Aquela quinta-feira, como todas as demais deste semestre, prometia ser intensa. Logo de manhã a reunião era na escola para conversar com o professor. Nenhuma questão com o meu filho, apenas uma reunião de rotina do contexto escolar. Meu filho está no primeiro ano e quando disse linhas acima que a conversa seria com o professor não fiz o uso recorrente da hegemonia masculina na nossa escrita. Nesta escola, no primeiro ano, há um professor e não uma professora. Este fato por si só já subverte uma lógica que, em um olhar menos atento, pode até naturalizar a presença das mulheres neste espaço.

Nesta reunião foi falado do interesse das crianças, especialmente, dos meninos em jogar futebol. O professor disse que achava bacana o interesse e organização dos meninos para a prática do futebol, mas ressaltou que os estimulava a experimentar a bola sob outras perspectivas na intenção de terem outras vivências para além do futebol.

O interessante desta conversa foi identificar na fala do professor os locais de resistência para algumas questões importantes e que não podem ser deixadas de lado. A primeira delas dizia a respeito da resistência em experimentar outras possibilidades corporais diante do controle da bola. Aqui também é preciso ponderar uma questão. O interesse pelo futebol tanto do meu filho como em boa parte dos seus amigos foi despertada com a Copa do Mundo de 2018 quando grande parte de sua sala colecionou o álbum da Copa. A segunda resistência dizia respeito a presença das meninas neste futebol. Conforme relatou o professor esta resistência não vinha de todos os meninos. Estava centrada, especialmente, nos meninos que frequentam as escolinhas de futebol.

Não quero correr o risco da generalização e apontar que todos os meninos que frequentam tais espaços terão a mesma atitude diante desta situação. Porém, não temos como negar que este espaço – as escolinhas de futebol – em grande parte delas funcionam como um local reservado aos meninos. São eles que serão socializados, que estarão semanalmente para aprender a jogar futebol com e contra outros meninos. E tal como o futebol que assistem na televisão este futebol visto na telinha é dos homens e não das mulheres.

Veja como são vários os pontos que moldam o olhar das crianças desde cedo. Na escola muitos meninos não querem as meninas no jogo de futebol, na aula da escolinha não jogam com meninas e na televisão (provavelmente) nem sabem que há mulheres que jogam futebol em campeonatos. Há uma intensa rede estruturada que impede este acesso. Porém, há locais de resistência e de reprodução. Nesta história a resistência está com o professor da escola que propõe outras possibilidades do uso do corpo. A reprodução de certos modelos socialmente mais aceitos se dá no contexto da escolinha, afinal, conforme diz o professor é de lá que aparece o discurso que estabelece o limite para a presença das meninas.

Neste jogo entre a resistência e a reprodução há espaço para tensões, negociações, possibilidades e até mesmo frustações. O fato é que precisamos estar atentos quando esta tensão se manifesta para poder intervir e propor novos olhares.

E foi exatamente a uma destas oportunidades que eu perdi no mesmo dia. Conforme ressaltei a minha rotina da quinta-feira que se iniciou com a reunião terminaria com aulas para duas turmas na faculdade. Uma no período vespertino e outra para o noturno. As aulas são destinadas para estudantes universitários do curso de Educação Física e o foco desta aula é debater metodologias para o ensino dos Esportes Coletivo.

Na aula da noite, após apresentar um quadro sobre as fases do jogo de um professor português chamado Julio Garganta abri para a discussão. O quadro apresenta quatro fases do jogo, sendo a primeira fase denominada como “fase anárquica” até se chegar a fase de grande elaboração do jogo. Portanto, se o início é mais caótico a última fase representa a organização do jogo. É recorrente a indicação neste momento do debate de que as crianças estão “sempre” na fase anárquica porque correm todas atrás da bola. Em parte isso pode ser passível de ser analisado desta forma, mas se estas crianças tiverem acumulado uma série de experiências na prática de tal modalidade certamente produzirão um jogo mais organizado. Ou seja, a fase da qual fala Garganta não está determinada pela idade.

Em um certo momento do debate houve uma fala vinda de um menino em que apontava que “as meninas não jogam bem futebol e estarão na fase anárquica”. A frase quando termina sem grandes ponderações da justificativa do fato de que não jogam bem porque muitas não tiveram experiências diante de tal modalidade gera uma fala preconceituosa e discriminatória em torno das mulheres.

