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Amsterdã 1928 – Dois grandes debutantes: uma bebida e um cartola

Paulinho Oliveira 25 de março de 2021
Quiosque Coca-Cola
Quiosque da Coca-Cola instalado nas proximidades do Estádio Olímpico de Antuérpia. O ano de 1928 marca o início da parceria entre a multinacional norte-americana e o Comitê Olímpico Internacional, vigente até os dias de hoje. Foto: Divulgação/Coca-Cola

Na segunda quinzena de julho de 1928, pleno verão holandês, um grande navio aportou em Amsterdã. O S. S. President Roosevelt trazia a poderosa delegação norte-americana, com mais de duas centenas de atletas, que viria a manter a hegemonia iniciada em Estocolmo 1912, terminando pela quarta vez seguida na primeira colocação do quadro final de medalhas. Muitos se faziam presentes pela primeira vez em Jogos Olímpicos, mas nenhum dos atletas viajara à Holanda para ganhar dinheiro, já que imperava o conceito de amadorismo no Movimento Olímpico – segundo o qual atleta que disputasse olimpíada não poderia receber qualquer vantagem financeira por conta do esporte. Havia, porém, debutantes naquele navio com objetivo puramente financeiro em solo holandês. Não eram atletas, dirigentes ou jornalistas. Eram mil garrafas de vidro, nas quais estava uma bebida de cor preta, gaseificada, uma espécie de xarope com um gosto bem diferente daquilo que se bebia antes. A bebida fora criada em 1884 nos Estados Unidos, mais precisamente em Atlanta, por um farmacêutico de nome John Pemberton, veterano confederado da Guerra de Secessão (1861-1865), e seus ingredientes mais importantes eram, além do gás, folhas de coca e grãos de noz-de-cola. Era, a princípio, um remédio, mas, depois que foi aperfeiçoada, no começo do Século XX, virou refrigerante e ganhou o nome de Coca-Cola.

Em 1928, a Coca-Cola começava a ganhar o mundo, após conquistar o mercado norte-americano. A estratégia de Ernest Woodruff e seu filho Robert Woodruff, cuja família havia adquirido a marca por 25 milhões de dólares, era levar o refrigerante o mais longe possível, e a aliança com os Jogos Olímpicos – àquela altura um evento cada vez mais popular – se mostrava ideal para as pretensões mercantis da dupla de investidores. Com a anuência tácita do COI – já que a empresa não chegou a ser mencionada no livro oficial da Olimpíada, publicado posteriormente –, um quiosque de cor predominante vermelha foi instalado no entorno do Estádio Olímpico de Amsterdã, e funcionários com roupas padronizadas nas cores da Coca-Cola perambulavam com engradados contendo seis garrafas cada, enquanto dentro do estádio anúncios do refrigerante se destacavam nos restaurantes. Começava assim, em Amsterdã 1928, a parceria entre a Coca-Cola e os Jogos Olímpicos, que se revelaria mais frutífera a cada edição e permanece até hoje, com a empresa sendo uma das patrocinadoras master do evento.

Além da Coca-Cola, os Jogos de Amsterdã 1928 tiveram outro importante debutante, este um ser humano. Seu nome era Henri de Baillet-Latour, um aristocrata nascido em Bruxelas (Bélgica) cujo pai fora governador de Antuérpia. Baillet-Latour, membro do COI desde 1903, assumira a responsabilidade de comandar a organização dos Jogos de Antuérpia 1920, os quais foram considerados um sucesso, devido ao que se conseguiu mesmo com pouco tempo de preparação e em uma cidade bastante devastada pela ocupação alemã durante a Primeira Guerra Mundial. Como prêmio, Baillet-Latour foi escolhido, em 1925, para substituir Pierre de Coubertin no comando do Comitê Olímpico Internacional, e Amsterdã 1928 seria a primeira Olimpíada sob a presidência do belga.

