136.1

A cena do boxe: Ali em São Paulo (parte X)

José Paulo Florenzano 1 de outubro de 2020

Na manhã da quinta-feira, 16 de setembro de 1971, o voo da Varig procedente de Nova York aterrissou em São Paulo trazendo a bordo o Atleta de Alá. O “discutido pugilista” norte-americano chegava para a realização de uma luta-exibição programada para o ginásio do Ibirapuera.[1] A passagem pelos trópicos atendia à necessidade de remediar os problemas financeiros agravados por três anos de ausência forçada dos ringues, bem como proporcionar a volta à lida e a recuperação da forma a fim de empreender novamente o caminho para reconquistar o título de campeão mundial. As questões econômicas e profissionais, no entanto, não esgotavam o significado da presença do boxeador na metrópole paulista. Parado na calçada diante do hotel em que se achava hospedado, no centro da cidade, “misturando-se com a multidão na Avenida São João, cumprimentando a todos que lhe estendiam a mão”, Muhammad Ali talvez se sentisse um pouco menos estrangeiro no país do futebol, de maioria católica, de idioma português. Ali na calçada, extático na metrópole, ele afagava a cabeça dos curiosos, distribuía autógrafos aos admiradores, recebia “um buquê de rosas de uma mulher” não identificada, cujo gesto, porém, permitia entrever as múltiplas dimensões de que se revestia a viagem.[2]

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A dimensão religiosa que a envolvia foi logo explicitada em sua chegada, no aeroporto de Congonhas, onde cerca de cem pessoas encontravam-se agrupadas em torno de duas faixas abertas para recepcioná-lo, a primeira com a frase: “Os estudantes muçulmanos do Brasil desejam-lhe boas-vindas”, e a segunda com a inscrição: “Centro Religioso Islâmico: Bem-vindo Muhammad Ali”.[3] Conforme registrava a imprensa, o Atleta de Alá se confessava surpreso diante das palavras de apoio e das saudações entusiastas que lhe eram endereçadas: “Pensava que não teria qualquer recepção e veio tanta [gente] receber-me”.[4] Por trás da calorosa acolhida, no entanto, havia algo mais do que um simples grupo de admiradores. De fato, antes de entrar na limusine preta que o aguardava para levá-lo ao Hotel San Raphael, Muhammad Ali recebeu de Hichan Khaznader, secretário da Associação Muçulmana do Brasil, um cartão de prata com um convite para visitar a mesquita da Avenida do Estado, a maior e mais antiga da cidade, símbolo da presença muçulmana em São Paulo.[5] Na manhã da sexta-feira, aquiescendo aos apelos da comunidade islâmica, o boxeador fez uma rápida visita à Mesquita Brasil, sendo recebido pelos fiéis de braços abertos, sob os aplausos efusivos e com uma carta de apoio que o deixou muito lisonjeado:

Vou levar esta carta para os EUA e publicá-la em vários jornais. Para mostrar a unidade da nossa fé e que eu tenho irmãos no mundo inteiro.[6]

Usando traje a rigor, sempre cercado de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas, o ilustre convidado adentrou a sala de orações do templo sagrado, mas, acompanhado pela imprensa, absteve-se de fazer as preces a Alá por absoluta falta de “recolhimento e concentração”. Com muita dificuldade ele se deslocava pelo interior do recinto, acenando e distribuindo cumprimentos, entabulando conversa e colhendo testemunhos, como o de uma autoridade muçulmana que lhe contava a recente visita realizada ao Líbano, onde, caminhando pelas ruas, “ouviu do povo muitas palavras de elogio a Ali”.[7] A esta altura o povo de Ali já não se limitava aos muçulmanos negros, nos Estados Unidos, mas abarcava e se estendia cada vez mais ao amplo e heterogêneo universo constituído pelo islã, cujos extremos iam da ortodoxia mais rígida ao sincretismo mais elaborado.[8] Embora vinculado a um movimento político religioso que se inseria com muita dificuldade no arco teológico acima delineado, a Nação do Islã, o lutador convertera-se aos olhos da umma muçulmana no veículo de difusão do referido culto. De fato, aos jornalistas que o acompanhavam na visita ao templo sagrado ele assegurava que, da próxima vez, venceria o embate com Joe Frazier e depois de abater o rival na disputa pelo título mundial dos pesos pesados, acrescentava em tom jocoso, “vou levá-lo a uma mesquita e obrigá-lo a converter-se ao islamismo”.[9] Mas aqui se nos impõe a pergunta: qual islamismo?

Mesquita Brasil, localizada no Cambuci, São Paulo/SP. Foto: Divulgação/DINO.

