118.4

Atlético x Zamora pela Libertadores: os diários viperinos de Miro

02 de abril de 2019, terça-feira

 

[…] En el hombre adulto la práctica del Diário equivale
a una supresión progresiva de la personalidad activa, social, de su autor.
En realidad un Diário equivale a un lento suicídio.

Gregorio Marañón.

 

Hoje, faz dezenove anos que minha mãe morreu. Ao tomar o café com leite diário lendo O Tempo, lembrei-me dela com saudade e decidi ir ao cemitério lhe ofertar flores, colhi dezenas de margaridas e rosas brancas no quintal. Refiz o altar do átrio da cozinha e acendi as velas. Cuidei dos gatos, varri a casa pela metade, fiz um spaghetti alla carbonara, na versão improvisada da receita que minha avó italiana preparava semanalmente para mamãe. Deixei a pia e fogão limpos, tomei banho, fiz anotações e preparei a mochila para sair. Tudo isso ao som daquelas músicas dos anos 1970 do Roberto Carlos, melancólicas, que eu ouvia com ela no programa de rádio Almoçando com o Rei.

Passei grande parte da tarde a caminhar. Primeiramente, fui ao Carlos Prates em busca da loja do sapateiro que um dia bem consertou meus calçados, ali pelos lados da Serpentina, rua em formato de S, que serpenteia. É a segunda vez que procuro essa loja e não obtenho sucesso. Será que é mais pelos lados da Pedro II? Às vezes, ando muito distraído.

Ao longo de todo o ano 2000, logo após a morte de minha mãe, eu peregrinava semanalmente por essas bandas, quando me juntava aos fiéis no Cemitério do Bonfim para rezar a Novena de Nossa Senhora do Rosário de Pompéia perante o túmulo da Irmã Benigna, bem próximo de onde a mãe repousa. Hoje, os restos mortais da “Santa da Salve Rainha” estão em Caeté, transferidos para o Santuário Nossa Senhora da Piedade, com o intuito de reforçar o processo de beatificação que tramita no Vaticano, pois, como consta do documento encaminhado, ela tinha força de intercessão para o alcance da graça nos casos mais desesperados.

Às tardes de segunda-feira, dia de minha folga no Estadual Central, era comum minhas longas descidas a pé pela Av. Nsa. Sra. de Fátima até o Bonfim. Apesar de ter sido um tanto incrédulo na vida, nunca neguei a força e o encanto dos ritos religiosos, e, desde os tempos de infância, sempre gostei de cemitérios. Em Vila Caraíbas, ao entardecer, a turma subia feliz da vida para jogar bola no lote ao lado do Cemitério Novo e descia correndo, entristecida, com medo de fantasmas e víboras viperinas que despertavam aos montes das catacumbas, diziam.

Um pouco depois das quatro, cheguei ao Bonfim, onde havia um cartaz informativo afixado no muro: “Fechado! O cemitério está infestado de cobras. Visitas somente a partir do Dia das Mães”. Abaixei a cabeça, cantei baixinho, conectei-me a minha mãe, e lacrimejei. Nessa hora, também pensei com força no jogo de vida ou morte que o Atlético terá amanhã pela Libertadores contra o Zamora, da Venezuela – da cidade de Barinas, nome indígena que significa vinho forte, soube hoje.

Por puro hábito, orei pedindo a Irmã Benigna coisas boas, ponderando sobre o momento difícil que vivem os dois países, desgovernados. Então, lancei para o outro lado do muro as flores para minha mãe, para o Galo, para os (p)residentes, em guerra, e para as cobras.

Saí margeando o cemitério à esquerda, recordando trechos de “Dias da serpente”, do TransmutAção, do BNegão. E a música foi se expandindo como um clarão a iluminar a estrada, momento no qual as letras fizeram todo o sentido, agindo no corpo inteiro.

a serpente
devorando a sua própria cauda
a serpente
um último impulso
o mais violento e devastador
circuito emocional negativo
espíritos vagando com ou sem seus corpos
à procura de um propósito
significado ou sentido

o momento do vento é forte
o momento de vento forte
dias da serpente.

