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As diversas faces de Sócrates – O doutor-Governador – Parte II

Max Filipe Nigro Rocha 25 de abril de 2017

Conforme discutido do artigo anterior, em paralelo à construção de Sócrates enquanto gênio-pensador, Placar arquitetava o plano de elevá-lo à posição de agente político. Novamente, o posicionamento do jogador serviria de fundação necessária para que a revista pudesse somar à imagem do Doutor mais uma faceta simbólica. Embora houvesse discordâncias entre ambas as posições – caso das situações em que o semanário exigia uma participação política mais efetiva do boleiro em questão – por diversas circunstâncias as matérias publicadas ofereciam ao craque a possibilidade de expor a sua leitura de mundo.

Ao sair em defesa da modernização das relações trabalhistas existentes no clube do Parque São Jorge, Sócrates aproximava-se da visão placariana que defendia a coexistência pacífica entre as práticas empresarial e democrática que deveriam reger uma equipe de futebol. Em depoimento que tinha como foco estabelecer um diálogo com a fiel torcida, o craque alvinegro – porta-voz da nova hegemonia – expunha as diretrizes a serem perseguidas pelo Corinthians:

Em outras palavras, o que se necessita no futebol do Corinthians – e não só no Corinthians, nem unicamente no futebol – é estreitar a distância que separa o patrão do empregado. No nosso caso específico, o empregado, que é o jogador […] Sinceramente, eu respeito e admiro as empresas com capacidade para levar seus funcionários a dizerem em público: “Nós, da empresa tal…” Como eu gostaria que o time todo falasse “Nós, do Corinthians…”. Ou: “Nós, corintianos…”. […] Quem irá recuperar o Corinthians será o Corinthians todo, o Corinthians unido, corrente pra frente, time-torcida, diretoria-jogadores, patrões-empregados, no clima de diálogo e entendimento que todos sonhamos. (PLACAR, nº 561, 13/fevereiro/1981, p.21) (grifo nosso).

Portanto, ao reunir as qualidades de ídolo e gênio, a figura socrática era o modelo ideal de jogador a ser transformado em uma referência política capaz de influenciar e promover a aliança entre as concepções de família e de empresa, entre a emoção e a razão, e desse modo garantir que a harmonia voltasse a reinar nos gramados nacionais.

Dessa forma, a reportagem veiculada em 15 de outubro de 1982 na revista Placar sob a manchete “Sócrates: Eu, governador” pode ser vista como mais um exercício de projeção da imagem do ídolo corintiano para além do universo restrito do futebol. Apresentando diversos tipos de linguagem que se inter-relacionam, a matéria indicava as possíveis construções simbólicas propostas pela publicação ao apresentar as conexões entre política e futebol – o esporte mais popular no Brasil. A capa da edição, a manchete veiculada, a coluna de opinião escrita por Juca Kfouri, assim como fotografias internas, além é claro, do texto escrito, compunham o leque de instrumentos utilizados na construção da imagem do Doutor alvinegro, agora agente político.

Logo de início, a abordagem da reportagem nos leva a constatar o questionamento de dois estereótipos presentes no universo futebolístico – o futebol como instrumento de alienação social e o jogador visto como ser incapaz de avaliar sua condição de profissional e cidadão no interior da estrutura futebolística.

 

PLACAR 647 Capa
Reprodução: Revista PLACAR, nº 647, 15/outubro/1982.

Na capa em questão, Sócrates é apresentado como suposto candidato ao governo do Estado de São Paulo e para isso expunha um plano de governo a ser explicado em matéria interna. Realizada em plano americano, a foto traz o jogador de barba e cabelos compridos, vestido com terno e camisa apenas, mão direita ao peito, reproduzindo a postura típica da cerimônia de execução do hino nacional em primeiro plano. Ao fundo, sugerindo proximidade do poder, a algumas poucas dezenas de metros podemos observar a porta principal do Palácio dos Bandeirantes como cenário. O recurso da fotografia é significativo na medida em que a mesma é lida muito mais rapidamente do que o texto escrito e permite que o leitor entre em contato imediato com o discurso sustentado pela revista.

