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As torcidas antifascistas de Salvador

André Carvalho 22 de junho de 2019

Como coletivos de esquerda ligados a torcedores de Bahia e Vitória se articulam para combater o futebol moderno e a intolerância na sociedade

 

Quando a elitização das arquibancadas caminha de mãos dadas com o avanço da intolerância na sociedade e o torcedor passa a ser encarado como mero consumidor, com seus direitos cada vez mais ameaçados, nada é mais urgente do que a luta das torcidas antifascistas.

Nos estádios, nas ruas, nas universidades e no imaginário coletivo, lutar contra a homofobia, o machismo e o racismo é um exercício de cidadania. E, para isto, não basta torcer das tribunas, é preciso calçar as chuteiras e entrar em campo.

Se na sociedade regida pela lógica capitalista a cidadania é concedida apenas a quem tem dinheiro suficiente para comprá-la, o mesmo vale para o torcedor dos novos tempos. Não basta apoiar o time, é preciso consumir os produtos licenciados: vale mais para o clube um corpo quieto trajado por uma camisa oficial do que um descamisado a torcer descontroladamente.

A intolerância cada vez mais latente nas relações sociais encontra terreno fértil nas arquibancadas. Ambiente historicamente hostil às mulheres, os estádios se embranquecem e se elitizam quando se transformam em modernas arenas. E das confortáveis cadeiras numeradas que substituem o velho concreto vêm mais uma expressão de ódio a cada tiro de meta cobrado pelo goleiro adversário: “Bicha!”.

Em sintonia com o Hino da Bahia, que diz “nunca mais o despotismo regerá nossas ações, com tiranos não combinam brasileiros corações”, torcedores de Bahia e Vitória articulam-se para fazer frente a este cenário adverso à cidadania.

Lutando pelo fortalecimento dos princípios democráticas de seus clubes, pela popularização das arquibancadas e pela paz entre as torcidas, coletivos progressistas e antifascistas dos arquirrivais da capital baiana atuam, dentro e fora dos estádios, na trincheira contra o preconceito.

As Jornadas de Junho e a Copa das Confederações

Se nas hostes rubro-negras, coletivos como a Brigada Marighella e o Vitória Popular congregam adeptos de esquerda do clube, muitos deles também integrantes da Frente Vitória Popular (movimento que recentemente elegeu 28 conselheiros no clube), pelo lado tricolor, a Frente Esquadrão Popular também tem inserção na política interna do clube e reúne em suas fileiras agrupamentos progressistas, como o Bahia Antifascista, o MR-88 e o Bahia Quitéria.

Tais agremiações se colocam, de certa maneira, alheios à disputa da Copa América, que volta a ser realizada na cidade após 30 anos. A realização da competição encerra o ciclo de megaeventos esportivos que o país abriga desde 2007, quando o Rio de Janeiro recebeu os Jogos Pan-Americanos. O primeiro grande torneio que a capital baiana abrigou, porém, foi a Copa das Confederações, em 2013, em um contexto propício para o surgimento e fortalecimento destas organizações de torcedores.

O campeonato organizado pela Fifa, que serviu de teste para a Copa do Mundo, foi realizado em meio às Jornadas de Junho, quando o Brasil estava em ebulição, imerso em gigantescos protestos, que abrigavam pautas um tanto difusas. Uma delas era a crítica à realização destes megaeventos esportivos, cujos legados negativos que traziam, como as remoções de comunidades localizadas próximas aos estádios, o rombo aos cofres públicos e a elitização das arquibancadas, eram denunciados por ativistas abrigados nos Comitês Populares da Copa.

Manifestantes protestam contra uso de dinheiro público na Copa das Confederações em frente ao Estádio Nacional Mané Garrincha. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

Nestes seis anos que separam aquela Copa das Confederações desta Copa América, muita coisa mudou no cenário político e social brasileiro. Se antes, por exemplo, eram raros os enaltecimentos públicos de cidadãos brasileiros ao regime de exceção que vigorou no país entre 1964 e 1985, hoje há elogios a personagens dos porões da ditadura vindos da própria Presidência da República. E nestes novos tempos, os movimentos sociais que se autodenominam “antifascistas” vêm das arquibancadas dos estádios de futebol.

Herdeiros de Marighella: a torcida antifa do Vitória

Fundado em 1899 por integrantes da aristocracia soteropolitana, o Vitória passou por um processo de popularização nas últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 80, quando seu estádio, o Barradão, foi construído em Canabrava, um bairro da periferia de Salvador. A expansão de sua torcida para as camadas mais populares da cidade, que foi acompanhada por uma maior frequência de conquistas de títulos, entretanto, não permitiu que os torcedores pudessem participar da vida política do clube.

A democracia custava a vir. Movidos pelo espírito revolucionário de um dos torcedores mais ilustres do clube, o guerrilheiro Carlos Marighella, um grupo de rubro-negros de esquerda, no início da década, organizou-se, então, para alterar este cenário. Surgia a Brigada Marighella.

A Brigada Marighella se faz presente em atos de rua na capital baiana; a atuação “em defesa da democracia e contra desigualdades sociais” é determinada pelo estatuto do coletivo. Foto: Divulgação.

A reportagem conversou com três integrantes do coletivo, Daniel, André e Elisa (que preferiram não revelar seus sobrenomes), além do advogado Diego de Assis, integrante de outro agrupamento progressista do clube, o Vitória Popular, em um longo bate-papo ocorrido em um bar no bairro dos Barris, em Salvador.

Daniel conta que, quando a Brigada Marighella surgiu, na virada de 2012 para 2013, havia no clube algumas ações de torcedores que lutavam pela democracia do clube. “Esses movimentos são fracassados, mas criam uma cultura de esquerda, de reivindicação na torcida do Vitória. Então, a Brigada Marighella surge nesse contexto”, afirma.

“A gente se junta por trás desse símbolo, que é Marighella, que é muito forte para o torcedor do Vitória. É um torcedor do Vitória ilustre, talvez o maior torcedor do Vitória de todos os tempos.”

