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Arco-íris palmeirense: o dia em que uma bandeira LGBTQIA+ encheu a arquibancada

Mariana Mandelli 9 de novembro de 2020

A série “Práticas torcedoras em territórios palmeirenses” é baseada na dissertação de mestrado de Mariana Mandelli, intitulada “Allianz Parque e Rua Palestra Itália: práticas torcedoras em uma arena multiuso” (Antropologia-USP, 2018). A pesquisa de campo foi realizada entre 2015 e 2017 nos arredores do Allianz Parque com o objetivo de investigar os efeitos da modernização do estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras entre a torcida. Confira a série de textos aqui.

Foto: Mariana Mandelli

A vitória do Palmeiras sobre o Red Bull Bragantino por 1×0, no jogo de volta das oitavas de final da Copa do Brasil 2020, teria sido mais uma partida morna, daquelas jogadas apenas para o gasto[1], se não fosse por um detalhe colorido nas arquibancadas vazias do Allianz Parque. Uma bandeira com as cores do arco-íris envolvendo o escudo do clube, contendo o desenho de um porco e a frase “Futebol é para todos”, foi colocada em meio a outras que representam os palmeirenses, organizados ou não, nesse momento de afastamento dos estádios[2].

A bandeira é de um coletivo denominado Porcoíris, um grupo torcedores que nasceu há pouco mais de um ano para defender a representatividade LGBTQIA+[3] entre os palmeirenses[4]. Sua atuação principal é por meio da disseminação de informações nas plataformas digitais, acolhendo e discutindo temas importantes para o grupo, sempre relativos ao Palmeiras.

Por isso, a tentativa de exibir a bandeira do coletivo no Allianz Parque pode ser considerada como o primeiro grande ato da Porcoíris. O único registro que se tem da ação durante a partida pode parecer tímido para muitos, com a bandeira aparentemente escondida entre mastros e outros panos, mas não é.

Foto: Reprodução / Twitter

Arquibancadas são terrenos de masculinidades. Nós, mulheres[5], ainda somos poucas mas, mesmo enfrentando assédios de todos os tipos, aos poucos estamos abrindo espaço numa cultura torcedora formatada por e para homens. Contudo, para a comunidade LGBTQIA+, esse caminho parece mal ter começado a ser percorrido, mesmo quando lembramos que, nos anos 70, já tínhamos a presença de um grupo como a Coligay entre os gremistas, como mostrou a excelente tese de doutorado[6] da pesquisadora Luiza Aguiar dos Anjos, também colunista do Ludopédio.

Sobre a Coligay, diz ela em seu artigo de estreia[7] neste site:

Talvez seu maior mérito seja desarticular a expectativa de desencaixe e inadequação de homens homossexuais ao espaço futebolístico, evidenciando experiências no torcer que escapam ao referente hegemônico masculino, viril, agressivo. Por meio dessa torcida vislumbram-se possibilidades de apropriação desse esporte mais plurais, heterogêneas e mesmo inusitadas. Sua trajetória apresenta ainda riquezas de diferentes ordens, para além dessa simples constatação.

Mesmo com uma história riquíssima como a da torcida gremista, os desafios são imensuráveis. Dizer que o futebol é um ambiente homofóbico não é só uma dedução baseada em argumentos teóricos sobre gênero e sexualidade, mas sim algo experimentado frequentemente na prática: qualquer pessoa que acompanhe minimamente o esporte já ouviu um goleiro ser chamado de “bicha” ao bater o tiro de meta e/ou tem conhecimento de pelo menos um rival que é denominado por termos que satirizam e tratam a orientação sexual como ofensa. É o caso de “bambi”, usado pejorativamente para se referir à torcida são-paulina e “maria” para falar dos torcedores do Cruzeiro.

Em minha etnografia sobre o Allianz Parque, presenciei incontáveis manifestações homofóbicas. Apesar de não ser meu tema de mestrado, tomei nota de diversos episódios nos meus cadernos de campo. Entre eles, vale a pena destacar dois, bastante semelhantes entre si: em duas partidas do Palmeiras, uma em 2015 e outra em 2017, observei torcedores organizados pedirem que outros palmeirenses retirassem o brinco da orelha se quisessem ver o jogo no setor onde estavam, já que esse tipo de adereço “é coisa de bichinha”. Em ambas as situações, os rapazes não protestaram, apenas tiraram os brincos e ali permaneceram.

Os exemplos de situações como essa são, infelizmente, comuns. Afinal, estamos falando do esporte onde, há poucos anos, torcedores acharam aceitável atirar bombas para protestar contra a vinda de um jogador[8] visto como homossexual, como se o fato desse atleta vestir a camisa do clube desonrasse e ofendesse o que eles sentem pela instituição.

É por motivos como esses que uma bandeira colorida, mesmo numa arena vazia, é muito mais do que um gesto simbólico de representatividade. Movimentos como a Porcoíris são atos de resistência de quem não quer apenas se sentir representado, mas quer que outros também o sintam. Conversando com um dos fundadores do grupo, a quem vou chamar de Murilo[9], ele disse:

[A Porcoíris nasceu para] Mostrar para todos que o LGBT tem direito de gostar, acompanhar futebol e frequentar estádios como todo mundo. Para mostrar para heterossexuais e homossexuais que o futebol é uma parte da sociedade que não tem dono. É de todos que queiram estar nesse núcleo.

