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A várzea teria uma cultura esportiva própria?

Raphael Rajão Ribeiro 27 de agosto de 2019

O futebol de várzea é mera redução da prática espetacularizada ou, em sua trajetória, é possível identificar a constituição de uma cultura esportiva própria, ainda que não totalmente autônoma do jogo em sua versão mais conhecida? Essa foi uma das questões que surgiu ao longo do desenvolvimento do Inventário do Futebol Amador em Belo Horizonte realizado entre 2016 e 2018.

O projeto apresentado em texto anterior, agora segue suspenso, em meio às descontinuidades da administração pública. Apesar de sua finalização no último semestre de 2018, ainda não fui submetido ao julgamento do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Município de Belo Horizonte, que autorizou sua abertura em dezembro de 2017.

Apesar do entrave burocrático, o estudo permitiu vislumbrar uma resposta preliminar para a questão, baseada no exame do caso belo-horizontino. Por meio de pesquisas de campo, produção de relatos orais e exame de acervos das entidades varzeanas e de órgãos oficiais, foi possível perceber a apropriação de práticas recorrentes do futebol, as quais ganharam contornos e sentidos próprios nas experiências populares com o jogo.

Essas recriações se baseavam em formas de disputas que também foram recorrentes no futebol profissional. Vale lembrar que, até os anos 1960 e 1970, quando se criaram competições nacionais e continentais, que, associadas aos torneios estaduais, passaram a preencher o calendário das equipes mais conhecidas, era comum a incorporação de embates avulsos para ocupar as datas ociosas e gerar oportunidade de renda para os clubes profissionais. Mesmo depois dessa etapa, tais partidas ou torneios ainda se mantiveram, com menos frequência, no entanto.

A prevalência do imperativo da competição no meio do futebol implicou no progressivo abandono dessas formas organizativas pelos clubes maiores, contudo, muitas dessas práticas foram centrais para a estruturação do calendário das equipes amadoras, que se apropriaram delas na constituição do que chamaremos aqui de uma cultura esportiva popular.

Mesmo com a constituição de um circuito competitivo varzeano, desde a ruptura representada pela profissionalização, os torneios promovidos oficialmente não eram capazes de ocupar todo o calendário dos clubes amadores, que se dedicavam a outros modos de disputa para a manutenção de sua atividade regular. Para além disso, um número considerável de times não era formalizado, o que implicava que suas ações se desenvolviam sem a tutela da Federação Mineira de Futebol.

No que se refere à formalização dos clubes – com a aprovação de estatutos em cartório, a submissão de pedido de filiação à Federação Mineira de Futebol e a manutenção de alvará junto ao Conselho Regional de Desportos, situação última que já não é mais necessária –, esse era um processo custoso e que poucas agremiações tinham condições de cumprir. Era muito comum que as equipes passassem por longos períodos de estruturação até alcançar o registro oficial, o que explica a distinção entre data de fundação e data de oficialização entre tantas entidades.

Nessa perspectiva, todo um circuito não oficial foi criado a partir do futebol amador de Belo Horizonte, o qual ainda existe. Nesse universo, prevaleciam as formas de prática mais tradicionais, em detrimento das competições de longa duração. Sem institucionalização, elas recorriam muito mais ao costume do que a regras escritas e supervisionadas pelas entidades dirigentes.

Assim, era comum que o calendário dos times se organizasse em cinco formas de disputa, que ocupavam os fins de semana das equipes e mobilizavam os interesses da comunidade do entorno: os amistosos, as excursões, os festivais, os jogos festivos e os torneios avulsos.

Neste artigo, falaremos dos amistosos e das excursões, retomando o tema dos festivais, dos jogos festivos e dos torneios avulsos no próximo texto.

Os amistosos eram a forma mais recorrente de atividade, implicavam na marcação de partida contra um adversário à escolha, a qual poderia ser realizada no campo do clube ou no espaço de jogo do adversário. Nessa medida, a disponibilidade de uma área iria determinar as possibilidades das equipes atuarem próximas ou distantes de suas comunidades, assim como os custos envolvidos na promoção de uma disputa, dado os recursos eventualmente despendidos com transporte.

Equipe do Esporte Clube Unidos da Brasilina, anos 1950. Foto: Acervo Gemir Moreira.
Equipe da Associação Atlética Tupinense, anos 1980. Foto: Acervo Dilson Geraldo Veloso.

Para a marcação de jogos, com a escolha dos potenciais adversários e dos eventuais árbitros, as agremiações, originalmente, tinham no Departamento de Futebol Amador da Federação Mineira de Futebol um ponto de encontro. A entidade mudou de sede durante várias ocasiões, sendo que, na memória dos praticantes, sempre eram referenciadas aquelas localizadas na Rua São Paulo e na Avenida Santos Dumont. Era para ali que clubes interessados em buscar um oponente, filiados ou não, se dirigiam.

Mais tarde, com a mudança do Departamento de Futebol Amador – DFA para uma sede na Avenida João Pinheiro, em espaço considerado de acesso mais difícil para os moradores dos bairros afastados, foi estabelecido um ponto de encontro na Avenida Santos Dumont, esquina com Rua Rio de Janeiro. Local que se denominou “Federação”, em referência ao fato de ser ali o antigo endereço da Federação Mineira de Futebol, onde se abrigava o DFA.