A efervescência política em que o país mergulhou a partir das Jornadas de Junho levaram o agrupamento, consequentemente, a se reconhecer em torno da bandeira antifascista. E o coletivo, que à princípio era constituído basicamente por anarquistas e militantes do PSOL, passou a agregar, também, militantes do PT, PC do B, movimento negro, movimento feminista e movimento LGBT. “A partir de 2013, quando passa a ter essa virada no país, a gente começa a perceber que era necessário virar um agrupamento antifa”, afirma Daniel.

A heterogeneidade de correntes políticas dentro de uma ideologia comum antifascista faz com que o ambiente de convívio da Brigada se transforme, segundo Daniel, em um “espaço de aprendizado”, onde, em meio a divergências, sejam construídas “pautas e discursos comuns”.

Para André, a afinidade maior se dá em torno “de uma pauta mínima, que é a questão da democratização do clube e da luta por tornar o Vitória um clube popular”, um consenso formado a partir de uma cultura de esquerda forjada nas arquibancadas do Barradão.

O rubro-negro esclarece que cada torcida tem suas condições particulares para se constituir como agrupamento antifa dentro de determinado contexto histórico, mas que o ambiente propício para a mobilização popular em 2013 foi determinante para o surgimento de outros coletivos antifascistas em torcidas de clubes brasileiros naquele momento.

“Talvez um marco disso que a gente possa colocar é justamente o período pré-Copa do Mundo no Brasil, que é quando se começa a ter algumas experiências a partir do Comitê Popular da Copa. Então, em vários lugares isso foi formado e acabou influenciando o surgimento de torcidas antifas em outros cantos do Brasil”, sugere.

Casal de rubro-negros da Brigada Marighella no Barradão; a ala feminista do coletivo luta pela maior participação das mulheres nas arquibancadas e pela valorização do futebol feminino do clube. Foto: Divulgação.

A Brigada Marighella define-se como ”um grupo de torcedores do Esporte Clube Vitória da esquerda anticapitalista, antifascista, anticarlista, antiproibicionista e antiopressão”. Em seu estatuto, prega a luta contra o fascismo e o “futebol moderno” entendido como “todas as formas de elitização dos esportes e de repressão nos estádios”, que tiram destes espaços seu “caráter popular”.

A luta “contra desigualdades sociais, o racismo, o machismo, a lgbtfobia ou qualquer outra opressão” também está prevista no estatuto. E, nesse sentido, há uma ala feminina e feminista dentro do coletivo. “A Brigada Dandara foi criada dentro da própria Brigada Marighella, quando, internamente, a gente sentiu que precisava se posicionar enquanto mulher”, afirma Elisa, que ingressou no coletivo em 2015.

Brigada Dandara. Foto: Divulgação.

Vitória, um clube agora popular

Representante do Vitória Popular, Diego de Assis conta que o coletivo é composto por cerca de 35 pessoas e integra um movimento maior, chamado Frente Vitória Popular, que congrega diversos outros grupos que atuam na política institucional do clube.

O Vitória Popular, antes, participou da gestão de Ivã de Almeida que, em 2017, reformou o Estatuto do clube, permitindo, enfim, que os associados pudessem escolher de forma direta o mandatário do Vitória.

“O Vitória é um clube historicamente elitista, nascido no Corredor da Vitória, seu quadro social, até pouco tempo atrás era um quadro estritamente fechado. Para o torcedor comum, participar da vida do clube era extremamente complicado”, afirma Assis.

A má gestão de Almeida fez com que ele renunciasse antes do fim do mandato. Seu sucessor, Ricardo David, o primeiro eleito em votação direta na história do clube, também teve o mandato abreviado por um pedido de renúncia. Resultado: houve o retorno de um velho cartola, Paulo Carneiro, presidente do clube entre 1991 e 2005 e apoiador convicto do presidente Jair Bolsonaro.

“É um cara totalmente avesso às pautas populares, que volta para o clube nos braços da torcida. E uma de suas primeiras ações é falar que o Vitória tem que acabar ‘com isso de ser popular’. Que o clube popular da Bahia ‘a gente sabe qual é’”, diz Assis.

Em contato à reportagem, o Esporte Clube Vitória, por meio de seu diretor de marketing, Ricardo Nery, afirmou que o clube está aberto ao diálogo com a torcida e com a Frente Vitória Popular para a proposição de ações afirmativas de combate ao racismo, à homofobia e ao machismo.

“Dentro da nossa pauta de clube, não há nenhuma ação que seja feita em relação à luta contra homofobia, racismo e machismo dentro do futebol, mas isso não quer dizer que o clube esteja pouco preocupado com situações que interessam à sociedade de uma maneira geral. A gente precisa, porém, ser procurado para que a gente possa fazer isso de uma maneira mais coordenada. Atualmente, a situação do clube não permite que a gente abrace, faça ações, sem que exista, muitas vezes, uma parceria, alguém que também se interesse em tocar essa ação conjunta”, afirma Nery.

O diretor de marketing ressalta que o clube realiza outra ações sociais, como o “Vitória Cidadania”, no bairro de Canabrava, na periferia de Salvador, onde está localizado o Barradão; campanhas de doação de sangue e de órgãos; e desenvolve uma parceria com o Martagão Gesteira, hospital voltado ao atendimento de crianças carentes com câncer. “O Vitória é sim, eu posso afirmar, um clube cidadão”, pontua.

Sobre a luta antifascista levada à cabo por uma parcela da torcida do clube, Nery, à princípio, declara “que o clube não tem uma avaliação sobre isso”, afirmando ter dificuldade de “entender o fascismo nesse contexto”. Ele diz que, atualmente, o termo “ficou meio que usado livremente quando duas pessoas não conseguem conversar”.

Em seguida, no entanto, o dirigente rubro-negro declara ser a favor de toda ação que vise a melhor convivência das pessoas. “Tudo o que for feito para a integração, para se buscar a paz e se poder propiciar que famílias, por exemplo, possam frequentar o estádio, vai contar com a contribuição do clube.”

