12.7

A utopia do Soweto – Joanesburgo, África do Sul

As vuvuzelas hipnóticas convocam a reunião no Soweto como nas aldeias das tribos ancestrais sul-africanas. Acorremos à chamada. Mais do que no Soccer City, estádio do jogo inaugural, a história deste Mundial começa no Soweto. Aliás, como toda a história recente da África do Sul. As manifestações contra o apharteid, a luta de Mandela e Tutu, a revolução cultural, o nascimento da música kwaito, o Óscar dourado de Tsotsie. O arcebispo Desmond Tutu disse ontem que a lagarta feia que era a África do Sul se transformou numa linda borboleta. Pois bem, o Soweto foi o casulo dessa metamorfose. Um casulo escondido, reprimido, vedado, onde a igualdade era uma utopia. É para lá que vamos com a bandeira vibrante a abanar-se à janela e uma buzina eufórica a saudar a multidão. É lá que queremos ver o pontapé de saída. Lá, no casulo da utopia, entre iguais.

Os adeptos acorrem em massa ao Thokosa Park para . Lentamente, deixam as suas casas, caixas de fósforos gémeas e coloridas, e sopram as suas cornetas de plástico como elefantes de tromba erguida, anunciando ao mundo que chegou a hora de África. O parque é pequeno para tanta gente. Uma mancha amarela e verde está concentrada ao longo de uma ladeira relvada, em frente a um ecrã tosco e granulado, meneando braços, cachecóis e ancas. Ao meu lado estão velhos que participaram na revolta de 1976 contra o ensino obrigatório do afrikaans nas escolas e novos que viram Mandela sair da prisão. Mulheres encurraladas durante décadas no Soweto (South West Townships) e crianças que já nasceram sem precisar de passaporte para andar nas ruas do seu próprio país. A mim, ninguém me pediu documentos. Nem a mim nem a nenhum dos trinta brancos que se enfiaram no casulo. Foi-nos apenas pedido que gritássemos “Ayoba” (grito de satisfação) e que sorríssemos perante os incessantes desejos de “boas-vindas”. E que soprássemos uma  vuvuzela. E já agora, que saltássemos e nos abraçássemos a todos os que de nós se acercavam, perguntando comovidamente: “Can you feel it?”. Sim, estou a sentir.

O hino começa a tocar. Suponho que o hino sul-africano, “Nkosi Sikelel’ iAfrica”, seja o único no mundo inteiro composto em cinco idiomas: Xhosa, Zulu, Sesotho, Inglês e Afrikaans – os mais falados entre os onze oficiais do país. Ouvi-lo é um espectáculo bizarro. Cada um canta a parte da música de que sabe a letra, ficando em silêncio nas partes que não conhece. Esta melodia repartida simboliza a grande diversidade ética e cultural da África do Sul. Uma orquestra em que cada um toca o seu instrumento para obter uma sinfonia afinada. Contudo, ainda se está numa fase de ensaio. Os brancos alegam que não são contemplados pela batuta dos maestros negros, os negros dizem que os brancos continuam a tocar com os melhores instrumentos.

Percorro o parque para sentir o ambiente. De dois em dois passos, há alguém que me puxa ou me chama. Querem apenas saber de onde vim, porque vim e porque escolhi o Soweto. Outros pedem-me para tirar uma fotografia ao meu lado. “É bom ver brancos no Soweto”, diz Robert, um rapaz com duas grandes argolas penduradas nas orelhas. “Normalmente, as pessoas têm medo de cá vir”. Estranho a reacção de Robert. Nos últimos anos, o Soweto tornou-se num dos pontos turísticos mais atractivos de Joanesburgo, com monumentos, concertos e visitas guiadas. Muitos turistas ficaram mesmo alojados no ghetto em pensões ou através de contactos estabelecidos através do Facebook ou do Couchsurfing. Parece que mesmo assim os seus habitantes continuam com fome de convívio e que encontraram neste Mundial um apetitoso e raro banquete inter-racial. Deixamo-nos devorar pela curiosidade e alimentamo-nos também das histórias que não conhecíamos, do donde vieste, do que língua falas, do onde trabalhas….numa partilha de nutrientes humanos jamais vista a sudoeste de Joanesburgo. E por falar em nutrientes…o ambiente de partilha era tão grande que os habitantes do Soweto estavam a grelhar salsichas e a oferecê-las aos estrangeiros.

Soweto é também um local propício para reencontros. Resgato do meio da multidão o alemão Dara, o nosso amigo que nos acompanhou de Brazzaville a Luanda, o neo-zelandês Andrew, que terminou o seu périplo com 10 mil assinaturas no couro da bola de futebol, o holandês Nils e a sua namorada Anna, que conhecemos na Mauritânia. Como nós correram África para chegar ao Soweto. Abraçamo-nos com força, muita força mesmo, esmagados neste casulo acolhedor onde a lagarta se transforma em borboleta diante dos nossos olhos, num daqueles abraços que só é possível entre pessoas que comungaram experiências intensas. Reencontro também o Filipe, um dos meus melhores amigos e colega nesta vida de bloco de notas em riste, e a felicidade que sempre é encontrar uma cara familiar em terras desconhecidas. O Filipe foi das pessoas que mais me aconselhou na preparação desta viagem. Tanto ele como eu sabíamos que nos íamos reencontrar no Soweto. E assim foi.

