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A última palavra é sempre do povo: a topofilia começa pelo nome

Não é de hoje que o torcedor está pouco a pouco perdendo a batalha para os cartolas e políticos brasileiros, que a passos largos vêm conseguindo impor ao futebol um processo de elitização e de gentrificação (LEITE, 2002) extremamente perigoso e danoso para o esporte, para as relações sociais e afetivas, para as dinâmicas dos grupos torcedores. E, por mais que essa cartolagem esteja cada vez mais avançando também numa especificidade que a princípio seria para lá de simplória, neste quesito, ao menos, a coletividade ainda resiste bravamente. Até quando, eu não sei, mas resiste. E, acredite, isso é lindo.

Falo aqui, obviamente, dos nomes dos estádios de futebol. Mas, atentai, falo dos nomes de verdade. Dos nomes gritados pelas arquibancadas ensandecidas, pelo povo, pelos laços topofílicos (BALE, 2003; TUAN, 1980) que ressignificam um espaço a rigor inanimado e que é transformado numa entidade viva, que tem alma, que tem afeto, que tem nome, pois. Como acabo de dizer, atenho-me aqui aos nomes de verdade, e não aqueles que são tolamente registrados como sendo os “oficiais”.

Sim, porque… quem disse que os verdadeiros nomes dos estádios são definidos em casas legislativas ou em escritórios localizados nos subterrâneos do futebol? Quem disse que os estádios têm que ser chamados pelos nomes de políticos e de cartolas que os torcedores pouco conhecem? Pouco gostam? E que nada representam a eles? Pior. Quem disse que esses estádios deverão ser chamados por nomes de empresas que pouco somam ao coração do apaixonado?

Uma das mais bonitas subversões populares é a capacidade de renomear o que bem entender, à revelia da ira e das reações dos mandatários que se julgam erroneamente donos da palavra final. Não são. Não serão nunca.

Claro, isso não é exclusividade do futebol. Em João Pessoa, por exemplo, de onde eu escrevo, foi construído por volta de 2003 um viaduto com suspeitas de superfaturamento. Em meio à polêmica da época, algum gaiato disse que esse mais parecia um sonrisal, visto que estava pronto para se dissolver a qualquer momento. Foi o que bastou. Ele foi imediatamente rebatizado. “Viaduto Sonrisal” virou ponto de referência na cidade. Tem até programa de rádio que, ainda hoje, assim o nomeia quando vai falar do trânsito naquela área de João Pessoa. E, quase 20 anos depois, a obra continua em pé, intacta, o nome segue vivo no imaginário coletivo, igualmente intacto.

Agora, é mais do que evidente que, embora não seja exclusividade dele, no futebol isso é potencializado. Afinal, ao contrário de viadutos, nomes de estádios viram letras de música, gritos de guerra, tatuagem marcada na pele, narrativa épica, simbolismo para além do concreto e do inanimado. Nomes de estádios viram o endereço, as coordenadas, o próprio lugar de convergências e de encontros.

Acho que vocês já perceberam que esse texto é inspirado inicialmente na ideia impertinente e pouco efetiva de um político do Rio de Janeiro de propor a mudança do nome do Maracanã, que por sinal já se chamou Estádio Municipal, hoje se chama Jornalista Mário Filho, mas que a rigor nunca deixou de ser o que é: Maracanã. E o exemplo aqui é interessante porque Mário Filho não é um político qualquer, mas uma personalidade do jornalismo e da literatura que foi o principal entusiasta da construção do estádio e que realmente merece a homenagem. Mas, como se vê, nem isso é suficiente para definir como uma praça esportiva será enfim batizada. Esse poder, como já disse, caberá sempre à decisão inviolável das ruas.

Ainda assim, mesmo sendo inspirado no Maracanã, gostaria de apresentar aqui outros exemplos que para mim são maravilhosos. E faço isso começando pelo meu preferido: Estádio dos Aflitos, no Recife.

Sim, eu sei, é referência ao bairro de mesmo nome. Mas, pouco importa. O nome é bonito demais para nos apegarmos a pormenores. Foque na poesia que é um estádio chamado de “aflitos”. A definição perfeita de todo torcedor que entrega a terceiros o seu próprio destino, os seus mais profundos arrebatamentos. A propósito, eu tenho uma crônica sobre o nome desse estádio, que reproduzirei ao fim do texto.