Esporte Clube Bahia, pioneiro em ações afirmativas no país

Clube que já nasce conquistando títulos e angariando adeptos na medida que atravessava as décadas, o Bahia – fundado em 1931, bem depois, portanto, de seu rival – teve que esperar muito tempo para poder pertencer, de fato, a seus torcedores. Foram pouco mais de oito décadas em que, a despeito dos títulos conquistados e das memoráveis jornadas na Fonte Nova, os tricolores não puderam exercer a cidadania no clube.

Somente em 2013, quando uma intervenção judicial retirou do poder o então presidente Marcelo Guimarães Filho, a espera acabou e os associados puderam escolher o presidente do clube em eleições diretas – o cartola, conhecido como MGF, já havia resistido a duas investidas da Justiça nos anos anteriores.

Se a mudança veio por uma interferência externa, movimentos populares de torcedores em prol da democratização do clube não faltaram nos anos anteriores, ocorrendo, pelo menos, desde 1989, com o Movimento de Renovação do Bahia (MRB). Em 2006, a torcida tricolor chegou a colocar 50 mil nas ruas pedindo a cabeça dos “coveiros” que mandavam e desmandavam há décadas no clube. “Devolvam o meu Bahia!”, clamavam.

Com a democracia estabelecida no clube, a atual gestão do presidente Guilherme Bellintani criou, em janeiro de 2018, o Núcleo de Ações Afirmativas (NAA). De lá para cá, campanhas de combate à intolerância religiosa, à lgbtfobia e ao racismo, bem como o posicionamento a favor da demarcação de terras indígenas, entre outras ações, vêm sendo desenvolvidas. A atual gestão criou, ainda, os planos para associados “Bermuda e Camiseta”, em que torcedores com renda inferior a R$ 1.500 mensais podem assistir a todos os jogos do clube em casa pagando R$ 45 ao mês, e “Bahia da Massa”, cuja mensalidade custa R$ 60.

Ao se posicionar de forma explícita contra o racismo, a homofobia, o machismo e a elitização do futebol, a diretoria do clube levanta bandeiras caras à luta antifascista, levadas a cabo por torcedores de futebol. E, se dentro dos gabinetes do clube ela está presente, não poderia deixar faltar nas arquibancadas: congregando coletivos progressistas como o Bahia Antifascista, o MR-88 e o Bahia Quitéria, está a Frente Esquadrão Popular, surgida há cerca de um ano.

A luta da torcida tricolor

Torcedores do Bahia desses agrupamentos reuniram-se com a reportagem em um restaurante no Caminho das Árvores, em Salvador, para falar um pouco da atuação da Frente Esquadrão Popular e dos coletivos que a compõem, como o Bahia Quitéria, o MR-88 e o Bahia Antifascista. Estiveram presentes os advogados Gabriel César e Rodrigo Machado, o contador Bruno Tito e o empresário Bruno Carvalho.

Gabriel César, que trabalha na Defensoria Pública da União, é integrante do Bahia Quitéria, mas acaba tendo uma atuação maior na própria Frente Esquadrão Popular. Ele diz que os grupos que integram a Frente têm uma linha ideológica semelhante, alinhada a valores antifascistas.

“São grupos mais ou menos semelhantes nas ideias, mas que são formados por pessoas diferentes. Em regra, não há pontos de discordância. Quase todas as ações são aprovadas por unanimidade”, explica.

Além dos agrupamentos que compõem a Frente, dez conselheiros ligados a diferentes grupos políticos que atuam na política institucional do clube, bem como integrantes de torcidas como a Turma Tricolor, que se denomina uma “barra brava” e as Tricoloucas, composto exclusivamente por mulheres, integram o movimento de torcedores de esquerda do Bahia.

“A Frente Esquadrão Popular surge desta necessidade de juntar esse pessoal. Tinha muita gente que atuava, mas de maneira isolada. E não tinha sentido fazer essa atuação de forma dissipada. Então, a gente resolveu agregar, juntar todo mundo, para tentar mobilizar mais gente e ter mais força nas ações”, afirma César.

Por ter integrantes espalhados tanto na política interna do clube, como em instituições como Ministério Público, Defensoria Pública e partidos políticos, a Frente já nasce com grande poder de mobilização e articulação.

Rodrigo Machado, Bruno Carvalho, Bruno Tito e Gabriel Cesar (da esq. para dir.), membros da Frente Esquadrão Popular. foto André Carvalho

“Tivemos, por exemplo, uma conversa com o comando da Polícia Militar sobre criminalização das torcidas. Não foi uma pauta que a gente conseguiu avançar muito, mas a gente mapeou muita coisa e viu quem são as pessoas lá de dentro que a gente pode levar uma demanda que eventualmente possa surgir”, diz. “É uma articulação de bastidores, pouco visível, mas importante.”

Sobre a relação com a diretoria do Bahia no que se refere à formulação das campanhas do Núcleo de Ações Afirmativas, Cesar afirma que há um processo dialógico entre torcida e clube.

“A atual gestão passou a tocar essas pautas políticas, humanitárias e a gente acredita que há um processo de retroalimentação: esse movimento que a gente faz dentro da torcida dá força para o clube continuar essas ações e estas campanhas do clube dão força para a torcida seguir lutando”, explica Cesar.

O advogado afirma, ainda, que a maior preocupação da Frente é que este núcleo se institucionalize dentro do clube.

“Há a ideia de colocar estas ações de uma forma institucional, porque hoje em dia não tem nada que coloque o NAA como uma política institucional do clube. É uma política desta gestão, mas a gente quer garantir que isso seja colocado de uma forma perene para outras gestões, também”, afirma.

Em busca da identidade perdida: a luta pela (re)popularização do clube

Remetendo ao ano da conquista do segundo título nacional de sua história, mas também recordando o Movimento Revolucionário Oito de Outubro, o MR-88 (Massa e Raça 88), surgiu em 2017, reunindo membros que já haviam atuado em outros movimentos, associações e torcidas organizadas ligadas ao clube, como a Jovem Disposição Tricolor, cuja principal bandeira era a democratização do Bahia.

Rodrigo Machado, membro do MR-88, afirma que, com a democratização consolidada dentro do clube, o papel do coletivo é lutar pela popularização das arquibancadas. Ele esclarece que o Bahia sempre foi um clube popular, mas que a construção da Arena Fonte Nova alterou, de certa maneira, o perfil do torcedor que frequenta os jogos do Esquadrão de Aço.