A mesquita visitada por Muhammad Ali em São Paulo estava ligada a mais vetusta das instituições islâmicas implantadas no país, denominada Sociedade Beneficente Muçulmana Palestina, uma organização fundada em 1927 e renomeada, dois anos mais tarde, como Sociedade Beneficente Muçulmana. A mudança de nome indicava a necessidade de contemplar as correntes migratórias provenientes da Síria e do Líbano. A comunidade islâmica no Brasil foi se constituindo desde os finais do século XIX a partir das sucessivas levas de imigrantes árabes. Provenientes de várias regiões do Oriente Médio, pertencentes em sua imensa maioria às vertentes sunitas, eles se fixaram nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba.[10] Em linhas gerais, tais eram os traços de identidade do grupo étnico-religioso que acolhia Muhammad Ali na Avenida do Estado. Visto por esse ângulo o encontro se desvelava, por assim dizer, mais problemático do que se podia imaginar, deixando entrever a existência de certo estranhamento expresso em parte nos campos da doutrina religiosa e da prática ritual, em parte nas esferas da orientação ideológica e da identidade étnico-racial. “Aqui no Brasil, nós, muçulmanos, não temos diferenças com os cristãos, ou com os negros”, avisava o ministro da Mesquita, Abd Chachour-Kenel, enquanto Muhammad Ali lhe respondia: “Eu também não gosto de ter diferenças”.[11] Mas elas existiam e não podiam ser ignoradas. Para o grupo anfitrião, o islã mobilizava os fiéis na oposição ao estado de Israel no Oriente Médio. Para o boxeador visitante, o islã mobilizava os fiéis na luta contra o racismo nos Estados Unidos. O povo de Ali, sob este aspecto, adquiria feições mais nítidas e inconfundíveis, como se depreende das considerações feitas pelo pugilista, em São Paulo, um dia antes da visita à mesquita:

Uma vez quiseram cassar meu título dizendo que era um mau exemplo para a juventude. Sou sim, mas só para aqueles que querem continuar escravizando meu povo. Jesus foi um mau exemplo para os governantes de sua época e Moisés era um mau exemplo, segundo os faraós do Egito, pois queria libertar o seu povo escravo. Eu só quero ajudar a libertar o meu povo.[12]

As alegorias evocadas por Muhammad Ali o aproximavam da história da introdução do islã, no Brasil, ocorrida no início do século XIX, quando, no contexto do tráfico transatlântico de seres humanos, os primeiros contingentes de africanos islamizados, egressos do que hoje corresponde grosso modo ao território da Nigéria, começaram a aportar na Bahia e a povoar de pesadelo as noites dos senhores de engenho e dos proprietários de escravos. Com efeito, tecendo redes de solidariedade, organizando ações de resistência, haurindo forças nos preceitos corânicos, os africanos muçulmanos, conhecidos na Bahia pelo nome de Malês, protagonizaram em janeiro de 1835 uma rebelião de escravos urbanos, a qual, no entanto, teve um desfecho trágico para os que se encontravam engajados no levante: alguns foram mortos nos combates travados nas ruas de Salvador, enquanto outros foram aprisionados nas galés e açoitados em praça pública, ou, ainda, deportados para a África.[13] É difícil precisarmos se Muhammad Ali possuía alguma informação a respeito da experiência baiana do islamismo. Talvez ele a ignorasse por completo, nada soubesse sobre o modo como a religião que professava havia enriquecido a experiência insurrecional dos escravos no país que visitava. Suas palavras, contudo, ainda ecoavam os anseios contidos nas batalhas oitocentistas dos muçulmanos negros, como quando, na entrevista coletiva à imprensa brasileira, concedida na quinta-feira à tarde, no restaurante Di Monaco, discorria acerca da polêmica mudança de nome:

Cassius Marcellus Clay era o nome do fazendeiro branco dono do meu avô, um escravo. Mas eu não serei escravo dos brancos.[14]

Muhammad Ali foi mote para reportagens por toda uma página na Folha de S.Paulo em 17 de setembro de 1971. A forma como foi retratado nas manchetes do jornal é reveladora do incômodo que seu discurso causava na época. Foto: Reprodução/Acervo da Folha de S.Paulo.

