acena com a cabeça para os malabaristas e mendigos na porta da estação do metrô de Parangaba, a mais ou menos quatro quilômetros da sede do Fortaleza, no Pici. Muito raramente ele se curva para depositar algumas moedas de cinco ou dez centavos no chapéu do senhor Alaor, um velho rabugento devoto do padre Cícero que há 15 anos se estabeleceu no local por acreditar que ali a caridade dos transeuntes é maior. Alaor reconhece Biro à distância, mas o trata com a mesma distinção com que se sente tratado pelos que o ignoram. Às vezes Biro parava durante o trajeto na frente do antigo Bar Avião, na esquina com a Rua 15 de Novembro, para cumprimentar os fregueses da borracharia que se instalara no local, dentre eles José Odacir Natalense Lemos, herdeiro de Antônio de Paula Lemos, fundador e primeiro proprietário do estabelecimento no final da década de 40. 

Os dois costumavam bater longos papos quando o bar ainda estava em funcionamento, antes do Sr. José sofrer um AVC e decidir alocar o ponto em 2005. As conversas giravam em torno de política, aviação – outra herança do fundador, embora Biro não dominasse o assunto – e, a mais extensa delas, futebol. No dia 11 de outubro daquele ano, uma sexta-feira, não haveria de ser diferente, a exceção de que desta vez os pastéis e a pinga não acompanhariam a prosa. Após o almoço em casa, a caminho do estádio Alcides dos Santos, onde Biro pretendia comprar o último lote para o jogo decisivo no domingo, ele não resistiu à provocação: “Dá-lhe Maranhão, heim! Sampaio: 2 x 1. O leão vai virar gatinho”, ouviu ainda na rua. Ele olhou para o relógio, era pouco mais de meio-dia, entrou na borracharia, puxou um banquinho e só saiu de lá tarde da noite.

Zé errou o placar, mas não o desfecho. O Fortaleza chegou a abrir dois a zero no placar, mas cedeu o empate em um lance fatídico. Paulo Sérgio aproveitou o cruzamento de Toti e marcou aos 47 do segundo tempo para o Sampaio Corrêa. O Castelão lotado (mais de 50 mil vozes) se calou. O time maranhense se classificou em quarto lugar no grupo A com 33 pontos, um a mais que o tricolor, que ficou de fora do fora do mata-mata. Aquele foi o segundo melhor público de todas as divisões do Campeonato Brasileiro no ano. O Sampaio ainda chegaria na final contra o Santa Cruz, mas perderia no segundo jogo da decisão (2 x 1), após empate sem gols no primeiro. O principal objetivo, contudo, o mesmo ao qual o tricolor buscava, já havia sido alcançado: retornar à segunda divisão, onde o clube formado por jovens peladeiros – o único a ser campeão brasileiro em três divisões distintas (Série B, em 1972, Série C, em 1997, e Série D, em 2012) – permaneceu até o ano passado, quando terminou em último lugar e caiu novamente para a “terceirona”. Biro credita a eliminação do Fortaleza ao fato de não ter conseguido ingresso para a partida. Quando leu no jornal de segunda-feira que os bolivianos haviam calado o Castelão, sentiu que deveria ter estado lá e compartilhado do silêncio.

 

Amizade entre torcedores. Nacional 2 x 3 Juventus, Série A2, 2019. Foto: Futebol de Campo.

Ubiratan Brito de Souza nasceu em Umari, a 325 quilômetros de Fortaleza, no dia 19 de abril de 1945, data em que se convencionou celebrar a festa em homenagem a Santo Expedido – o santo das causas impossíveis – de quem Biro se tornaria devoto. Quando tinha oito anos, sua mãe morreu de Alzheimer, uma doença até então desconhecida e, no caso da Dona Aparecida, tardiamente diagnosticada. Cresceu ouvindo falar sobre o quanto era parecido com ela, mas as lembranças vinham muito mais dos vizinhos no campo do que pela boca do pai, um pequeno agricultor que adorava fumo barato e não podia ver um rabo de saia. Ubiratan viveu uma infância escaldada num casebre de fogão a lenha e teto de palha, em meio a porcos, galinhas e pacas, numa época em que a preocupação quanto a resfriados, machucados e raios era bem menor. Esta foi a sua realidade até os 14 anos, quando se mudou para Sobral – quinto município mais populoso do Ceará – a convite do tio Carlos, um sujeito calvo de barba ruiva e metido a machão, que montara uma pequena mercearia na cidade e lhe prometera emprego de ajudante. O pai o incentivou a aceitar a proposta porque acreditava que não havia trabalho mais maçante que no campo e porque talvez lá o filho pudesse ter acesso aos livros.