“A questão do racismo e do acesso do povo, do povão, à Fonte Nova antiga eram pautas que sempre permearam a nossa torcida e, com o novo estádio, a nova Fonte Nova, a gente sentiu um baque grande no sentido justamente de um afastamento de grande parte dessa torcida”, afirma. “É um tema muito caro para nós e conseguimos emplacar um conselheiro e um suplente na atual diretoria de modo a garantir que esta questão sempre esteja presente nos debates do clube”, completa o empresário Bruno Carvalho, também membro do coletivo.

Quatro das torcidas antifascistas do Bahia. Foto: Divulgação.

Surgido como Ultras Tricolor em 2013 e rebatizado como Bahia Antifascista em 2017, o coletivo que representa os antifas tricolores nasce, como muitos outros no Brasil, no caldeirão que envolvia as Jornadas de Junho, os Comitês Populares da Copa e a crítica ao futebol moderno trazido com as novas arenas.

“A Arena Fonte Nova é inaugurada em Salvador naquele período. Com um formato completamente diferente da cultura de torcida de futebol aqui do Estado, tanto do Bahia quanto do Vitória, que era um estádio popular, dos descamisados, dos banguelas. É nesse contexto que o Ultras Tricolor ganha força”, afirma o contador Bruno Tito, integrante do Bahia Antifascista.

O tricolor afirma que a garantia do acesso das classes mais baixas à nova Fonte Nova é uma das pautas mais caras ao coletivo antifa do clube. “A gente batalha contra a elitização da Fonte Nova e, nesse sentido, apoiamos os programas de sócios mais populares como o ‘Bermuda e camiseta’ e o ‘Bahia da Massa’. Apoiamos estas ações afirmativas que combatem o futebol moderno elitista”, diz Tito, explicando que é nesse contexto que o Bahia Antifascista passa a integrar a Frente Esquadrão Popular.

Nelson Barros Neto, gerente de comunicação do Bahia, ressalta a boa relação mantida entre a diretoria com a Frente Esquadrão Popular e a convergência de pautas progressistas. “Ver torcedores endossando nossos posicionamentos nos alegra bastante, inclusive chegam sugestões e há proximidade”, afirma. “Estamos sempre monitorando estas ações da nossa torcida, mas eles não interferem direta ou necessariamente na construção das campanhas desenvolvidas pelo Núcleo de Ações Afirmativas.”

Neto avalia de forma positiva a luta antifascista nas arquibancadas brasileiras. “Nossos posicionamentos, ações e campanhas são sempre voltados para questões humanitárias, que transcendem siglas e partidarismos, mas sempre se distanciando do fascismo”, ressalta.

Da “assistência” ao “pós-torcedor”

Inaugurada em abril de 2013, a Arena Fonte Nova foi, nos últimos anos, palco de partidas da Copa das Confederações, da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Com a realização da Copa América, torneio que encerra o ciclo de grandes eventos esportivos realizados no país, finda-se, também, o acolhimento de jogos entre seleções em torneios de futebol pela capital baiana.

Oficialmente batizado de Itaipava Arena Fonte Nova, o novo estádio só manteve do antigo palco de alegrias e tristezas do torcedor baiano a localização e o formato em ferradura, com a parte de trás de um dos gols aberta aos ventos que sopram do Dique do Tororó.

O professor e geógrafo Gilmar Mascarenhas, falecido há poucas semanas, em seu artigo “O direito ao estádio”, explica como a reforma dos estádios visa trocar a figura do “torcedor” (emocional, excitado, agressivo, viril, que reclama, reivindica e se articula coletivamente com estranhos) pelo “consumidor” (sereno, passivo, solitário, contemplativo, que aplaude, filma e fotografa o cenário). O frequentador das novas arenas busca “uma experiência sem riscos, sem incertezas, adequada e altamente lucrativa para os donos do espetáculo”.

O geógrafo não negava o caráter agressivo e machista dos velhos estádios, mas avaliava não ter havido um debate a respeito do que seria um novo espaço de convivência nas arquibancadas. Um novo estádio que pudesse acolher mulheres, crianças e idosos, sem que “os pobres e todo o repertório festivo” que por décadas o caracterizou fossem excluídos.

“Setores hegemônicos já tinham um modelo pronto, importado, lucrativo e elitista, no qual o estádio reflete processos mais gerais de produção do espaço urbano no contexto neoliberal”, avaliou.

Jogadores do Bahia celebram gol com arquibancadas da Fonte Nova vazias ao fundo; a volta do “povão” à nova arena é uma das bandeiras dos coletivos de esquerda do Bahia. Foto: EC Bahia/Divulgação.

O jornalista e professor universitário Paulo Leandro, em seu livro “Negô! Baêa! A invenção da torcida baiana”, descreve o processo de transformação da “assistência” para “torcida” na consolidação do clássico Ba-Vi dentro da cultura do futebol da Bahia. Nesta transmutação, o passivo espectador torna-se uma ativo apoiador do clube nas arquibancadas do estádio, o chamado “12º jogador”.

“Os torcedores escolhem as cores que correspondem ao time, posicionam-se em um mesmo local e, por meio do consumo de indumentária e símbolos identificados ao seu clube, sentem-se pertencentes à comunidade imaginada de sua torcida, formando uma só alma grupal”, descreve Leandro, na publicação.

Conforme enfatizado no artigo de Mascarenhas, no entanto, esse processo avançou e tal perfil de torcedor novamente se alterou, retomando à passividade dos antigos “assistentes” do início do século passado, resultando no “pós-torcedor”, definição cunhada pelo britânico Richard Giulianotti, sociólogo do futebol.

“O torcedor vai perdendo o contato amoroso com o clube quando se afasta da cultura de arquibancada. Quando ele passa a ser um cliente, um consumidor de futebol, a relação afetiva com o clube se degrada. Então, estamos caminhando para um tempo em que você vai ter várias camisas e vai vestir a que ganhou. E isso faz parte da lógica neoliberal, que cultua apenas os vencedores”, afirmou à reportagem Paulo Leandro.

