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Agência Magnum – o futebol, a fotografia e o sagrado

Max Filipe Nigro Rocha 29 de janeiro de 2018

Como a conexão entre o futebol, fenômeno estético em sua essência, e a fotografia ainda não foi alvo de estudos mais aprofundados, procurando desmembrar os significados construídos por meios da produção infinita de imagens a respeito do esporte em questão?

Como parte integrante da pesquisa de doutorado que se inicia esse ano, pretendemos iniciar uma série de artigos a respeito da relação entre a fotografia e futebol. Cremos que estamos diante de um campo de pesquisa que ainda precisa ser desbravado, o que não deixa de ser surpreendente. Seja por meio de análise de livros de autoria coletiva, obras individuais de fotógrafos ou análises das produções de imagens pelas mídias digitais ou impressas, pretendemos então colaborar para a ampliação do debate nesse campo do conhecimento.

 

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Reprodução: Capa do livro MAGNUMFOOTBALL, Editora PHAIDON, 2002.

 

Nosso ponto de partida será a publicação MAGNUM FOOTBALL, editada em inglês e espanhol pela PHAIDON a partir de 2002. A escolha não é casual. A agência fotográfica MAGNUM foi e ainda é referência na produção de fotografias que conseguem aliar os elementos do fotojornalismo e da produção de notícias com a perspectiva artística e documental dos temas retratados. Fundada por Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, David Seymour e George Rodger, Rita Vandivert e Maria Eisner  em 1947 em Nova York, ainda chegou a reunir mais titãs do universo fotográfico como Ansel Adams, Josef Koudelka, Steve McCurry e Sebastião Salgado.

Mas não é apenas pelas suas imagens que a agência fotográfica se destaca. Sua organização que buscava a autonomia de cada um dos artistas fotógrafos, a independência na escolha das pautas a serem cobertas e da linha editorial a ser seguida se unia a sua dinâmica. Funcionando como uma cooperativa de fotógrafos que lutou pelo reconhecimento dos direitos autorais das imagens, a MAGNUM criou um modelo de trabalho independente que contribuiu para valorizar a produção de cada um dos profissionais da imagem diante dos grandes conglomerados midiáticos. Diante de tudo isso, seus fotógrafos oferecem uma coerência interna em seus ensaios fotográficos que muitas vezes eram prejudicados pelos editores dos grandes jornais.

No que se refere especificamente ao futebol, a coletânea de imagens presentes no livro vai além. A seleção de fotos foge da escolha tradicional de momentos emblemáticos do futebol espetacularizado como uma cabeçada em direção a meta adversária ou a comemoração do jogador após o gol marcado. Apresentando subseções como A equipe, O lugar, O passatempo, O passe, O jogo bonito, O gol e A paixão, a publicação oferece ênfase às narrativas que envolvem o futebol e as peculiaridades da prática do esporte nos mais diversos locais e culturas.

No entanto, a própria publicação anuncia a marginalidade do futebol diante dos assuntos a serem retratados pela agência. Como destaca Simon Kuper em seu prefácio, registrar essas práticas esportivas nunca foi uma intenção da agência e só ocorreu pois estavam inseridas em outro recorte temático mais amplo, como registrar a vida cotidiana nas sociedades islâmicas.

Aqui cabe um parêntese pois apresenta-se então um dos grandes enigmas da fotografia e que é um campo muito produtivo para a pesquisa para as ciências sociais – aquilo que é captado pelas lentes do fotógrafo nem sempre é o seu foco principal, mas isso não impede que os assuntos paralelos, marginais ou de menor interesse dos autores das imagens sejam fruto de investigação posterior.

 

Reprodução: COLOMBIA. Near Guapi. 1976. Football match in a wet weather. A.Abbas/Magnum Photos
Reprodução: COLOMBIA. Near Guapi. 1976. Football match in a wet weather. A.Abbas/Magnum Photos/PHAIDON.

 

Contudo, o criterioso recorte da publicação apresenta o futebol como prática humana que é portadora de uma linguagem universal e produtora de uma temporalidade própria. O olhar de MAGNUM para o esporte não se limita a sua prática, mas a todo o universo que o cerca e que pode ser por ele transformado, e, portanto, se transforma em um elemento que costura os diversos aspectos das sociedades humanas por meio dos registros fotográficos da prática esportiva universal.

Ao eliminar as referências óbvias de raça, religião, status social ou nacionalidade, as fotografias indicam uma preocupação rigorosa em relação as regras de composição como a geometria, as formas, os ângulos e as simetrias que são precisamente organizadas no momento do disparo da câmera. A prática do futebol eterniza os personagens das imagens, oferecendo elegância, transcendência e imortalidade. Absortos pela prática esportiva, quase nenhum personagem percebe que está sendo retratado. Não há pose ou simulação de algo, é a fotografia que captura o momento decisivo de cada uma das ações e eterniza-as.

Não há como negar o flerte com o âmbito do sagrado buscado pelos fotógrafos da agência. Feliz é a metáfora proposta pelo prefácio da obra que diz que o fotógrafo é o camisa 10. Se o primeiro pode ver ângulos e cenas que ninguém teve condições de observar ainda, o craque do futebol também é aquele que rompe com o cotidiano ao criar jogadas que até então pareciam impossíveis de existir.

O futebol é o elemento que gera empatia e sensibilização por meio das fotografias, mesmo que diante de realizadas tão distintas e irreconhecíveis. Embora as características culturais, os estilos de vida e as épocas sejam evidentemente diferentes em cada uma das fotos a ponto de permitir que o observador elenque os locais apresentados como mais próximos ou mais distantes da sua realidade, o que pauta o discurso da obra é a condição humana. Alteridade e identidade se entrelaçam a todo o tempo como eixo discursivo da publicação.

 

Reprodução: Copacabana Beach, Rio de Janeiro, Brazil, 1962 Fotógrafo: Thomas Hoepker/Magnum Photos
Reprodução: Copacabana Beach, Rio de Janeiro, Brazil, 1962 Fotógrafo: Thomas Hoepker/Magnum Photos/PHAIDON.

 

Essa perspectiva humanista – extremamente otimista e contagiante, mas por vezes também ingênua – sugere a possibilidade do futebol permitir que os seres humanos transcendam as suas características particulares e se reconheçam como semelhantes que são. A universalidade do futebol legitima o discurso humanitário propagado pela agência em questão uma vez que os seus fundadores, horrorizados pelas atrocidades da Segunda Guerra Mundial, procuram reforçar valores humanitários por meio de seus registros.

A abordagem idílica apresentada pela obra de MAGNUM continua servindo de inspiração para todos nós, embora omita uma série de tensões latentes atualmente, tais quais a reprodução sistemática de um olhar de fotógrafos europeus ocidentais e estadunidenses em sua maioria, além da hegemonia masculina na produção imagética a respeito do esporte.

Referência

Magnum Football, Magnum Soccer.

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Max Filipe Nigro Rocha

É graduado e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realiza pesquisa de doutorado sobre futebol e política pela USP. Editor do site Ludopédio (www.ludopedio.com.br)e pesquisador do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) que integra pesquisadores da USP, Unicamp, Unesp e Unifesp.

Como citar

ROCHA, Max Filipe Nigro. Agência Magnum – o futebol, a fotografia e o sagrado. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 29, 2018.
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