Franzino, tímido e desengonçado, Biro cultiva uma educação excessiva do tipo que pedia licença para tudo, até quando não devia. Pedia desculpas sem errar e assumia o erro dos outros. Esta postura humilde durou até o dia em que no aniversário de um colega da escola derrubou o copo de refrigerante no chão e sujou a bermuda do aniversariante. A mãe dele, uma senhora temida e admirada, achou que o filho tivesse sido displicente e logo o advertiu. Biro assistiu a bronca calado, imaginando que se assumisse a culpa perderia a amizade. Na manhã seguinte, desculpou-se com o amigo, que o perdoou, mas não sem chamá-lo de covarde.

A displicência com que apresentava suas roupas – não por falta de recursos, mas pela preferência em repetir as mesmas camisas, os mesmos shorts e as mesmas sandálias – contrastava com a vaidade que dedicava ao cabelo castanho liso, sempre penteado para a esquerda e com aparência de molhado. Na sala de aula, gostava de história e geografia, tinha dificuldade em português e detestava biologia. Em Sobral, Biro conciliou a ajuda ao tio – que ele se recusava a encarar como trabalho – com o curso de eletricista do Senai, onde conseguira bolsa parcial por intermédio de Carlos, que nutria um bom relacionamento com a diretora da instituição. Recebia um salário-mínimo – na época algo em torno de R$80,00 reais – e uma ajuda de custo do pai, bastante inferior às despesas de quando ainda morava no sítio. Além disso, dormia e comia de graça, mantinha hábitos baratos numa época em que não havia mesmo muito com que se gastar. E assim tocava a vida: com pouca grana no bolso, mas sem as restrições básicas.

O seu sonho era trabalhar na indústria porque crescera ouvindo falar que a metalurgia pagava bem. Desde cedo já demonstrava empenho em concretizá-lo, havia até quem o achasse maduro demais – alguém disposto a assumir uma responsabilidade maior que a necessária para a idade. Biro, entretanto, nunca aceitou o discurso da vida humilde e da superação de obstáculos, embora admirasse qualquer pessoa que, assim como ele, decidisse trilhar o próprio caminho e triunfasse. Ele diria mais tarde que a sua história não era feita de altos e baixos; era lenta e contínua, como se todos os êxitos tivessem sido programados para ocorrer no tempo que lhe parecia mais tardio que o ideal. Tinha dificuldades em lidar com elogios e jamais se apegava a eles, mas um dos quais aceitava com gratidão era a serenidade. Isso ele julgava mesmo ser, sempre procurando ouvir os lados em litígio, desconfiando da verdade plena e buscando inconsistências nas opiniões formadas. O meio-termo era o seu norte. Mesmo quando concordava com tudo o que alguém dizia, contrapunha-se para gerar discussão no intuito de provar a outra parte que nenhuma certeza deve excluir a ponderação. Sua avaliação era de que a vida não é uma montanha-russa, apesar de notar que nela há mais amargura que emoção. Comedido no riso e no choro, em nenhum momento, da sua carreira ou do casamento, apelou para extremismos. 

Justamente por conta desta indecisão em tomar partido sobre qualquer questão, até mesmo sobre as mais triviais, Biro despertou a curiosidade em Eulália, uma moça que disfarçava de propósito a malícia para parecer ingênua e assim não gerar expectativas entre aqueles que lhe cobravam esperteza e sucesso. Morena de olhos de mel, um metro e sessenta e cabelos castanhos que vinham até o ombro, a beleza nunca foi um imperativo, embora soubesse que atraía mais atenção que o normal, o que não necessariamente lhe agradava. Eles se conheceram na quermesse de Santo Expedido. Ele tinha 21 anos; ela, 19. A iniciativa foi dela, mas quando Biro tentou segurar sua mão, Eulália se afastou. Após alguns minutos de mal-estar em silêncio, ele inventou um motivo para se despedir. Ela disse que ainda era cedo e tentou puxar uma nova conversa, em vão. Levaria três semanas para o reencontro por acaso, quando Eulália saía da farmácia no instante em que Biro cruzava a esquina de bicicleta. Marcaram um encontro na sorveteria dois dias depois. Ele guardou a novidade para não criar expectativa e porque achava que, se contasse, algo de errado aconteceria. Ela desmarcou. E eles só voltaram a se ver meio século depois, outra vez por acaso.