Os antifas baianos e a Copa América 2019

Com ingressos caros (os mais baratos saem por R$ 120, considerando apenas os valores inteiros), os coletivos de torcedores antifascistas de Vitória e Bahia não marcarão presença nas arquibancadas da Arena Fonte Nova na Copa América.

“Seria legal se conseguíssemos mandar um recado para Bolsonaro no minuto 17 das partidas em Salvador. Mas como tem a questão dos lugares marcados, seria difícil fazer isso”, afirma César, da Frente Esquadrão Popular. “Isso é só uma ideia, até porque a gente não se organizou para ir aos jogos, os ingressos são muito caros.”

Do lado rubro-negro, o péssimo momento vivido pelo clube, na lanterna da Série B, impede qualquer foco de atenção à competição realizada pela Conmebol. “A Brigada não tem um projeto para a Copa América. Eu acho que o nosso momento é tão ruim, tão complicado, que atropelou a gente nesse sentido. É um momento complicado para a gente falar de qualquer coisa”, afirma Elisa, da Brigada Marighella.

Para ela, um bom protesto contra a Conmebol e todo o futebol moderno que a entidade representa é menosprezar a competição e apoiar a Seleção Brasileira feminina na Copa do Mundo, que está sendo disputada na França.

Elisa ressalta que o apoio à inserção das mulheres no futebol é uma das bandeiras da Brigada e que este é um embate que atualmente ocorre no Vitória, com ala conservadora da diretoria se colocando contra a prática do futebol feminino. “Pra que gastar dinheiro com as mulheres, né?”, ironiza.

Os legados (negativos) da Copa do Mundo de 2014

A construção da Arena Fonte Nova é a herança da Copa do Mundo de 2014 mais evidente em Salvador, que afetou de forma sensível a cultura futebolística da cidade. A escolha da capital baiana como cidade-sede da Copa América, segundo torcedores dos arquirrivais baianos, no entanto, não deve trazer novos impactos ao futebol local. Já outros legados do Mundial ainda dão dor de cabeça aos aficionados de Bahia e Vitória.

André, da Brigada Marighella, conta que, ainda que a Fifa tenha promovido reformas no Barradão e em campos do Centro de Treinamento do Vitória, tais investimentos acabaram por prejudicar o clube.

“A grama alta no Barradão era um trunfo para a gente, os times que vinham jogar aqui penavam. Aí, quando você padroniza, os outros clubes ficam mais à vontade para jogar aqui”, explica. “Me parece que até quando a gente ganhou, a gente perdeu, não é mesmo?”, lamenta Elisa.

“O padrão Fifa vai aumentar a desigualdade dentro do futebol brasileiro. Quando eu falo que a grama alta do Barradão era um trunfo, é porque era mesmo. O Palmeiras vinha jogar aqui e sofria, o Flamengo vinha jogar aqui e sofria. Quando a Fifa diz que todo campo tem que ser do mesmo tamanho, com a grama da mesma altura, isso aumenta a desigualdade. Essa padronização não se reflete nos orçamentos dos clubes.” Padroniza-se a grama, mas não a grana.

Seleção brasileira posa para a foto antes do empate com a Venezuela pela segunda rodada da Copa América 2019. Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

O legado da Copa, em alguns casos, traz aspectos mais simbólicos e é impregnado na subjetividade do torcedor. A mudança de perfil dos frequentadores dos novos estádios e do comportamento destas pessoas nos noventa minutos de jogo é um exemplo claro. Uma outra herança, profundamente negativa, parece ter se arraigado em muitos torcedores.

“Quando a gente fala de legado negativo, não falamos só dos contratos questionáveis entre poder público e comitê organizador, ou os ‘elefantes brancos’. O grito de ‘bicha’ no tiro de meta foi um legado da Copa, deixado pelos torcedores mexicanos”, afirma Gabriel Cesar. “Na Bahia não pegou, mas em muito lugar, pegou.”

De fato. Na estreia da Seleção na Copa América contra a Bolívia, no Morumbi, apenas um dia depois da decisão do Supremo Tribunal Federal de criminalizar a homofobia, o grito homofóbico pôde ser ouvido vindo das arquibancadas do estádio do São Paulo – a CBF já havia sido punida cinco vezes pela Fifa durante a campanha das Eliminatórias da Copa do Mundo de 2018, tendo que desembolsar, no total, 100 mil francos (o equivalente atualmente a R$ 386 mil).

Atendendo à determinação do STF de equiparar práticas homofóbicas ao crime de racismo, no entanto, Paulo César Salomão Filho, presidente do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), afirmou nos últimos dias que o órgão passará a punir com multa ou até perda de pontos clubes cujos torcedores manifestarem atitudes homofóbicas nos estádios.

Outro “péssimo legado da Copa” apontado por Cesar é a questão que surge com a Lei Geral da Copa, que inclui um inciso no Estatuto do Torcedor proibindo bandeiras e faixas que não tenham o teor de “manifestação festiva e amigável”.

“O que são faixas festivas e amigáveis? Isso foi interpretado como proibição de faixa de conteúdo político, mas a gente sabe que é uma cláusula totalmente aberta. Isso gera situações absurdas como quando um torcedor foi proibido de entrar com uma faixa com a mensagem ‘Paz nos estádios’ na Fonte Nova”, reclama.

À direita: os novos ventos que sopram na América do Sul

Depois de abrigar torneios organizados pela Fifa (Copa das Confederações e Copa do Mundo) e pelo COI (Jogos Olímpicos), Salvador é palco, agora, de uma competição realizada sob a alçada da Conmebol. Após um escândalo de corrupção que levou à prisão três ex-presidentes da entidade, Eugenio Figueredo, Nicolás Leoz e Juan Ángel Napout, a Confederação Sul-Americana de Futebol busca refazer sua imagem apostando na promoção do futebol moderno no continente.

O estabelecimento das finais de Libertadores e Sul-Americana em jogo único e campo neutro, a proibição de bandeirões, a exigência de que os torcedores assistam aos jogos sentados e os ingressos cada vez mais inflacionados são exemplos que demonstram o perfil de torcedor que a entidade anseia que frequente os estádios do continente nas competições por ela organizadas.