A sugestão de patriotismo destacado pela imagem por meio da simulação da cerimônia do hino, assim como o enquadramento fotográfico que destaca a figura de Sócrates em primeiro plano com o Palácio dos Bandeirantes ao fundo, reposiciona o jogador ao desafiar o estereótipo de alienado político constantemente atribuído aos futebolistas, pois o eleva à categoria de cidadão que, além de reconhecer o seu direito democrático de participar da vida política, postula um cargo de comando estatal.

A dupla significação da pose do jogador nos sugere algumas iniciativas de comunicação. Em primeiro lugar, há uma associação entre futebol e vida política na medida em que o fato de se cantar o hino nacional é recorrente tanto em cerimônias cívicas quanto em eventos esportivos. A própria metáfora do campo de futebol pode ser observada na presença do gramado que ocupa quase dois terços da imagem da capa. Além disso, Sócrates reproduz uma postura típica de jogadores ao entrar em campo com o uniforme da seleção nacional. Tal fato insinua, por um lado, a possibilidade de transferência da paixão futebolística para a vida pública, rompendo com o paradigma do futebol enquanto instrumento de alienação política. Por outro, a suposta ousadia de Sócrates ao simular a assumir a posse do cargo público é perturbadora na medida em que anuncia o vazio do poder e a consequente necessidade de ocupá-lo.

No mais, a barba e os cabelos compridos de Sócrates permitem associá-lo aos ícones clássicos de rebeldia e contracultura e, portanto, a veiculação de sua imagem na capa da revista não ocorria por acaso. A figura de um jogador que participava de uma experiência inovadora nos meios futebolísticos – a Democracia Corintiana – reivindicando o direito ao voto, o questionamento da obrigatoriedade das concentrações antes dos jogos e do treinamento esportivo tem por objetivo ser, no mínimo, incômoda e geradora de questionamentos futuros.

A referência à democracia não se esgota nesses aspectos acima. Sob a manchete presente na capa “Exclusivo: Sócrates: ‘Eu, governador’”, que tem como propósito resumir a essência da notícia para o leitor potencial, é possível traçarmos uma associação entre a condição de Sócrates como capitão do time e um dos líderes – juntamente com Casagrande e Wladimir – do movimento democrático implantado no Corinthians e a sua suposta intenção de se candidatar a governador do Estado de São Paulo. Tal conexão reposiciona o futebol como campo frutífero de experiências para a implantação de práticas democráticas. Além disso, o próprio uso do pronome em primeira pessoa – eu – indica uma iniciativa por parte da revista de incentivar a reflexão e promover o questionamento. Uma vez exposta na banca de jornal, tal manchete sugere ao leitor a possibilidade interpretativa dele próprio se considerar um candidato a ocupar o cargo público.

Tal interligação entre dado e criado pode ser observada na imagem, mas também se manifesta na leitura que Juca Kfouri faz da iniciativa dos jogadores em elaborar um programa de governo. Na seção “Opinião Placar” – sua coluna semanal na revista – o autor sinaliza a orientação tomada pela revista já no título do texto – “Quem disse que o jogador não pensa bem?” e oferece um leque de leituras possíveis para nossa pesquisa. Em primeiro lugar, Juca busca reposicionar o papel do jogador na sociedade diante do fato novo; jogadores assumindo um posicionamento político claro. Tal fato entra em confronto com a suposta ignorância dos jogadores de futebol, reforçada sistematicamente pelos discursos do poder (Florenzano, Afonsinho & Edmundo: A rebeldia no futebol brasileiro, 1998). Em paralelo a isso, justamente pelo fato de o jogador de futebol representar a escala mais baixa de conscientização política de acordo com o senso comum vigente, o convite à reflexão parece ser estendido a todo o público leitor uma vez que até o futebolista é capaz de fazê-lo. Além disso, a associação proposta pelo título sugere que o ato de pensar deva levar o indivíduo a assumir uma postura questionadora, assim como a um posicionamento político. Em outras palavras, é uma iniciativa que pressupõe a vinculação entre teoria e prática e o ressurgimento do debate político:

O resultado [do convite da revista feito aos jogadores para que eles elaborassem suas propostas de governo] é animador. Demonstra claramente o bom nível do futebolista brasileiro e sua generosidade. Se o atleticano Reinaldo se mostra muito preocupado com a qualidade de vida do povo, e pouco democrático, todos os outros craques parecem saber dosar uma e outra coisa. E pensar que até bem pouco tempo não se tirava uma declaração política dos ídolos do esporte nacional. (PLACAR, nº 647, 15/outubro/1982, p. 03) (grifo nosso).

Placar 647 p.3
Reprodução: Revista PLACAR, nº 647, 15/outubro/1982, p.3

Em matéria interna é possível identificar o mesmo princípio proposto pela capa, na qual a manchete “Eu, governador” deixa em aberto possibilidades interpretativas que vão desde a candidatura do jogador do Corinthians até a anunciação do vazio no poder. Sob o título “Se eu fosse governador…”, a diagramação da reportagem visa destacar a diversidade de propostas políticas e a liberdade de pensamento por meio da presença das reticências, que eram preenchidas tanto no que se refere ao conteúdo político quanto no nível simbólico pelas caixas de texto espalhadas pela matéria que indicavam a presença das diversas vozes e propostas políticas sustentadas pelos jogadores. Importante ressaltar também a repetição do pronome eu que reforça a sugestão presente na capa e convida o próprio leitor a ocupar o cargo de governador e expressar o seu posicionamento político.

A apropriação da figura de Sócrates por Placar é ainda mais significativa. O jogador reunia uma série de atributos já apresentados que foram apropriados pelo discurso da revista e que se fazia presente mais uma vez. A matéria interna do exemplar de Placar em questão poderia ser resumida de forma superficial como uma compilação de fotografias de Sócrates em frente ao Palácio dos Bandeirantes acompanhada da publicação, na íntegra, de seu plano de governo. Porém, o conjunto de significados projetados pela reportagem nos leva além.

No subtítulo da reportagem, o ídolo alvinegro é apresentado da seguinte forma: “Diante do Palácio dos Bandeirantes, o craque Sócrates – corintiano, médico, e acima de tudo cidadão – dá a sua contribuição à campanha eleitoral”. (PLACAR, nº 647, 15/outubro/1982, p.18). Sua lista de seus atributos como a sua condição de exímio jogador e selecionável – pois é apresentado como craque; de integrante das massas – uma vez que é apresentado como torcedor corintiano ao invés de jogador do Corinthians; possuidor de diploma universitário – indicando a permanência do bacharelismo em nossa sociedade presente inclusive no apelido de Doutor dado ao jogador; e por fim, de cidadão o qualificavam para a posição pretendida.

Placar 647 p.18-19
Reprodução: Revista PLACAR, nº 647, 15/outubro/1982, p.18-19.

A imagem política do atleta anunciada nas páginas da revista resgatava todas as características forjadas pelo discurso placariano anteriormente. O médico, o gênio dentro e fora de campo e o corintiano encontravam residência no personagem do governador do Estado de São Paulo. Portanto, mais do que por mediação do texto escrito, cremos que o processo efetivo de construção da figura de Sócrates ocorre no campo fotográfico. Retratado em quatro fotos de tamanhos variados, contando capa e matéria interna, a utilização do recurso se deve ao fato de que a fotografia é lida mais rapidamente do que texto e por isso garante acesso quase imediato ao discurso do veículo de comunicação.