Toda sexta à noite, Carlos levava Biro à missa – uma prática que ele não apreciaria por muito tempo, mas que aceitava pensando na recompensa depois da cerimônia: algodão-doce cor-de-rosa e canjica. Não foi nem uma ou duas vezes que lhe ofereceram um trago mais forte, o que só viria a aceitar quando ingressou no exército, quando já aprendera a tomar conta de si. Naquele tempo ele só queria dormir cedo para estar inteiro no dia seguinte. Aos sábados e domingos, o compromisso era com a molecada do Junco com quem jogava bola no campinho de terra batida – o único hábito da roça que não deixara para trás. Não demorou a perceber, todavia, que ali a disputa era mais acirrada e o adversário não levava a derrota na boa. Biro nunca foi muito competitivo, mas ali aprendeu a ser. Ensaiando dribles curtos e toques de primeira, era um dos primeiros escolhidos no par ou ímpar. Os saudosistas que paravam para assisti-lo jogar coçavam o bigode e, como se não quisessem dar o braço a torcer, cochichavam uns com os outros que o moleque não era ruim de bola, mas também não era nada demais.

O Junco é um dos bairros mais populosos de Sobral e um dos menos assistidos pelo poder público, talvez por isso tenha fama de violento. “Fama” porque a percepção de quem vive nele é bem menos alarmante. É claro que a população sabia o porquê da súbita movimentação nas vielas após às 22:00, mas não a relacionava com os índices de assalto à mão armada tão divulgados pela imprensa sensacionalista. Para alguns moradores, inclusive, estes números não condiziam com a realidade, já que a sensação era de que não havia lugar mais seguro que a sua “quebrada”. Ali eles podiam sair de casa a qualquer hora com a certeza de que ninguém ousaria importuná-los. O único inconveniente – se é que isso poderia ser considerado como tal – eram as pipas que ocasionalmente enroscavam nas antenas de tevê no telhado. Mesmo assim, quando isso acontecia, era questão de horas para o reparo chegar e fazer o aparelho voltar a funcionar.

No Junco, as pessoas aprenderam sem esforço a desconfiar das verdades dos jornais. Lá nunca foi preciso lembrar que o jornalismo é obcecado por fatos negativos e que os seus profissionais não sossegarão até encontrarem um dado que lhes justifique imprimir as suas típicas visões pessimistas do mundo. Dessa forma, eles entendiam perfeitamente que para um jornalista, não importa, por exemplo, o quão pujante o comércio esteja ou quantos postos de trabalho são criados no semestre, a preocupação é mesmo com o índice de desemprego; a atenção sobre o conflito no Oriente Médio desaparece tão logo o cessar-fogo é anunciado; a confraternização entre os povos nos Jogos Olímpicos merece menos destaque que a gafe no discurso de abertura; os governos sempre erram mais que acertam; a inflação pode até cair, mas os eletrônicos continuam caros; a balança comercial fecha ano após ano com superávit, mas a de serviços é deficitária há uma década; as compras de Natal são insignificantes para a economia até que se constate a contração; e quando não há nada de ruim para publicar, de repente a proliferação de cães sem dono se torna um problema de saúde pública. Nada disso era novidade para os moradores do Junco, que sabiam exatamente o motivo pelo qual os repórteres se interessavam pelos seus problemas. 

A casa em que Biro morava com o tio era o que hoje pode se chamar de “moradia popular”. Ao contrário da imagem associada à periferia urbana, a maioria dos imóveis do Junco é feita de alvenaria e tem reboco. São residências padronizadas, de baixo custo, com quintal, laje e vaga de garagem. Algumas são espaçosas, com dimensões que variam de 60 a 80 metros quadrados. Foi neste lugar que Ubiratan deixou de ser o menino obediente e compenetrado, como sugeria as correspondências enviadas à família pelos Correios, nas quais a grafia caprichada também revelava uma verdade distorcida. Ele havia deixado a barba crescer e abandonado às camisas polo para dentro da calça, embora resistisse a ideia de furar a orelha e tingir os cachos. Passara a ouvir brega e a falar sobre garotas após as peladas de sábado à tarde. E foi numa dessas peladas na várzea do Sobral que se enturmou, entre chapéus, canetas, vacas e trivelas, com Armando – o amigo que, de certa forma, mudaria a sua vida.