Se há um movimento forçado para que se altere o ambiente de dentro dos estádios sul-americanos, fora de campo, no âmbito da política, verifica-se no continente uma guinada de 180 graus. Da esquerda para a direita – no caso do Brasil, extrema-direita.

Rivalidades esportivas sempre existiram entre Brasil e seus vizinhos da América do Sul, sobretudo com a Argentina. No âmbito diplomático, no entanto, historicamente, as boas relações prevaleciam. Já não é mais assim e, nesse sentido, a partida entre Brasil e Venezuela, em Salvador, ganhou uma simbologia que extrapola o desporto.

Sobre o duelo “Bolsonaro x Maduro”, que acabou empatado sem gols, os torcedores antifascistas de Vitória e Bahia convergem nas declarações. Eles afirmam que a figura do presidente venezuelano gera debates contraditórios dentro dos coletivos, mas ressaltam que há unanimidade em relação à defesa do povo venezuelano e da soberania do país frente ao imperialismo norte-americano.

Torcida do Bahia carrega faixa contra a censura em dia de jogo na Fonte Nova; com a democracia estabelecida no clube, tricolores se posicionam contra retrocessos na política brasileira. Foto: Divulgação.

Para o antifa tricolor Bruno Tito, se há uma conjuntura conservadora e reacionária na América Latina, a homofobia, o racismo, o elitismo, o machismo e as políticas antipopulares serão refletidas para dentro dos estádio. “O clube de futebol e a torcida do clube de futebol não são ilhas apartadas do restante da sociedade”, afirma.

“O futebol aqui no Brasil e em várias partes do mundo, mas sobretudo no Cone Sul, está diretamente ligado à cultura e ao imaginário das populações em seus respectivos Estados nacionais. Então, quando você vê, por exemplo, dentro de um estádio, o machismo, o racismo e a homofobia, isso é o reflexo de como sociedade está pensando”, diz Tito.

A atuação das torcidas antifascistas, assim, é muito importante porque “dialoga com o que há de mais perto nesses povos, que é o futebol”. Para ele, esta conjuntura sul-americana reflete-se, também, na política da Conmebol e, por isso, a resposta não deve se dar apenas nos âmbitos nacionais.

André, da Brigada Marighella, endossa o argumento do torcedor rival. “O futebol não está isolado da realidade, não é algo à parte, e se conecta muito com projeto de mundo que a gente tenta construir aqui no Brasil.”

Tito  lembra que a vinda de torcedores de diferentes países da América do Sul para a Bahia pode servir para uma troca de experiência e contatos, criando bases para essa necessária articulação entre antifas do continente.

“A reação tem que se dar conjuntamente, em escala internacional, para podermos dar uma resposta de peso, e romper, inclusive, com essa questão da divisão nacionalista, que não contribui em nada para esta aliança de classe internacional”, conclui.

“Nem guerra entre as torcidas, nem paz entre as classes”

Criada em julho de 2005 por dois torcedores do Ferroviário, um anarquista e um comunista, a Ultras Resistência Coral é considerada por muitos a primeira “torcida de esquerda” do país, servindo de referência e inspiração, sobretudo no Nordeste, para vários coletivos antifascistas que surgiriam depois.

No acanhado estádio Presidente Vargas, em Fortaleza, faixas com os dizeres “Nem guerra entre as torcidas, nem paz entre as classes”, “Resistência Antimachista”, “Aliança Operária Antirracista” e “Orgulho Proletário” dividem espaço com a pequena torcida do clube de origem operária, que foi fundado por trabalhadores ferroviários em 1933.

“As torcidas antifascistas começam a ganhar força no Brasil no final dos anos 2000. Aqui no Nordeste, porém, nós temos um embrião, que é a Ultras Resistência Coral. É a maior referência de torcida de esquerda, de torcida antifascista no Brasil”, diz Tito.

Os “ultras” são os torcedores fanáticos que frequentam os estádios europeus, à semelhança dos “barra bravas” argentinos. No Velho Continente, estão associados tanto a nacionalistas de extrema-direita, como os “Irriducibili”, da Lazio, quanto a comunistas e antifascistas de extrema-esquerda, tal qual a Brigate Autonome Livornesi, do Livorno, clube italiano historicamente ligado à classe operária.

No caso da agremiação coral de Fortaleza, o termo, obviamente, é inspirado nas torcidas progressistas. Além dos aficionados toscanos, os cearenses também se inspiram nos Bukaneros, antifas do Rayo Vallecano, de Madri, e nos torcedores do St. Pauli, que foi o primeiro clube alemão a banir torcedores neonazistas de sua torcida.

Os dizeres “Nem guerra entre as torcidas, nem paz entre as classes” – uma espécie de adaptação ao “paz entre nós, guerra aos senhores”, da Internacional Socialista –, grafados em uma das faixas dos ultras do Ferroviário, são uma espécie de lema das torcidas antifascistas do país.

Ultras Tricolor exibem faixa com lema antifascista na Fonte Nova; torcida fundada em 2013 deu origem ao Bahia Antifascista, coletivo integrante da Frente Esquadrão Popular. Foto: Divulgação.

Para os antifas que ocupam as arquibancadas Brasil afora, a união proletária e a luta de classes devem ser colocadas em prática diariamente. E os inimigos, não é difícil lembrar, são outros: os políticos corruptos da “bancada da bola”, os cartolas antidemocráticos, as Federações, a CBF, o Ministério Público e a PM. Jamais o torcedor rival.

“Nós temos uma máxima, que norteia as nossas políticas, que é falar para as outras torcidas que a classe nos une e os clubes nos divide, mas apenas dentro dos estádios. E não na arquibancada: somente dentro das quatro linhas do campo de futebol”, afirma Tito.

A questão da violência entre as torcidas organizadas é um reflexo das desigualdades sociais engendradas pelo capitalismo. Como escreveu Eduardo Galeano, em seu livro “Futebol ao sol e à sombra”, “a violência não vem do futebol como as lágrimas não caem dos lenços”. Sendo assim, a criminalização desses torcedores é uma resposta ineficaz e autoritária frente ao problema estabelecido.