Já estamos na segunda parte. Os adeptos a festejam como golos as defesas impossíveis do guarda-redes Khune. Inesperadamente, num contra-ataque, o médio Siphiwe Tshabalala fica isolado sobre o lado esquerdo, puxa do pé esquerdo atrás e coloca a bola com estrondo no ângulo superior da baliza mexicana. Golo! “Ayoooooooooba”! As vuvuzelas que não sopram voam pelos ares, paralelas a crianças que também são catapultadas. Miúdos e graúdos rebolam no chão, correm sem destino para abraçar um desconhecidos. Cachecóis  rodopiantes gritam “Bafana, bafana”, cerveja fria ensopa a roupa. O preto salta com o branco, o branco saúda o preto. É a festa de um povo, um arco-íris que saltita, um golo redentor. “Shosholoza, shosholoza”, que é como quem diz, em frente, em frente, como os mineiros que libertaram a terra. E, nós no meio desta utopia, ainda atordoados pela beleza do momento a que acabámos de assistir.

Olho para o velhote que vê o jogo ao meu lado e tento perceber o que estará ele a sentir. Terá cerca de 60 anos. Provavelmente, já terá nascido no Soweto ou terá sido para lá recambiado durante o apartheid. Viu o bairro crescer, transformando-se num dos maiores bairros de lata do mundo, com mais de um milhão de habitantes. Viu os motins de 1976, em que 10 mil pessoas morreram a vida. Viu o tenro corpo ensanguentado de Hector Pieterson ser carregado para um fim prematuro na luta por nação igual. Viu o Soweto definhar sozinho, sem água, sem oxigénio, sem ombro onde se apoiar, vivendo como um país preto dentro de uma nação branca. Viu o seu vizinho Mandela sair da prisão e voltar ao Soweto após 27 anos de cativeiro. Viu a SIDA a derrubar como tordos os seus filhos, os seus amigos, os seus familiares. Viu os mais novos agarrar em pistolas e alvejar a igualdade de classes à lei da bala. Viu as portas do Soweto abrirem-se e as pessoas a correr rumo à liberdade. Viu gente do Soweto ser campeão do mundo de râguebi com a camisola  de uma África do Sul unida. Viu o bairro ser transformado num símbolo de resistência. Viu Blatter anunciar a organização do Mundial na África do Sul. E hoje, sobre a tela onde todas estas imagens se sobrepuseram, viu projectado o golo de Tshabalala, natural do Soweto, reminiscência final de uma história de libertação.

Mesmo o golo de Rafa Marquéz, que empatou a partida, não arruinou a festa. Aliás, muita gente nem o viu porque estava ocupada a dançar de costas para o ecrã ou a tirar fotografias. O zumbido das vuvuzelas manteve-se inabalável. Já não interessava. O golo de Tshabalala só por si era suficiente para fazer história no Soweto. E isso é o que realmente importa neste Mundial – fazer história. Também eu estou a escrever a minha e para essas páginas guardarei um capítulo especial para como acabei esta noite. Em cima do carro com que percorremos África, abraçado a um sul-africano, eu com a bandeira dele, ele com a minha, cantando como iguais uma música que representa a utopia do Soweto: “When I get older, I will be stronger, they call me freedom, just like a wavin’ flag” (“Quando crescer, vou ser mais forte, chamam-me liberdade, como uma bandeira ondulante”).

 
*Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes foram de Portugal à Àfrica do Sul no projeto Road to World Cup. Foi mantida a grafia original, de português de Portugal.
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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco é jornalista e tem 34 anos. Publicou dois livros, centenas de reportagens nos mais prestigiados órgãos de comunicação social portugueses e é autor de dois documentários. Em 2013, ganhou o Prémio Gazeta Multimédia, da Casa de Imprensa, com o projecto "Estrada da Revolução". Com uma carreira iniciada em 2014, tem assinatura em trabalhos exibidos pela TVI e RTP, e impressos pelo Expresso, Sábado, Sol, Record, Notícias Magazine, Maxim e Diário Económico, para além dos alemães Die Welt e FAZ. Em 2010, desceu o continente africano de jipe num projecto que daria origem ao livro "Até lá Abaixo" (na terceira edição) e a um documentário com o mesmo nome. Em 2012, fez a ligação terrestre entre Istambul e Tunes durante a Primavera Árabe, que originou o livro "Estrada da Revolução" e o documentário homónimo. Foi responsável pelos conteúdos do documentário "Brigada Vermelha", sobre a luta de um grupo de adolescentes indianas pelos seus direitos enquanto mulheres. Cobriu importantes eventos internacionais como a guerra civil na Síria, o pós-revolução no Egipto, Líbia e Tunísia, o Mundial de futebol em 2010, a anexação da Crimeia por parte da Rússia, o referendo pela independência da Escócia, o movimento de independência da Catalunha, a crise de refugiados na Europa e a crise económica na Grécia e em Portugal. Muito interessado em desporto, esteve presente no Mundial'2010 e no Euro'2016 e já entrevistou grandes figuras do futebol: Eusébio, Madjer, Paulo Futre, Rivaldo, Deco, Roger Milla, Abedi Pelé, Basile Boli, Ricardo, Abel Xavier, Scolari, Chapuisat, Oscar Cardozo.

Como citar

CARRASCO, Tiago; HENRIQUES, João; FONTES, João. A utopia do Soweto – Joanesburgo, África do Sul. Ludopédio, São Paulo, v. 12, n. 7, 2010.
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