Armando é um pedreiro cuja aparência esconde o vigor da profissão. Moreno atarracado com indícios de calvície, queixo duro, testa rechonchuda e abdômen mirrado, os seus amigos o veem como um sujeito despretensioso e sem vaidades, alguém que não interrompe a refeição por encontrar um fiapo de cabelo no prato ou se importa de usar os mesmos jeans para o trabalho, geralmente com o cinto à mostra, e que quando se curva deixa escapulir o escapulário, presente da avó materna, uma católica fervorosa que renegou os prazeres da alma enquanto pôde. Sergipano de nascimento e cearense por convicção, Armando chegou a tentar a carreira eucarística para agradar a velha, mas não durou duas semanas até se deixar levar pelo futebol e trocar de vocação. A avó, muito desgostosa, tentou dissuadi-lo, mas o perdoou com base na fé bíblica de que há coisas sem explicação, e uma delas podia ser este jogo banal que fascina tanto as novas gerações.

A diversão noturna de Armando é o Mula Preta, um lugar nos arredores do Jóquei Clube onde os jóqueis se reúnem depois do páreo para jogar dama, beber pinga e se refugiar das esposas exigentes. Por mais que estes homenzinhos não despertassem intimidação, são por obrigação baixos e magros, apesar de viris, Armando os via como vítimas de uma preconcepção da qual ele próprio sofria – a atribuição de força conforme a aparência – algo com que, claro, não podia compactuar. Certa vez, o chefe, atendendo a sua velha requisição, apresentou-lhe um auxiliar atlético, do tipo que se dedica ao máximo às atividades físicas e se gaba por ter servido ao exército, embora tenha pedido baixa sem dar explicação. O sujeito se apresentou de brinco e camisa apertada, o suficiente para Armando desconfiar. Ao final do turno, depois de ouvir as variadas desculpas sobre por que o ajudante não conseguira dar conta das tarefas designadas, seja por conta do bico de papagaio, úlcera intestinal ou da súbita labirintite, tinha certeza de que não o veria na manhã seguinte. Enganou-se. Altamiro compareceu com a mesma indisposição. Irritado por ter de trabalhar redobrado, pensou em levar a queixa ao chefe, mas não foi preciso porque o próprio Altamiro se deu conta de que não nascera para aquele tipo de função, e sem saber o porquê era capaz de erguer 120 quilos no supino, mas não aguentava carregar dois sacos de cimento, pediu as contas para se dedicar às passarelas. Desde então, Armando ficou com a impressão de que homem musculoso é frouxo. E para corroborar sua teoria, foi-lhe apresentado, semanas depois, o Sr. Waldecir, também chamado de Mussum, por razões óbvias – um paraibano magrelo, crente, banguela e ágil feito um corisco. Eles se deram muito bem no trabalho e certamente poderiam ter iniciado uma bela amizade não fosse o fato de Mussum ser abstêmio e pregar o evangelho a toda hora.

Numa dessas visitas ao Mula Preta, depois da pelada, Armando convidou Biro a acompanhá-lo, que por um instante relutou, mas acabou cedendo à insistência – e lá ficaram ouvindo brega e conversando até as onze da noite sobre decisões equivocadas e tempo desperdiçado. Armando confessara que o casamento não ia bem e que falhara como pai – desabafos que deixaram Biro sem graça. Como todo homem reservado, assuntos pessoais o constrangiam. Não falava sobre si esperando que os outros fizessem o mesmo. Podia passar horas debatendo futebol, política e carnaval – o que, na sua visão, eram quase a mesma coisa –, direitos dos animais, catástrofes ambientais e outras efemérides, mas quando a conversa cambiava para vida conjugal, sempre se calava. O fato de ser solteiro e não ter filhos naturalmente o blindava das perguntas indesejáveis, mas isso não bastava. Preferia não ter de ouvir e fingir que estava interessado. Jamais tecia comentários e ficava aliviado quando trocavam de assunto, o que só não fazia para não transparecer indiferença. Enxergava com muita clareza, na verdade, a diferença entre introspecção e privacidade, entre simpatia e intimidade, e achava que os outros também deveriam enxergar. Por isso evitava falar sobre mulheres e, principalmente, sobre sexo. Pensava que o silêncio transmitisse a mensagem, mas muitas vezes se equivocava e em outras até piorava, parecia que quanto mais quieto ficasse, mais curiosidade despertava. E era justamente este tipo de gente que Biro excluía do seu círculo de convivência, razão pela qual restavam-lhe sempre poucos colegas e quase nenhum amigo.