“A classe é mais importante. A luta tem que ser contra aqueles que nos oprime. Isso significa batalhar por um Estado de bem-estar social melhor, por condições melhores para poder entrar no estádio, para torcer com mais segurança, e por aí vai”, completa o membro do Bahia Antifascista.

Antifas unidos contra a opressão

Esta união entre as torcidas foi evidenciada em casos em que um posicionamento firme diante de situações de evidente retrocesso à civilidade se fez necessário.

E em pelo menos três ocasiões, em um passado recente, isso ocorreu: quando, em abril de 2018, o Ministério Público do Rio de Janeiro, juntamente com a PM, cogitou segregar as organizadas dos clubes cariocas em setores isolados no Maracanã; no segundo turno das eleições presidenciais, em apoio ao candidato Fernando Haddad e repúdio a seu adversário, Jair Bolsonaro; e no aniversário do Golpe de 64 deste ano, em oposição à determinação do presidente Bolsonaro para que as Forças Armadas celebrassem a data.

Torcidas antifas unidas do Brasil: seus símbolos, cores e lema. Foto: Divulgação.

Nestas três ocasiões, notas foram assinadas por dezenas de coletivos antifascistas e torcidas organizadas, em uma demonstração de união e força.

O comunicado intitulado “Gol contra: Ditadura Militar impôs derrota ao Brasil”, assinado por 50 agrupamentos de esquerda ligados a torcidas de futebol, incluindo a Frente Esquadrão Popular e a Brigada Marighella, para André, do agrupamento antifa do Vitória, foi “o maior exemplo de enfrentamento no futebol” dos últimos anos.

“No Brasil, o 31 de Março iniciou um 7 a 1 contra a democracia e a civilidade. Que seja lembrado como o início de um período de ignorância e barbárie. Que possamos recuperar a verdade, instaurar uma cultura de paz e anular este ‘gol contra’ que o fascista Bolsonaro marcou contra todos os brasileiros”, dizia trecho da nota.

Para o rubro-negro Daniel, naquele momento, “caiu a ficha” de que ele estava diante de um movimento popular grande.

“Eu pensei: ‘velho, a gente tá com todo o Brasil. A gente tá com todo o Brasil com uma pauta muito parecida’. Eu não via aquilo desde 2013, com o MPL [Movimento Passe Livre], que também tinha coletivo no Brasil todo. E hoje é com os antifas. Tem antifa no Brasil todo. A gente está diante de um movimento com um potencial surreal”, afirma.

De fato, trata-se de um movimento que cresce exponencialmente. Levantamento realizado pela reportagem apurou que, atualmente, 57 clubes do país contam com torcidas progressistas. De clubes grandes do Sul-Sudeste, passando pelas equipes mais tradicionais do Norte-Nordeste, até pequenas agremiações do interior de São Paulo e Rio Grande do Norte, a semente do movimento antifascista plantou-se definitivamente nas arquibancadas brasileiras.

O feminismo nas arquibancadas

Se a luta antifascista no meio futebolístico é um exercício incessante de cidadania, para as mulheres, que têm que batalhar pelo próprio direito de torcer, o caminho é ainda mais árduo e longo.

“O estádio de futebol ainda é um ambiente hostil para gente”, afirma a rubro-negra Elisa. “Apesar de uma pesquisa recente [do Ibope Inteligência] apontar que as mulheres representam 52% da torcida do Vitória, a gente não chega no Barradão e encontra metade dele composto por mulheres, longe disso. Então, ainda há muito espaço de disputa.”

Ela reclama da reação de muitos homens que se incomodam quando se deparam com o movimento de ocupação feminina nas arquibancadas.

“Tem aquele velho discurso ‘ah, vocês querem regular a gente em tudo, até no futebol’. Aí a gente passa a questionar, né? Esse espaço pode ser liberado para você praticar todo tipo de violência e é um espaço que tem que ser negado para gente? A gente não tem direito a esse espaço? Do estádio, do futebol, da torcida?”, questiona.

Além da Brigada Marighella, que mantém um núcleo feminista em seu seio, a Brigada Dandara, torcedoras do Vitória integram outros coletivos, como o Loucas pelo ECV, o Elas na Bancada e o Comando Feminino da TUI (Torcida Uniformizada Os Imbatíveis). Já no rival, há um movimento chamado Tricoloucas, que conta com algumas integrantes, inclusive, atuando dentro da Frente Esquadrão Popular.

Bahia e Vitória têm torcidas organizadas compostas exclusivamente por mulheres. Foto: Divulgação.

Em contato com a reportagem, a Confederação Brasileira de Futebol, através de sua assessoria de imprensa, afirmou combater “a discriminação por gênero, cor, crença, origem e condição física” por meio da campanha “Todos Iguais”, lançada em 2018.

“A grande inspiração para o slogan da campanha é a frase do cantor e compositor Gilberto Gil: ‘Todos somos iguais em nossas imensas diferenças’”, afirma a entidade, ressaltando a mensagem da campanha: “Para a CBF e para o futebol, todos são iguais.”

O movimento das torcidas antifascistas no país é avaliada pelo órgão que rege o futebol brasileiro da seguinte maneira: “A CBF enxerga como positiva a mensagem que as torcidas passam pela paz, enaltecendo o que há de melhor no futebol: amizade, rivalidade sadia e presença das famílias nos estádios.”

A reação conservadora

Ao assumirem posições declaradamente de esquerda, os coletivos antifascistas acabam sofrendo resistência de segmentos mais conservadores da torcida e da diretoria dos clubes. Gabriel Cesar, da Frente Esquadrão Popular, conta que há “uma minoria barulhenta” dentro da política do Bahia, que é contrária às ações afirmativas que o clube desenvolve.

“É um movimento invisível, porque ninguém quer se queimar. Ninguém quer ser contrário a uma ação que está repercutindo bem. Mas essas pessoas são contra, acham que são pautas partidárias, que é coisa de esquerdista e tal”, afirma.