Por certo, não era a primeira vez que ele explicava a razão pela qual passara a se chamar Muhammad Ali. Mas enunciada em termos tão contundentes, assim, em um país onde a inexistência do racismo constituía dogma oficial, a declaração soava subversiva.[15] A subversão, contudo, não parava por aí. Interpelado a respeito da recusa em servir ao exército norte-americano, o boxeador negro respondia com um questionamento: “Como poderei lutar pela liberdade de desconhecidos quando meus próprios irmãos negros estão sendo massacrados aqui?”[16] A entrevista coletiva de uma hora e quarenta e cinco minutos se constituía, dessa maneira, na verdadeira luta-exibição de Muhammad Ali em São Paulo, ou, na avaliação da imprensa paulista, na “maior já realizada pelo jornalismo esportivo brasileiro”.[17] Conforme o registro da sucursal do Jornal do Brasil, foi uma entrevista coletiva “bem mais política do que esportiva”.[18]  Embora as perguntas em torno da questão racial “irritassem” o apresentador do canal de televisão responsável pelo concorrido encontro, “agradaram muito” ao próprio pugilista que as aproveitava para expressar sua visão de mundo e assinalar a importância central atribuída à luta contra o preconceito e a discriminação.[19] Nesse sentido, ao ser questionado se o Poder Negro não incorria em uma espécie de racismo às avessas, o pugilista, como numa sequência de ganchos verbais alternados, deixava o entrevistador atônito:

Não. Veja você: Deus é branco, a Última Ceia só teve brancos, os anjos são brancos. Não houve, por exemplo, nenhum chinês na Última Ceia. Até Tarzan, rei das selvas, é branco. Os cowboys cavalgam cavalos brancos. Só o diabo é preto. Até a sede do governo norte-americano é a Casa Branca. Isso deixa no povo a ideia de que ser preto é mau. [20]

Não convém subestimar o impacto destas declarações no contexto histórico dos Anos de Chumbo. Além da repressão política e da censura prévia imposta aos meios de comunicação de massa, havia todo o clima de ufanismo ditado em parte pelo milagre econômico, em parte pelo tricampeonato mundial. O quadro idílico montado pelo regime civil-militar para retratar o país como uma ilha de tranquilidade comportava, ainda, a visão do paraíso racial proporcionada pela suposta inexistência de conflitos entre negros e brancos. As palavras do Atleta de Alá, por certo, perturbavam a paisagem social evocada por esta representação ideológica, envolviam-na em uma série de dúvidas, lançavam sobre ela um conjunto de interrogações que colocavam em risco os pressupostos que a tornavam, aos olhos da maioria, inquestionável e acima de quaisquer suspeitas.


Notas

[1] Cf. “Muhammad Ali chega hoje para lutar amanhã”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 set. 1971.

[2] Cf. “Ele só queria que o povo visse o grande campeão: ele”, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18 set. 1971. A expressão “país do futebol” comparecia na coluna do Jornal do Brasil, “Na grande área”, assinada pelo jornalista interino, 28 de fevereiro de 1964.

[3] Cf. “Muçulmanos do Brasil recebem Ali”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1971.

[4] Cf. “Muçulmanos do Brasil recebem Ali”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1971.

[5] De acordo com o antropólogo Paulo Gabriel Hilu da Rocha, a Mesquita Brasil teve a construção iniciada em 1929 e foi reformada e ampliada em 1956. Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 67, p. 228-250, set./nov. 2005. Religiosidade no Brasil.

[6] Cf. “Ali promete converter Frazier”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 set. 1971.

[7] Cf. “Ali promete converter Frazier”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 set. 1971.

[8] GEERTZ, Clifford. Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

[9] Cf. “Ali promete converter Frazier”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 set. 1971.

[10] Paulo Gabriel Hilu da Rocha, op. cit. e Montenegro, Sílvia Maria. Discursos e contradiscursos: o olhar da mídia sobre o Islã no Brasil. Revista Mana, 2002, V. 8, nº 1: 63-91. Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[11] Cf. “Ele só queria que o povo visse o grande campeão: ele”, Jornal da Tarde, São Paulo, 18 set. 1971. Na entrevista coletiva concedida em São Paulo, Muhammad Ali reiterava a posição doutrinária da Nação do Islã sobre a solução para o problema racial nos Estados Unidos: “O ideal para nós – e é o que estamos reivindicando – seria que tivéssemos no mínimo seis Estados, onde os negros passariam a viver territorialmente separados do resto da população, os brancos”, Jornal da Tarde, caderno especial, setembro de 1971.

[12] Cf. “Ali explica seu novo nome e a sua famosa tagarelice”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1971.

[13] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 451. Conforme esclarece o autor, o termo malê não designava um povo africano em particular, mas todos os africanos que na Bahia tivessem adotado o islã.

[14] Cf. “Muhammad Ali, o profissional”, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1971.

[15] MUNANGA, Kabengele (Org.). Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. São Paulo, Editora Universidade de São Paulo: Estação Ciência, 1996.

[16] Matéria citada na nota anterior.

[17] Cf. “Ali explica seu novo nome e a sua famosa tagarelice”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1971.

[18] Cf. “Clay acha luta dos negros mais importante que boxe”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 set. 1971.

[19] Cf. “Ali explica seu novo nome e a sua famosa tagarelice”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1971.

[20] Cf. “Brincando, ele dá a melhor entrevista”, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1971.


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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A cena do boxe: Ali em São Paulo (parte X). Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 1, 2020.
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