Felizmente, porém, com Armando foi diferente. Embora adorasse falar, não exigia reciprocidade ou atenção exclusiva, e, no caso dele, o silêncio de Biro foi muito bem interpretado. Trocou, então, o tom lamurioso daquele desabafo, pediu outra dose de cachaça com limão e desatou a falar sobre futebol, política e trabalho. Contou que havia pintado um bico na firma contratada para executar a obra de um viaduto em Fortaleza. Biro ficou interessado. Comentou que se formara no curso técnico de eletricista e buscava emprego na área. Armando o recomendou ao chefe que ainda não conhecia e, para a surpresa dos três, a firma entrou em contato duas semanas depois.

Antes de arrumar as malas, Biro levou o tio Carlos para mais uma pelada de sábado à tarde no campinho de terra. A julgar pela fisionomia, Carlos foi o penúltimo a ser escolhido no par ou ímpar, e eles acabaram em times opostos. Biro marcou três gols – um deles de peixinho –, mas a sua equipe perdeu por 13 x 17. A goleada só não foi maior porque Carlos isolou duas bolas sem goleiro, falhas atribuídas a joanete no pé esquerdo, apesar de ser destro. Depois da partida, vencedores e vencidos confraternizaram no bar anexo. Era rabo de galo e bode na brasa que não acabavam mais. Mesmo quem não era do ramo se juntou à farra e o brega comeu solto até a madrugada. Lá pelas tantas, prevendo a dispersão, Carlos pediu a palavra e anunciou a mudança do sobrinho. Ninguém pediu discurso de despedida porque não era o caso de melodramas. Biro agradeceu a dispensa e disse que aguardaria ansioso a próxima pelada. Poderia ser dali a três meses, três semestres ou três anos; no que dependesse dele, seria o quanto antes. Isso não foi dito, mas era o que queria que acontecesse. E talvez por ter mantido o desejo discreto, foi um dos que mais ficaram abatidos quando soube, meses após a sua despedida, que naquele terreno fora construído o único conjunto comercial com heliporto e quadra de tênis em Sobral, apesar dos poucos helicópteros e tenistas na cidade.

 

A  obra no elevado Parangaba durou dois anos a mais que o previsto na licitação, o que garantiu o ganha-pão de Biro por algum tempo. A esta altura já havia desistido de retornar a Sobral; estava adaptado em Fortaleza. Vivia em uma casa de dois quartos com quintal e dois pardais, e era tão bem quisto no bairro que podia até extrapolar de vez em quando no churrasco que os vizinhos relevavam. Armando, que acabara se desligando da construtora antes mesmo da inauguração do viaduto, em 1998, era o menos contido e sempre quando a prosa enveredava para a rivalidade no campo, defendia os seus pontos de vista de uma forma tão eloquente que acabava não deixando os outros falarem.

Apesar de terem condenado o coração a clubes rivais – “o cabra sabe que vai sofrer, mas torce do mesmo jeito; é fiel feito corno apaixonado”, brincam – Biro e Armando têm visões semelhantes sobre o jogo: ambos nutrem crítica às novas gerações: “jogador hoje é tudo mole”; recordam na ponta da língua o nome dos grandes craques do futebol cearense – Babá, Pacoti, Damasceno, Gildo, Croinha, Mirandinha e Mozarzinho –; e preferem a seleção brasileira de 58 à de 70 por conta de um anjo de pernas tortas. “A melhor equipe precisa ter o melhor jogador”, garante Biro, batendo o punho na mesa e se inclinando para trás. “Se Garrincha não está nela, então não foi a melhor. Invente outra em que ele esteja”, concorda Zé. “E vou te falar uma coisa”, continuou ainda mais incisivo, “não sei o porquê da discussão: Garrincha não foi só melhor – foi muito, mas muito melhor que qualquer outro! E nem me venha com os números do Pelé – os gols, os títulos, os rótulos – eu vi os dois jogarem e sei que Garrincha foi e será sempre o maior”.