No Vitória, a resistência às pautas progressistas levantadas pela ala de esquerda da torcida do clube também ocorre. Diego de Assis, do Vitória Popular, afirma que é comum escutar que “futebol e política não devem se misturar”.

Diego de Assis, do Vitória Popular, durante a conversa com a reportagem. Foto: André Carvalho.

“Eles acham que a gente não tem o direito de pautar o que a gente pauta, da gente defender um estádio menos homofóbico, um estádio menos machista. Eles acham que tudo que a gente faz nesse sentido é uma tentativa de politizar o Vitória. E que isso não dialoga com o futebol”, reclama o advogado.

O rubro-negro André lembra, no entanto, que “desde que Charles Miller botou a bola no chão aqui no Brasil” a política já estava envolvida com futebol. “Sempre estiveram ligados, mas sob manipulação de um setor conservador. As políticas institucionais sempre foram controladas por aqueles grandes figurões. É João Havelange, é Ricardo Teixeira, é Paulo Carneiro, é Paulo Maracajá… Então o futebol sempre foi controlado, de alguma forma, politicamente, por atores políticos conservadores.” Elisa acrescenta que “foi a política que excluiu negros e mulheres do futebol”.

Cesar enfatiza que a reação às pautas progressistas e às torcidas antifas ganham um caráter ainda mais exacerbado no Sudeste. “As torcidas de Palmeiras e Corinthians já têm movimentos que se denominam anti-antifascita, que é mais fácil você chamar de fascista, porque anti-antifascista é fascista. Na matemática, menos com menos é mais”, afirma.

O jornalista Paulo Leandro, por sua vez, pontua que muitos segmentos da esquerda brasileira, tradicionalmente, consideram o futebol como um terreno da direita. “Futebol para eles ainda atende ao conceito de alienação do século XIX, de Marx, de ópio do povo”, afirma.

Paulo Wescley M. Pinheiro, professor da UFMT e membro do coletivo antifascista Resistência Tricolor, do Fortaleza, em seu artigo “As ruas e as arquibancadas em tempos reacionários: futebol, diversidade e as torcidas antifascistas” endossa: “A compreensão que limita o futebol como alienação das massas é rasa. Tal e qual todos os espaços de sociabilidade esse é só mais um que expressa as questões fundamentais de um dado tempo histórico.”

“Quando não há organização, interesse e não se planta nas brechas das contradições sociais um discurso emancipatório os espaços são ocupados apenas pela manutenção do status quo”, conclui.

Leandro endossa a argumentação de Pinheiro.

“Foi uma grande perda a gente deixar o futebol na mão da direita, como deixamos. E parte desse processo, também, de involução e retrocesso eu atribuo aos acordo que a esquerda fez com a direita no contexto pré-Copa do Mundo para a construção dessas arenas higienizadas, racistas, excludentes, que tiraram os negros e os pobres dos estádios de uma forma agressiva”, diz.

Vale tudo nos estádios?

O mito de que há um código de conduta diferente dentro dos estádios de futebol, em que “vale tudo”, propicia um ambiente fértil para expressões dos diversos tipos de preconceito.

“O futebol é um espaço em que essas intolerâncias, esse machismo, esse racismo, essa homofobia, se manifestam com maior força. Porque há uma crença de que no futebol, no estádio, o código de conduta é diferente e você pode fazer qualquer coisa. Como você está ali, desprovido de razão, um ser passional, torcendo pelo seu clube, você não tem que se comprometer com nenhum compromisso racional. E no Brasil de Bolsonaro isso pode se acentuar ainda mais, porque você tem um presidente que dá carta branca para esse tipo de ato, que avaliza esse tipo de conduta”, diz Cesar, da Frente Esquadrão Popular.

Leandro ressalta que a rivalidade também é complementariedade e uma das características do fascismo é justamente negar o diferente, aniquilar o outro. “A gente se completa no outro. O outro te dá a identidade. O Vitória se completa no Bahia. E quando você não enxerga o divergente, você perde a empatia, perde o próprio sentido da existência”, diz.

“Então eu fico muito animado em saber que muitos clubes brasileiros já têm suas torcidas, seus agrupamentos, seus coletivos antifascistas. Porque isso significa que o crescimento desses agrupamentos, em conhecimento, harmonia, pode levar a proteger o futebol”, conclui.

“A gente não sabe até onde vai o fascismo no Brasil. Ele pode ser derrubado amanhã, pode ser travestir de outras figuras. E a gente não sabe a importância que a gente vai ter nesse contexto”, diz Daniel, da Brigada Marighella. “É uma avenida que a gente não esperava que fosse ser aberta, mas já que abriu, a gente vai ter que desfilar.”

Vista da Arena Fonte Nova durante a partida entre Brasil e Venezuela pela Copa América. Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

Ao que tudo indica, o caminho a ser trilhado nesta “avenida” não será curto. Ao avançar na implementação do futebol moderno, as entidades que regem o futebol criam um campo fértil para a propagação da intolerância nos estádios. A primeira fase da Copa América, com ingressos caros, estádios vazios e público elitizado é um exemplo claro do desafio que os antifas têm pela frente.

Excluídos de uma festa cada vez mais VIP, sem ter o direito de se antepor aos gritos intolerantes que se evidenciam nas arquibancadas vazias das higienizadas arenas, assistem de longe o jogo que um dia foi muito mais popular. Para cidadãos e torcedores, o placar é adverso. Hora de pôr o time no ataque, em busca da vantagem no marcador. E quem é torcedor, sabe: “de virada é mais gostoso”.


Durante a Copa América, Puntero Izquierdo e Ludopédio publicam uma série de reportagens sobre a história e a atualidade da competição.

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André Carvalho

Jornalista esportivo e cultural com passagens por Folha de S.Paulo, Catraca Livre, Placar, HuffPost Brasil e UOL. Foi colaborador das revistas Carta Capital e Retrato do Brasil. Torcedor do Santos Futebol Clube e defensor da cultura popular brasileira. Tem por paixão e objetos de estudo o futebol e o samba.

Como citar

CARVALHO, André. As torcidas antifascistas de Salvador. Ludopédio, São Paulo, v. 120, n. 30, 2019.
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