Torcida do Náutico no Estádio dos Aflitos. Foto: Wikipédia

Antes, contudo, cito outros (para conhecer mais estádios, sugiro um passeio pelo site Verminosos por Futebol). E até dá para permanecer em Pernambuco, por ora. Recife é um espetáculo à parte, afinal, pois a cidade ainda tem a Ilha do Retiro e o Mundão do Arruda. Sem esquecer da subversão e da ousadia que é chamar de Gigante do Agreste o estádio de Garanhuns, no interior do estado, gigante sim mesmo tendo capacidade para apenas seis mil torcedores.

Poderia continuar enumerando dezenas de outros. Atenho-me à Baixada Melancólica, em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, que tem outro nome poético demais. E ao Zerão, no Amapá, numa verdadeira aula de geografia, visto que a linha de meio de campo divide os dois hemisférios. Único estádio do mundo, talvez, em que um artilheiro, numa mesma partida, pode se consagrar nos dois lados opostos do globo terrestre.

Tem também o Moça Bonita, no Rio de Janeiro; o Joia da Princesa, em Feira de Santana; o Parque do Sabiá, em Uberlândia; a Fonte Nova, em Salvador. Esses dois últimos, aliás, foram oficialmente rebatizados para os seus apelidos populares.

E, em meio a tantos, vale até citar os casos do Brinco de Ouro da Princesa, em Campinas; o Morada dos Quero-Queros, em Alvorada, no Rio Grande do Sul; o Velho Chico, em Neópolis, Sergipe, cidade que é banhada pelo Rio São Francisco. Todos eles representam a antítese do que digo aqui. Quando os nomes populares – e lindos – são também os nomes oficiais.

De toda forma, esses últimos são exceções. A regra é aquela mania desenfreada de homenagear sabe-se lá quem. E é por isso que, sempre que necessário, me ative aqui aos nomes populares e releguei os “oficiais”. É o que tem que ser feito, penso. Jornalistas, acadêmicos, pessoas que escrevem sobre futebol, cada vez mais devem ter esse compromisso (ético, talvez) de dar voz aos torcedores. Transformá-los em agentes e em protagonistas, em atores relevantes na importante missão de nomear suas próprias casas.

Estádio dos Aflitos em 1968. Foto: Wikipédia

*****

Estádio dos Aflitos

(crônica inédita de minha autoria)

São todos aflitos aqueles que entram em um estádio de futebol para testemunhar o imponderável. Para acompanhar o desenrolar de acontecimentos que em instantes podem transformar dor em glória. Glória em dor.

São todos aflitos aqueles que deixam o próprio destino na mão de onze atores.

Ou mesmo alguns mais, visto que o lance decisivo que reescreverá a história, não raro, sai do banco de reservas direto para a posteridade.

São todos aflitos aqueles que amam, choram, sofrem, morrem, revivem.

São todos aflitos aqueles que optam pelo aconchego da multidão, pela segurança dos gritos enlouquecidos, pela proteção reconfortante do estádio em sua lotação máxima.

Amigos, irmãos, pares, cúmplices, alvirrubros.

Aflitos, pois.

Quantas histórias incríveis não foram modificadas, recontadas, redefinidas no intervalo de um lance, de um chute, de um passe, de um gol, de um drible.

A vida transformada para sempre.

No exato momento de um arrepio, de uma respiração profunda, de uma passada de mão na testa, de uma engolida a seco, de um urro tresloucado que almeja ter o poder cinético de modicar o curso dos acontecimentos.

São tolos aqueles que julgam buscar a felicidade plena num estádio de futebol.

Os momentos de júbilo, ao longo da vida de torcedor, serão infinitamente mais raros do que os de letargia profunda, de decepção, da mais pura dor.

Dor que forja o caráter, é bem verdade, mas ainda assim dor.

Não, não haveria a menor graça, o menor sentido de ser, um estádio que se chamasse Felicidade.

Mas Estádio dos Aflitos, como só o centenário Clube Náutico Capibaribe possui na gigantesca Recife, é sem dúvida alguma um dos nomes mais bonitos, poéticos e emblemáticos que se pode existir para um estádio de futebol.

 

Referências

BALE, Jhon. Sports Geography: second edition. London and New York: Routledge, 2003.

LEITE, Rogério Proença. Contra-Usos e Espaço Público: notas sobre a construção social dos lugares na Manguetown. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, pp. 115-134, 2002.

TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1980.


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Phelipe Caldas

Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba, graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFPB. É escritor e cronista, com quatro livros já publicados. Integra o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS/UFSCar) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (Guetu/UFPB). É membro-fundador da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).

Como citar

CALDAS, Phelipe. A última palavra é sempre do povo: a topofilia começa pelo nome. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 25, 2021.
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