A idolatria aumentou depois de o virem atuar no estádio Presidente Vargas, em 28 de janeiro de 1968, num amistoso em comemoração ao título estadual do Fortaleza de 1967. Na ocasião, Garrincha, na reta final da carreira (ele largaria o futebol três anos depois), jogou apenas o primeiro tempo, mas foi o suficiente para as 3.399 testemunhas jamais se esquecerem do dia em que o anjo entortou três zagueiros e deixou o arqueiro no chão, apesar de não ter feito o gol, porque preferiu sair da área e recomeçar a brincadeira. Biro nunca tinha visto nada parecido; Armando jura que de fato aconteceu.

O companheiro de quarto de Mané durante a estadia no Chile, um menino negro de um metro e sessenta e nove centímetros de Campos dos Goytacazes (RJ), também encantou a dupla. Nelson Rodrigues o chamava de Príncipe Etíope de Rancho. “Didi foi o maior meia que o Brasil já teve”, cravavam. “Certa vez, um espanhol me disse que ele arrebentava nos treinos do Real Madrid, mas Di Stéfano, com inveja, o boicotou”, conta. Valdir Pereira (1928-2001), o Didi, trilhou uma carreira de sucesso como jogador e treinador. Criador da folha seca, eleito o melhor jogador da Copa de 58 e ídolo do Fluminense, Didi foi contratado pelo Real Madrid em 1959 para jogar ao lado de Di Stéfano e Puskas. A experiência no clube merengue foi curta, mas vitoriosa: o título da Liga dos Campeões daquela temporada (1959-60) foi o primeiro conquistado por um brasileiro. De volta ao futebol brasileiro, fez história no Botafogo – clube pelo qual marcou mais gols na carreira (114) e se sagrou tricampeão carioca (1957, 1961 e 1962). Após passagens pelo futebol peruano e mexicano, retornou ao São Paulo F. C, onde pendurou as chuteiras. Como treinador, comandou no Brasil: Fluminense, Cruzeiro, Botafogo, Atlético Mineiro, Bangu e o Fortaleza, em 1985; na Argentina: o River Plate; na Turquia: o Fenerbahçe; no Peru: Sporting Cristal e Allianza Lima, além de trabalhos curtos no futebol árabe (Kuwait e Arábia Saudita). Ademais, esteve à frente da seleção peruana no mundial de 70 – a melhor campanha do país andino no torneio e devido a qual é sempre lembrado com gratidão.  

 

Mosaico da torcida do Fortaleza nas quartas de final do Campeonato Brasileiro Série C, 2014, contra o Macaé. Foto: Carlos Yuri/Leões do Face.

As ideias comuns de Biro e Armando se estendiam para além do futebol. Eles gostavam de comida pesada, valorizavam a simplicidade e tinham saudade da roça, embora já não quisessem sair de Fortaleza. Era um sentimento estranho, uma mistura de saudosismo com remorso – algo como uma penitência diante da impossibilidade de reviver o passado e experimentar tudo o que não puderam fazer nele. Biro só voltou a Umari em 2010 para o enterro do pai, a quem não via há mais de quinze anos quando se reencontraram na casa de Carlos em Sobral – ocasião em que, apesar do abraço apertado, não conseguiram avançar no diálogo monossilábico – e que morreu sem saber de sífilis três anos antes de completar um centenário de vida no asilo para onde se mudara, de livre e espontânea vontade, desde o falecimento da companheira que Biro jamais conheceu. Carlos não pôde comparecer à despedida por motivos de saúde. Enviou, porém, um telegrama de condolências.  

Nem mesmo a mudança de rumo laboral – Armando saltava de bico em bico para complementar a aposentadoria e Biro trabalhava há sete anos numa empresa de manutenção terceirizada – esfriou a amizade dos dois. Eles sempre arranjavam um tempo, seja no bar ou na casa de Biro, para colocar o papo em dia. Em dia de Clássico-Rei, então, nem se fala. Durante anos, eles preferiram assistir ao jogo em separado, trocando mensagens, nunca desrespeitosas, após o duelo. Uma prática que se tornou um ritual era de que o perdedor tomava a iniciativa para evitar deboche e zombaria, consentindo, assim, que o outro degustasse um pouco o sabor da vitória. Apesar deste esquema ter funcionado bem, nos últimos anos eles passaram a combinar de assistirem juntos, ora na casa de um, ora na casa do outro, e só de vez em quando no Mula Preta ou no Avião, na época em que este ainda funcionava. O problema dos bares é que, apesar de seguros – a rivalidade no Nordeste é menos violenta que no sul e no sudeste, salvo alguns episódios, em especial no Recife – os torcedores opinam durante a transmissão, algo que sempre perturbou Biro, não tanto Armando.