Na primeira foto da reportagem, em página inteira, Sócrates aparece de corpo inteiro com os braços abertos, vestindo terno, camisa e jeans – algo entre o formal e o informal. Retratado de baixo para cima com uma lente grande angular, a imagem é distorcida de forma que a figura do jogador seja alongada e com isso pareça maior do que o Palácio dos Bandeirantes. O enquadramento da foto também inclui uma grande porção de gramado em frente à sede de governo estadual, fator que pode ser considerado aspecto constitutivo da segunda realidade enquanto portadora do discurso imagético. Nessa perspectiva, a grande área verde retratada adquire semelhança com um grande campo de futebol. Com isso temos a sugestão de um jogador–cidadão–político no gramado do poder, que é reforçada pela pose de Sócrates ao simular o gestual corporal de políticos durante discursos para as massas – nesse caso imaginárias. O uso de caixa de texto com a frase atribuída ao jogador reforçava essa hipótese interpretativa: “Democracia é um direito que devemos exigir”.

No mais, a diagramação da reportagem contribui para a construção simbólica apresentada, pois pela disposição do texto escrito, da caixa de texto e da fotografia, é essa última que é apresentada como suporte dos dois itens anteriores. Todo o conteúdo escrito é inserido nos setores que não possuem informação relevante e a ambientação da cena construída de Sócrates frente ao Palácio dos Bandeirantes é o elemento de destaque. A inserção da linguagem fotográfica na cobertura jornalística reposiciona a hierarquia usual presente nos meios de comunicação. Ao invés da fotografia funcionar como registro objetivo do que é lido no texto, garantindo-lhe credibilidade, é o texto escrito que se submete à construção proposta pelo discurso fotográfico, traduzindo apenas em parte os conteúdos transmitidos pela sequência de fotos.

Seguindo nessa linha, na qual o texto escrito não tem a primazia sobre outros tipos de linguagem, temos por fim a proposta de Sócrates como objeto. Introduzido por meio da utilização de aspas gigantescas, o plano de governo do jogador foi publicado na íntegra. Tal iniciativa, a nosso ver, pode ser vista como uma sugestão de Placar que a construção do discurso do jogador não foi mediada pelo semanário.

O enaltecimento do espírito republicano e a denúncia da exclusão social e política de grande parcela da população continuava presente ao decorrer de todo o texto. O Estado, na concepção de Sócrates, era a ferramenta básica de reestruturação da realidade social e por isso a insistência na proposta de reapropriação pública do aparelho governamental durante o período de abertura política. Por último, é possível constatar que seu discurso encontrava-se em sintonia com as demandas sociais da época, assim como com as reivindicações de liberdade política:

É fundamental também, dar ao trabalhador condições de segurança, bem-estar e transporte. Para isso, o trabalhador deve participar ativamente das decisões que o afetam, e o governo não deve, em nenhuma hipótese, se intrometer nas entidades sindicais. (PLACAR, nº 647, 15/outubro/1982, p.18) (grifo nosso).

Se as sugestões do Doutor nos parecem pouco propositivas já que não previam uma alteração profunda dos acordos sociais pré-estabelecidos, aos olhos de Placar, Sócrates era a figura ideal. Representante da classe média, instruído, defensor da conciliação entre o futebol-empresa e o futebol-arte, em constante diálogo com os tecnocratas modernos, associado à proposta eleitoral reformista capitaneada pelo PMDB no início da década de 80, ele era o modelo do novo jogador de futebol que seria o porta-voz dos princípios da reforma modernizadora defendida pela revista, que titubeava por diversas vezes diante de uma iniciativa de transformação mais radical do universo futebolístico.

[Continua…]

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Max Filipe Nigro Rocha

É graduado e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realiza pesquisa de doutorado sobre futebol e política pela USP. Editor do site Ludopédio (www.ludopedio.com.br)e pesquisador do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) que integra pesquisadores da USP, Unicamp, Unesp e Unifesp.

Como citar

ROCHA, Max Filipe Nigro. As diversas faces de Sócrates – O doutor-Governador – Parte II. Ludopédio, São Paulo, v. 94, n. 29, 2017.
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