A Holanda na época de Amsterdã 1928

Dirk van de Geer
Dirk van de Geer, o conservador primeiro-ministro holandês, chefe de governo à época de Amsterdã 1928. Foto: Wikipédia

O dia 5 de julho de 1922 foi histórico para a Holanda. Pela primeira vez, as mulheres poderiam exercer o direito de votarem e serem votadas. O resultado foi que a Casa dos Representantes (a câmara baixa do parlamento) passou a ter sete mulheres. Porém, embora a população feminina já fosse a maioria e a conquista do sufrágio tenha sido importante, os homens continuavam dando as cartas na política do país. A eleição de 1922 consagrou o primeiro-ministro Charles Ruijs de Beerenbrouck, que organizou, a partir de 18 de setembro, seu segundo gabinete, com a predominância de partidos de base religiosa, como RKSP, ARP e CHU. Na eleição seguinte, em 1925, o primeiro-ministro escolhido foi Hendrikus Colijn (ARP), que governou por apenas sete meses, renunciando em 8 de março de 1926 após sucumbir a uma questão parlamentar que envolvia as relações diplomáticas da Holanda com o Vaticano. Em seu lugar, assumiu Dirk van de Geer (CHU), um advogado de pensamento conservador, chefiando o Executivo de um país que sediaria os Jogos Olímpicos pela primeira e única vez em sua história.

Do começo do Século XX até 1928, a população da Holanda aumentara quase a metade – de 5.163.000 habitantes para 7.621.000 no ano dos Jogos de Amsterdã. Já a capital holandesa – que chegara a ser a quarta maior cidade da Europa durante o Século XVIII – crescera de pouco mais de 520 mil habitantes em 1900 para cerca de 750 mil em 1928. O crescimento da população acompanhou o aumento no número de automóveis da cidade, o que motivou uma das inovações daquela Olimpíada – um grande estacionamento ao redor do Estádio Olímpico, com capacidade para até 3,5 mil carros e 2 mil bicicletas. No último dia de Amsterdã 1928, 4,4 mil carros trafegaram nas proximidades do estádio, e 2,2 mil vagas de estacionamento foram preenchidas. Como havia mais carros do que vagas disponíveis, placas azuis colocadas nas ruas da capital holandesa, com um P (de parking, estacionamento em inglês) em destaque, serviram de orientação, especialmente para estrangeiros. Para os que não tinham carro, uma redução das tarifas dos trens em 25% (vinte e cinco por cento) foi assegurada após negociações entre o Comitê Organizador de Amsterdã 1928 e a Nederlandse Spoorwegen, a estatal responsável pelo transporte ferroviário. Além disso, a KLM (Koninklijke Luchtvaart Maatschappij), a companhia aérea holandesa, garantiu o transporte aéreo de atletas e torcedores que podiam dispor de recursos para viajar de avião até a capital nacional. A maioria das delegações, todavia, foi a Amsterdã de navio, e ali ficaram hospedadas durante os Jogos, já que não foi construída vila olímpica como em Paris 1924.

Estádio Olímpico de Amsterdã
O Estádio Olímpico de Amsterdã, visto do alto, durante a parada das nações dos Jogos de 1928. Foto: Reprodução/Stadsarchief Amsterdam.

O Estádio Olímpico de Amsterdã (Olympisch Stadion) foi construído sob uma perspectiva expressionista de arquitetura, em voga na primeira metade do Século XX na Europa. Seu projeto saiu da prancheta do arquiteto Jan Wils, um dos principais expoentes da chamada Escola de Amsterdã. A construção começou em 18 de maio de 1927, próxima de onde ficava o Het Nederlandsch Sportpark, um estádio que existia desde 1914, tinha capacidade para 29 mil pessoas e fora projetado por outro arquiteto representante da Escola de Amsterdã, Harry Elte (que acabaria sendo assassinado anos mais tarde, em um campo de concentração nazista, durante a Segunda Guerra Mundial, por ser judeu). Quando o novo estádio ficou pronto, em 17 de maio de 1928, tinha capacidade para receber até 31,6 mil torcedores, e seu custo não saiu por menos de 2,4 milhões de florins – a maior parte deles de subsídios governamentais, como 100 mil florins da Província da Holanda do Norte, e da Loteria de Amsterdã, cujos fundos levantaram 500 mil florins. Chamava a atenção sua fachada e sua estrutura com visíveis tijolos que aumentavam a sua beleza externa.