Segundo Murilo, apesar da pauta LGBTQIA+ ser a principal luta do grupo, existem outras bandeiras – físicas e morais – a serem empenhadas por uma torcida palmeirense mais inclusiva:

A Porcoíris entende que não dá para se fechar no núcleo LGBT num país onde o machismo, o racismo e o elitismo ganham força na sociedade e, principalmente, na torcida do Palmeiras. A gente se sente no dever de lutar contra tudo isso, incentivando o futebol feminino, a presença feminina na torcida, impondo-se contra o racismo, mostrando que nossa torcida tem negros, pardos, amarelos e índios, sem esquecer do elitismo promovido pela diretoria desde a Gestão Nobre (e que está caminhando a passos largos na Gestão Galliote e numa possível Gestão Leila Pereira, afastando torcedores pobres do estádio com o cerco e os ingressos abusivos).

Como não há público nos jogos, a repercussão da ação da Porcoíris aconteceu nas redes sociais, especialmente depois da publicação de duas reportagens na grande imprensa esportiva. Apesar dos comentários homofóbicos nas postagens, Murilo afirma que a repercussão foi muito mais positiva do que o grupo esperava:

Eu vi muito ataque no Facebook sobre a bandeira, mas teve tanta coisa boa também. Tudo isso parece um sonho, sabe? Por mais que tenha ataque, crítica, ódio… agente está com muita força ao nosso lado. Foi para mostrar que a gente não é meia-dúzia. Uma parte grande dos comentários são positivos. Você as pessoas falando que isso é necessário, que é histórico, que futebol é lugar de todo mundo. Isso dá munição para a gente cobrar mais atitudes do Palmeiras para além de posts bonitinhos. Isso dá uma moral para a gente.

Imagem: Reprodução

Não cabe aqui dar visibilidade para postagens de ódio, mas entre os comentários que repudiavam a bandeira e tentavam criticá-la sem usar um vocabulário de baixo calão, é curioso notar a frequência de argumentos como “futebol não é lugar de lacrar” ou “nunca vi um gay ser proibido de entrar no estádio”. Os autores são, em sua maioria, homens heterossexuais, justamente aqueles que estão acostumados a ocupar o espaço que agora é reivindicado por coletivos como a Porcoíris – o que, sabemos, incomoda. E incomoda bastante. A ideia de que não se pode misturar futebol com política e pautas sociais parte sempre dos grupos habituados a terem o domínio simbólico dessas arenas – físicas e morais –, onde todas as suas demandas sempre foram criadas e atendidas. Perder o controle desse processo e observar a entrada de feminilidades e da diversidade de gênero e de orientação sexual nele justifica grande parte dos posicionamentos que acham uma bandeira gay “desnecessária”.

A atitude da Porcoíris no jogo contra o Red Bull Bragantino provavelmente foi o ato mais explícito de um grupo que busca inclusão pela causa LGBTQIA+ entre a torcida do Palmeiras –torcida esta tida como conservadora por muitos. Tal análise carece de argumentos qualitativos para além do achismo proporcionado por timelines, mas é certo dizer que suplantar as cadeiras da arena palmeirense com mais cores para além do verde e do branco foi, sim, uma disrupção. Nunca um estádio vazio de gente esteve tão cheio de significado.

 

Notas

[1] O jogo de volta foi realizado no dia 5 de novembro. O Palmeiras venceu o jogo de ida por 3×1, que aconteceu no dia 29 de outubro.

[2] Por conta da pandemia de Covid-19, os jogos no Brasil seguem sem público. Escrevi sobre isso em uma coluna anterior, em que descrevi a mobilização dos torcedores da Mancha Verde para preencher as arquibancadas com o patrimônio da torcida organizada. Ler em Uma arena vazia: Mancha Verde e os deslocamentos simbólicos no Allianz Parque, Ludopédio, 28/09/2020. Acesso em 07/11/2020.

[3] Sigla mais atual para designar a diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero: lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, não binários/as, questionando, queer, intersexuais, assexuais e outros.

[4] Esse não é o único grupo palmeirense com pautas de viés progressista. Existem outros movimentos com bandeiras do tipo – fenômeno atual e comum entre diversas torcidas do País.

[5] Escrevi sobre o machismo no futebol nesta mesma coluna. Ler em O futebol odeia as mulheres: notas sobre o machismo e a pesquisa de campo, 19 de outubro de 2020. Acesso em 07/11/2020.

[6] Ler em ANJOS, Luiza Aguiar dos. De “São bichas, mas são nossas” à “Diversidade da alegria”: uma história da torcida Coligay. 2018. 388f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Faculdade de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

[7] Ler em Uma série em homenagem aos 43 anos do surgimento da Coligay. Ludopédio, 10 de abril de 2020. Acesso em 07/11/2020. 

[8] Refiro-me ao lamentável episódio de Richarlyson no Guarani. Ler em Com bombas no Brinco, Richarlyson se apresenta e diz: “Vão me aplaudir depois”. GE, 8 de maio de 2017. Acesso em 07/11/2020.

[9] Os nomes de todos os meus interlocutores são sempre trocados com a finalidade de proteger a identidade dos mesmos.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mariana Mandelli

Doutoranda em Antropologia Social na USP, com mestrado na mesma área e instituição, com pesquisa que investigou o processo de "arenização" do Allianz Parque. É graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências Sociais pela USP.

Como citar

MANDELLI, Mariana. Arco-íris palmeirense: o dia em que uma bandeira LGBTQIA+ encheu a arquibancada. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 17, 2020.
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