Os encontros de marcação de jogos aconteciam às segundas-feiras, ao fim do expediente, por volta das 16, 17 horas. Para ali, clubes conhecidos e desconhecidos no meio varzeano se dirigiam em busca de um adversário. Equipes de prestígio ou que dispunham de um campo em boas condições rapidamente “casavam” suas partidas. Os menos falados, por vezes, precisavam voltar no dia seguinte para conseguir um oponente. As combinações aconteciam aos gritos, ao estilo dos leilões e das bolsas de valores. Quem tinha uma área anunciava, as agremiações que não tinham, indicavam que estavam dispostas a fazer a visita. Cada um ressaltava com quantos times, ou “quadros” como se diz nesse universo, contava.

As arbitragens também eram acertadas ali. Por serem partidas não oficiais, normalmente se contava apenas com um árbitro, o central, ao contrário dos três que são tradicionais em disputas profissionais. Abria-se mão dos bandeirinhas ou auxiliares. Os candidatos a juiz ficavam à disposição e indicavam qual seria o custo de seu serviço, ficando combinado, na maioria das vezes, a divisão do pagamento entre os adversários.

Eventualmente, alguém responsável por um time, ou mesmo alguém conhecido no meio amador, poderia oferecer o serviço de marcação de jogos. Times cujos integrantes não tivessem condições de se dirigir à “Federação”, acertavam um valor para que seu jogo fosse marcado. Isso garantia, inclusive, a possibilidade de um conhecimento melhor de quais equipes não eram recomendáveis de se ter como adversário, seja porque davam muitos “bolos”, seja porque eram equipes que gostavam de briga.

Era principalmente a partir desse costume que os amistosos eram acertados entre as equipes de futebol de várzea em Belo Horizonte. Outra tradição que vigorava e que remete a outras práticas populares, a exemplo do Congado, é o compromisso, no caso de partidas que envolvessem duas agremiações que dispusessem de campo, de se “pagar a visita”. Ou seja, se um clube fosse ao meu bairro para me enfrentar, eu ficaria com o compromisso de, em breve, retribuir, ou como se dizia, “pagar”, indo à sua região para uma disputa ali.

Amistosos eram as atividades mais ordinárias do cotidiano das equipes de futebol de várzea, uma possibilidade de manter a atividade dos times que procuravam realizar partidas todos os finais de semana. Eventualmente, esses jogos poderiam colocar alguma premiação em disputa, o que serviria para tornar a partida mais absorvente. Sua organização podia ser mais frouxa, sem a contratação de um árbitro, para o que se mobilizavam os chamados “juízes de barranco”, um membro da assistência convidado a assumir a condução das contendas.

Outra forma muito recorrente no universo do futebol amador eram as excursões, ou seja, as partidas realizadas fora dos limites do município. Normalmente, uma oportunidade para os clubes da capital disputarem partidas em campos gramados, mais comumente encontrados pelo interior.

Delegação do Alvorada Futebol Clube em excursão a Monte Carmelo, 1957. Foto: Acervo Nilton Graciano da Silva.

O sistema de marcação tendia a ser o mesmo. Muitas pessoas ligadas a equipes de outras localidades se deslocavam para a “Federação”, onde agendavam suas partidas. Nesse caso, imperava o costume da ajuda de custo, ou seja, os times do interior ofereciam valor que, normalmente, correspondia à metade do aluguel do transporte para as agremiações da capital. Uma forma de estimular a ida do oponente, que muitas vezes seria difícil de conseguir em regiões menos populosas e mais isoladas de Minas Gerais.

As excursões eram uma oportunidade de lazer não apenas para os membros das agremiações, era recorrente que as viagens mobilizassem vários moradores da comunidade. Em diversos bairros, havia pontos de encontro tradicionais de onde os “especiais”, ônibus alugados, partiam rumo às cidades interioranas. O passeio, que se estendia por todo um domingo ou por um feriado, era uma das raras oportunidades de turismo para os habitantes das áreas periféricas da cidade.

Jardineira pertencente ao Nacional Futebol Clube, anos 1960. Foto: Acervo Joaquim Tomé dos Santos.

Para completar os custos de locação do transporte, normalmente o valor era rateado entre os passageiros, certamente quantia muito menor do que a que pagariam em uma viagem regular. Conforme o costume do anfitrião, ainda poderia haver a oferta de um almoço coletivo, o que tornava ainda mais vantajosa a excursão. Ao contrário dos amistosos, não tinha previsão de se “pagar a visita”, uma vez que não era interessante para o time interiorano realizar partidas em campos de terra, como são os que prevalecem em Belo Horizonte.

A partir dessa prática cotidiana, com o intuito de manutenção de jogos em todos os fins de semana, as equipes varzeanas desenvolviam formas próprias de organização, promovendo recriações a partir de formas de disputa tradicionais. Pontos de encontro como a “Federação” ainda hoje ajudam a organizar o circuito varzeano da cidade. Aos sentidos da competitividade e da aferição da competência esportiva, os integrantes das agremiações e seus apoiadores associavam outros valores, como a criação de oportunidades de lazer a partir das excursões ou a incorporação da lógica da reciprocidade nos “pagamentos de visita”. Elementos que se articulam a uma cultura popular mais abrangente.

Nessa perspectiva, talvez sejam os festivais varzeanos a forma em que a construção de uma cultura esportiva popular se expresse de modo mais perceptível. Sobre essa e outras formas de organização das disputas no meio do futebol amador de Belo Horizonte falaremos no próximo texto.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

RIBEIRO, Raphael Rajão. A várzea teria uma cultura esportiva própria?. Ludopédio, São Paulo, v. 122, n. 31, 2019.
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