À frente da entrada principal, destacavam-se uma estátua, em homenagem ao barão Frederick Willem Van Tyull van Serooskerken (organizador da Olimpíada, morto em fevereiro de 1924), e uma grande torre, em cujo cume estava a pira olímpica, tradição que começava, a partir daquele instante, a ser elemento obrigatório de qualquer edição de Jogos Olímpicos. A primeira pira olímpica da história moderna, porém, foi acionada sem pompa, nem circunstância, por um funcionário anônimo da companhia energética de Amsterdã. Ao redor do Estádio Olímpico, além do quiosque da Coca-Cola e dos anúncios do refrigerante norte-americano em destaque na praça de alimentação interna, um grande restaurante se destacava, sob o patrocínio da cervejaria Heineken, cuja sede ficava justamente na capital holandesa. Diferentemente da Coca-Cola, que sequer mereceu destaque no livro oficial da Olimpíada, há menção especial à Heineken e seu restaurante com capacidade para 500 pessoas, ocupando uma área de 1,2 mil metros quadrados. Durante os Jogos de Amsterdã 1928, foram vendidas 50 mil garrafas e cerca de 6 mil galões de cerveja Heineken, além de 66 mil garrafas de limonada, 68 mil sanduíches e mais de 100 mil guloseimas como chocolates e chicletes. Porém, o investimento de 250 mil florins no restaurante da Heineken não chegou a ser totalmente coberto.

A oposição da rainha, a volta da Alemanha e os países participantes de Amsterdã 1928

Guilhermina rainha da Holanda
Guilhermina, rainha da Holanda à época de Amsterdã 1928. Avessa aos Jogos Olímpicos, arranjou uma desculpa para não comparecer à cerimônia de abertura. Esteve, porém, no encerramento. Foto: Wikipédia

A rainha Guilhermina foi escolhida pelo Comitê Organizador de Amsterdã 1928 patronesse daquela Olimpíada, mas não estava presente ao Estádio Olímpico no sábado, 28 de julho, para abrir oficialmente o evento. Nesse dia, Guilhermina se encontrava de férias na Noruega e não quis interrompê-las, justificando que não teria tomado conhecimento da data da cerimônia de abertura dos Jogos – a qual, todavia, era de conhecimento público desde janeiro de 1927. Algumas fontes relatam, porém, que a verdadeira justificativa para que a rainha não se fizesse presente à abertura oficial de Amsterdã 1928 era a aversão que nutria pelos Jogos Olímpicos. Protestante calvinista convicta, Guilhermina tinha a opinião de que a Olimpíada era um evento de natureza pagã e por isso não merecia nenhum incentivo do governo holandês – de fato, o livro oficial dos Jogos não menciona qualquer apoio financeiro direto da monarquia neerlandesa.

O certo é que, pela terceira vez na história, uma edição de Jogos Olímpicos não era declarada aberta pelo chefe de Estado do país-sede (assim como em Paris 1900 e Saint Louis 1904). Coube ao marido da rainha Guilhermina, o príncipe-consorte Henrique, tal incumbência, perante um Estádio Olímpico lotado e 2.883 atletas de 46 países participantes – um novo recorde, que poderia ser ainda maior se todas as 59 nações convidadas pela organização houvessem comparecido (o Brasil foi um dos 13 países que receberam convite, mas não enviaram delegação a Amsterdã). Todos os continentes foram representados: a América, com 9 delegações (incluindo o estreante Panamá); a África, com 3 países (África do Sul, Egito e a estreante Rodésia, todos colônias ou subordinados de alguma forma à Grã-Bretanha); outras 3 nações vieram da Ásia (Índia – ainda colônia britânica –, Japão e Filipinas); a Oceania mandou os de sempre (Austrália e Nova Zelândia); e a Europa se fez representar por mais da metade das nações presentes, com 29 delegações (incluindo a estreante Malta, ainda colônia britânica).