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Nos Estados Unidos o futebol é coisa de mulher. Foto: David Sanborn.

Eu, de fato, ao conduzir o debate perdi a oportunidade para intervir neste momento e explorar a tensão como uma potencialidade da aula para caminhos que não estavam previstos quando planejei e organizei a aula. E mesmo trazer o exemplo da fala do professor de meu filho que havia tocado exatamente nesta questão.

Tomei como óbvio que tal justificativa para este lugar das mulheres na prática do futebol estaria implícita na fala do estudante e que ela se daria pelo menor acúmulo de experiências de jogar futebol já que, ainda hoje, as meninas são privadas da prática. Mas esta justificativa não estava implícita!

Tanto é que uma da meninas presentes pediu a palavra e disse que estava incomodada com tal afirmação. Outras meninas como modo de reforçar o incomodo perguntaram se ele já havia visto o treino delas. Ele respondeu que não poderia falar nada sobre as mulheres sem receber em troca esses posicionamentos.

Sem querer isentar seu posicionamento que tende a naturalizar uma ação que é aprendida durante longos anos de prática posso também afirmar que sua fala revela o quanto, muitos de nós, ainda estamos amarrados a uma lógica que nos conduziu para ter certo tipo de pensamentos. Não quero dizer que esteja correto pensar assim, mas quero ressaltar o quanto carregamos das nossas experiências e contato com o mundo que nos cerca. É preciso constantemente transformar o olhar, perceber que o que naturalizamos não tem nada de natural. Há um mundo social em que homens e mulheres (só para ficar nestas duas categorias) estão em lugares desiguais em boa parte dos casos.

Lembro-me de como a minha geração teve seu olhar moldado para fazer esse tipo de afirmação tal qual o estudante. Em nossas aulas de Educação Física dos anos 1990 havia uma divisão clara na estrutura das aulas: os meninos tinham aula com o professor e as meninas com a professora. Logo estas aulas eram separada. Não tenho como dizer como foi a minha experiência em fazer uma aula de Educação Física com uma professora e ter a oportunidade de jogar, correr, de ocupar o mesmo espaço de uma aula de Educação Física com as meninas. A divisão era clara e intencional, e colocava os meninos tendo aula com o professor e as meninas com a professora. Isso moldou o olhar tanto dos meninos quanto das meninas que passaram por esta condição.

Além disso, nas aulas esportivizadas, divididas por bimestres as meninas eram privadas de praticarem futebol. Quando chegava o futebol, frequentemente e estrategicamente, deixado para o último bimestre as meninas experimentavam outras ações corporais que não a de conduzir uma bola com os pés.

Mais de duas décadas depois de passar pela escola ainda encontro a separação entre meninos e meninas no esporte universitário. As equipes são divididas entre masculinas e femininas. Se, por um lado, há a tensão quando um discurso coloca a mulher como inferior em relação a prática do futebol por outro parece ser “natural” estruturar os campeonatos pela clássica divisão do esporte de alto rendimento. Por que não termos equipes mistas? Por que, em boa parte das faculdades, há equipes de futsal masculina e outra feminina enquanto o futebol de campo fica restrito aos meninos?

O que precisamos fazer é estar atentos para não perder as oportunidades em intervir nestes momentos em que certos discursos olham para o outro e naturalizam a sua condição muitas vezes de inferioridade, afinal, “as meninas não sabem jogar” correndo-se o risco de que a parte oculta da frase não revela o que para mim estava óbvio que “devido a poucas experiências corporais diante da prática do futebol que elas teriam uma forma de jogar diferente dos meninos”. O risco de não falar o que estava óbvio é o de colocar em seu lugar a medida que naturaliza e impõe uma barreira que nunca será superada.

Não podemos mais dizer que “as mulheres não jogam bem futebol porque são mulheres”. Se naquele momento perdi a oportunidade de intervir de maneira a desconstruir os preconceitos que carregamos não perdi a oportunidade em escrever este texto e poder refletir sobre um tema fundamental quando pensamos o futebol em nossa sociedade.

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. As meninas jogam mal futebol?. Ludopédio, São Paulo, v. 111, n. 3, 2018.
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