Os encontros ocorriam, basicamente, pelo campeonato estadual no primeiro semestre do ano, porque Ceará e Fortaleza vinham jogando, desde 2010, em divisões separadas no nacional: o Ceará subiu para a primeira em 2009, caiu para a segunda em 2011 e permanece nela desde então; o Fortaleza caiu para a terceira em 2009 e não conseguiu mais retornar para a segunda. Naquele ano, também se enfrentaram pela Copa do Nordeste, com vitória do Vozão por 2 a 0. Por este torneio só voltariam a duelar em 2015, ocasião em que o alvinegro levou a melhor de novo com uma vitória (2×1) e um empate (1×1) e acabaria se sagrando campeão invicto. Aliás, o confronto direto foi favorável ao Ceará no quinquênio subsequente, invertendo o amplo domínio do Fortaleza que perdurou de 2000 a 2010, década em que conquistou nove estaduais, incluindo o inédito tetracampeonato (2007-2010). De 2010 a 2014, os arquirrivais se enfrentaram 20 vezes, sendo 11 vitórias do alvinegro, três do tricolor e sete empates. Desses confrontos, três foram em decisões do estadual, com uma conquista do Fortaleza (2010) e duas do Ceará (2012 e 2014). Porém, nestas duas finais, assim como na de 2013 contra o Guarany de Sobral, o Ceará foi campeão sem derrotar os rivais, levantando o troféu no critério de desempate. Em 2014, o título veio após dois duelos sem gols, e para lamento tricolor, o ano ainda reservaria outra ingrata surpresa.

A campanha do Fortaleza no Brasileirão Série C de 2014 foi quase impecável. Dos 18 jogos preliminares, venceu a metade, empatou outros oito e só perdeu um, para o CRB, fora de casa. Classificou-se em primeiro lugar isolado no Grupo A, com 35 pontos. O desempenho deixou os torcedores esperançosos, ainda mais porque no confronto seguinte, válido pelas quartas de final, a equipe enfrentaria um rival bem menos tradicional, o Macaé (RJ) – um clube com menos de trinta anos de vida que se classificara com um retrospecto irregular: sete vitórias, cinco empates e seis derrotas. O Leão decidiria a vaga em casa e, com certeza, contaria com um Castelão fervoroso que empurraria o time de volta à Série B.

Eufórico, Biro convidou dois colegas do trabalho para acompanhá-lo na decisão. Corria o boato de que era preciso adquirir o ingresso o quanto antes porque os cambistas fariam a rapa dos lotes mais em conta. Além do que, o clube vinha adotando uma política de venda que privilegiava o sócio-torcedor, coisa que Biro pretendia se tornar, mas sempre acabava adiando, não por razões econômicas, mas por preguiça de se cadastrar. Quatro dias depois do duelo de ida na cidade do norte-fluminense, aproveitou o abono social para dedicar a manhã ao que previra que seria uma verdadeira maratona. Saiu cedo de casa com camisa regata, bermuda florida e chinelo de dedo, do mesmo jeito despojado como gosta de se vestir nos dias de folga e após o banho. No caminho, despejou moedas de dez centavos na saída da estação Parangaba. Seu Alaor agradeceu. Ao se aproximar do Bar Avião, o telefone vibrou. Era Didi, vizinho de Carlos, quem o informou sobre o estado debilitado de saúde do tio. Biro voltou para casa, preparou a mochila e se dirigiu até a rodoviária.

Quando chegou em Sobral, Carlos já estava em casa. Recebera alta a tempo de acompanhar no sábado as quartas de final ao lado do sobrinho, mas dessa vez em repouso. Biro sacou a camiseta da mochila e se deu conta de que havia esquecido a bateria do celular, embora isso não tivesse qualquer importância.

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Caio Araujo

Só mais um torcedor.

Como citar

ARAUJO, Caio. A saga de um Leão centenário (parte III). Ludopédio, São Paulo, v. 119, n. 6, 2019.
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