Amsterdã 1928 seria o palco da maior participação feminina até então em Jogos Olímpicos, com 277 mulheres (9,61% do total). Colaborou decisivamente com o crescimento a introdução das provas femininas de atletismo (100 e 800 metros, revezamento 4×100 metros, salto em altura e arremesso de disco) e da competição por equipes na ginástica. Porém, o COI acabaria por vetar, para as edições seguintes, a participação de mulheres em provas de longa distância no atletismo após haver sido relatado que, na disputa dos 800 metros, a maioria das competidoras finalizavam exaustas a competição – o que é contraditado pela pesquisadora norte-americana Lynne Emery, que constatou jamais haver ocorrido o desgaste prematuro das atletas na prova em questão. As mulheres só voltariam a competir os 800 metros nos Jogos de Roma 1960.

Dentre as delegações que foram a Amsterdã 1928, a que chamou maior atenção na cerimônia de abertura foi a Alemanha, que retornava aos Jogos Olímpicos pela primeira vez desde Estocolmo 1912 – após ser boicotada pelo COI em Antuérpia 1920 e Paris 1924 por haver figurado no lado derrotado da Primeira Guerra Mundial. Os alemães enviaram uma delegação de 296 atletas (sendo 35 mulheres) e terminaram a Olimpíada na excelente 2ª colocação, com 31 medalhas conquistadas, sendo 10 de ouro (incluindo Lina Radke, a campeã da polêmica prova dos 800 metros do atletismo). O desempenho alemão ajudou a colocar a Europa, mais uma vez, como o continente dominante entre os dez primeiros colocados no quadro de medalhas. Apenas os Estados Unidos – líderes absolutos com 56 no total e 22 de ouro (incluindo duas de Johnny Weismuller nos 100 metros nado livre e no revezamento 4×200 metros nado livre, totalizando 5 ouros olímpicos desde Paris 1924) – e o Canadá – 10º lugar, com 15 medalhas no total, sendo 4 douradas (inclusive as duas de Percy Williams nos 100 e 200 metros rasos) – foram os intrusos no clube europeu.

Muito embora a cerimônia oficial de abertura tenha acontecido em 28 de julho, os Jogos de Amsterdã 1928 começaram, de fato, em 17 de maio, com as primeiras partidas do torneio de futebol. Duraram até 12 de agosto, totalizando quase 3 meses de disputas, e, na cerimônia de encerramento no Estádio Olímpico, a rainha Guilhermina resolveu se fazer presente. A Olimpíada de Amsterdã foi considerada um sucesso de organização e público, como também de austeridade financeira. O evento custou, na cotação do florim à época, quase 1,2 milhão de dólares, não rendeu lucro, e o prejuízo de 18 mil dólares foi considerado insignificante.

O texto é parte do Capítulo 8 do livro JOGOS POLÍTICOS DA ERA MODERNA, disponível para download neste link.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Paulinho Oliveira

Jornalista (MTb 01661-CE), formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2004.Escritor, com duas obras publicadas: GUERREIROS DE SANTA MARIA (Fortaleza, Premius Editorial, 2013, ISBN 9788579243028) e JOGOS POLÍTICOS DA ERA MODERNA (Fortaleza, publicação independente, 2020, ASIN B086DKCYBJ).

Como citar

OLIVEIRA, Paulinho. Amsterdã 1928 – Dois grandes debutantes: uma bebida e um cartola. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 51, 2021.
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