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A volta do Paulistão e a derrota de todos nós

Os amantes do futebol brasileiro sabem há muito tempo que de onde menos se espera é que não vem nada mesmo. Pelo menos é isso que sentimos quanto aos sistemas de organização das competições e federações em nosso país. Várias demandas fundamentais são sempre colocadas em pauta, como uma reorganização do calendário esportivo, reformulação das disputas dos estaduais e renovação política da CBF e das federações. O que vemos na realidade parece quase sempre ir na contramão do que pode ser chamado de sensato.

Assim, aprendemos a já não ter muitas expectativas quanto às ações dessas entidades, pois quanto menos esperamos, menos nos decepcionamos. Mas incrivelmente, como talvez nunca antes visto na história do esporte brasileiro, a Federação Paulista de Futebol (FPF) conseguiu mostrar sua total desconexão com a realidade e insensibilidade nos últimos dias, remarcando jogos do Campeonato Paulista para outros locais fora do estado. Após uma intensa novela, esse show de horrores foi marcado para Volta Redonda – RJ.

Corinthians Volta Redonda
Foto: Rodrigo Coca / Agência Corinthians / Fotos Públicas

Para termos uma ideia da estupidez que é essa decisão, quero primeiro convidar a todos a pensar na própria competição. A disputa dos estaduais são sempre um capítulo interessante do calendário futebolístico brasileiro. Disputados em sua maioria nos primeiros meses do ano, são importantes por matarem a saudade do torcedor em relação ao clube do coração e do próprio futebol em si, além de ser uma chance de ver possíveis reforços das equipes em campo, saciando nossa curiosidade.

Os estaduais de 2021, porém, não tiveram esse papel, já que se sobrepuseram a temporada 2020, sendo apenas uma continuação do ano esportivo anterior. Esse fato por si só já diminui drasticamente a importância e o apelo da competição. Além disso, com contratos televisivos e de patrocínio já fechados em muitas dessas competições, como no caso paulista, o formato não foi rediscutido, fazendo com que tenham o mesmo número de jogos e rodadas que campeonatos anteriores, mas em tempo muito menor, visto que há um compromisso de encerrar a competição até dia 23 de maio, antes do início previsto do Brasileirão. Os times são obrigados a dosar suas forças visando o preparo para competições mais importantes, e o estadual fica mais esvaziado do que já é. Junte a isso a disputa da Copa América entre junho e julho e das Eliminatórias da Copa de 2022 ao longo do ano e o resultado é um caos total.

Por si só, esses pontos expostos acima já seriam mais do que suficientes para uma profunda autocrítica sobre o formato e andamento do Paulistão, mas a situação tem um gigantesco agravante: a piora do cenário pandêmico brasileiro. O negacionismo do Governo Federal e de seus apoiadores que lutam a favor do vírus, junto de uma total falta de políticas públicas em todos os níveis (federal, estadual e municipal) que garantam a saúde física e material das pessoas e pequenos negócios, intensificados pela variante brasileira que se dissemina com mais facilidade do que as anteriores, fizeram o Brasil mergulhar na maior catástrofe sanitária de sua história, tornando o país o epicentro da pandemia no planeta. E o futebol no meio de tudo isso? Age como se nada estivesse acontecendo.

Desde o agravamento da crise na saúde a FPF manteve a postura de não cancelar seus jogos. João Dória, governador de São Paulo, anunciou no dia 11 de março a restrição das competições esportivas no estado entre os dias 15 e 30 do mesmo mês. A FPF começou, então, a buscar alternativas. Fez reuniões com o governador e com o Ministério Público, tentou levar os jogos para outros estados (que em alguns momentos sinalizaram a favor e, em outros, contra), e ameaçou até mesmo entrar na justiça para que o campeonato não parasse.

Em reunião entre a Federação e os clubes da série A1 no dia 18, a maioria dos clubes optou por não judicializar a questão, e depois disso, entendendo que não haveria forma de levar os jogos para outro estado, resolveram apenas acatar a decisão do governo estadual. As coisas pareciam resolvidas, até que na tarde da segunda-feira, dia 22, foram anunciados que dois jogos da competição iriam acontecer em Volta Redonda: Mirassol x Corinthians e São Bento x Palmeiras.

O que impressiona dentro dessa confusão toda é que a defesa da “vida”, esse princípio básico que deveria nortear nossas atitudes, sequer passou pela cabeça de toda essa gente. A FPF defende que o protocolo do futebol é seguro e não vê motivos para que os jogos sejam paralisados, ainda que tenham acontecidos surtos da doença em provavelmente todos os times do Brasil em 2020 ou 2021. O descaso com a saúde dos próprios atletas é tão grande que se desconsidera o colapso total do sistema de saúde do país, que não conseguiria receber um jogador que por ventura precisasse de atendimento médico, como num caso de concussão ou outro problema mais grave, coisas que podem acontecer durante uma partida de futebol. E para justificar o injustificável, usa-se inclusive uma a ideia deplorável de que o “futebol seria uma das poucas alegrias da população, tão maltratada e cansada pelo vírus nesses últimos tempos”, pensamento esse que olha o esporte como um elemento alienante da população e o próprio povo como um ser passivo, sem capacidade crítica para analisar a realidade em que vive.

O que ela ignora é a mensagem que sua atitude realmente passa: que a vida de milhares de brasileiros não vale a pausa, a parada, o resguardo, o luto. Que o mundo precisa girar na mesma velocidade ainda que dois mil brasileiros percam sua vida a cada dia. Ou ainda, que o problema da pandemia não afeta a todos, que alguns que tem meios para isso irão seguir normalmente, e nem mesmo a solidariedade nos aproxima.

Nesse cenário, é chocante a falta de posicionamento ou a simples submissão de atletas e clubes. A fala é sempre a mesma: “somos funcionários, precisamos acatar as decisões” ou “temos contrato com a federação, não podemos deixar de jogar”, como se o momento vivido não fosse excepcional. Mesmo os clubes poderosos, mesmo os atletas consagrados. O que eles têm a perder? De onde vem essa indiferença?

Se hoje, além da luta contra o vírus, lutamos também contra o negacionismo, imagine a força que campanhas lideradas por clubes e atletas poderiam ter. Palmeiras, Corinthians, Santos e São Paulo, unidos, pedindo para as pessoas praticarem o distanciamento social, usarem máscara e tomar vacina. Ídolos de cada clube, capitães, jogadores-símbolo, engajados mandando mensagens de força e esperança em suas redes sociais, mostrando que o futebol estava paralisado porque existe uma disputa muito mais importante no momento, um bem-maior que é inegociável. O que fica para nós é o sentimento de resignação sabendo da distância que estamos de qualquer ação nesse sentido.

Em 2020, o segundo jogo da final do Paulistão foi disputado no dia em que a marca de 100 mil de mortes de covid no país foi batida. Em 2021, após brevíssima pausa, o jogo Mirassol x Corinthians foi jogado no dia em que o Estado de São Paulo teve, pela primeira vez, mais de mil mortes registradas em um só dia. O resultado dessa partida não importa. Esse jogo, como sociedade, todos nós perdemos.

Corinthians Paulistão
Foto: Rodrigo Coca / Agência Corinthians / Fotos Públicas


 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gustavo Dal'Bó Pelegrini

Professor de Educação Física e mestrando na área de Educação Física e Sociedade. E um pouco palmeirense. @camisa012

Como citar

PELEGRINI, Gustavo Dal'Bó. A volta do Paulistão e a derrota de todos nós. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 57, 2021.
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