Percorrendo a Caparaó, rua da sede oficial da Galoucura, considerei a possibilidade de adquirir ingresso para o jogo de amanhã, porém logo na entrada, um sócio da torcida organizada ao ser consultado sobre o assunto me disse:

– Cara, a gente não tem nada a ver com ingressos. Não chega nada aqui. Pra te dar a real, nem no paralelo, tá ligado?

– Uai, pensei que vocês tivessem direito a algumas entradas e pudessem comercializar uma parte delas…

– Velho! Na boa, em que planeta você tá? Desce daí, tá ficando maluco? Quem dera a gente tivesse essa moral com o clube, que a gente tivesse algum direito. A galera lá é muuuuuito cobra criada, tá ligado? A gente tá aqui nem sabe bem o porquê.

– Poxa, mas isso seria completamente viável. Vocês são o clube, a gente é o clube. Essa troca traria benefícios pra ambas as partes.

– Cara, a gente também acha, mas vai falar isso com eles… passa aqui outra hora e a gente conversa todo mundo junto. Agora, o pessoal tá aquecendo os tambores pra ensaiar a música do Djonga. A nova música do Galo, tá ligado? “Amigo, o Galo é doidô”!

– Tô ligado, eu tava no Mineirão na estreia dela.

– Aaaah, pois então, fica aí com a gente, velho, gostamos demais de você, quem sabe pode colaborar.

Fiquei na Galoucura por cerca de uma hora e meia, tomando cerveja e fumando tipos variados de erva, provenientes do Cafezal, do Santo Antônio, do Céu Azul e do Eldorado. Conversas ao pé do ouvido daqui e dali, gracejos, batuques e dancinhas, eu acabei embolsando dois ingressos. Geralmente, as pessoas são muito amorosas comigo por conta de eu usar uma prótese mecânica substituindo o membro superior esquerdo. E tomei a liberdade de gravar um trecho do ensaio da música.

Amigo, o Galo é doido.

Das batalhas sofridas,
torcer contra o vento, louco.

Nego, é o maior de Minas,
quem treme o estado todo.

Nego, somos sinistros,
somos Galoucura, doutor.

É o gigante do Horto.
          

 

Nada mais me aconteceu de novo neste dia senão que, andando a esmo já pelo Centro, ali pelos lados do Mercado Central, dei com uma mulher com uma serpente na calçada. Tomei muito susto, e as assustei também. Meia dúzia de pessoas estava próxima observando a cena incomum. Eu parei e fiquei imóvel atrás de um homem que a fotografava. A mulher olhou diretamente para mim, apanhou a cobra com uma das mãos se levantando do chão e a confinou numa bolsa, e disse:

– Eu preferiria não! Eu preferiria não! I would prefer not to! I would prefer not to!

Logo, o cara olhou para trás, apaziguando-me:

– Fica de boa, fica de boa… Ela fala isso direto com qualquer um e começa a falar em línguas, porque todo mundo só quer tirar as cobras dela…

Nesse momento, percebi outra inacreditável jiboia no ombro da mulher. E, como se o já companheiro lesse meus pensamentos:

– Ela tem mais uma jiboia em casa, ou está ali dentro daquela casinha. À noite, elas saem pra passear, moram naquele prédio, ali, ó.

– Como você sabe disso?

O aglomerado de gente brevemente se desfez e saímos juntos em direção à Praça Raul Soares. Ao longe, ainda ouvíamos ao fundo os seus gritos: “Pode cobrar, cobra de mim. Cobra de mim que eu sou serpente. Pode cobrar, pode cobrar, cobra de mim. Eia! Cobra! Cobra de mim, eu sou serpente”.

– Olha, isso parece que é da Rita Lee ou elas inventaram juntas? Eu disse mais descontraído, atravessando a rua, e rimos.

– Então: eu vejo essa mulher frequentemente. Às vezes, ela aparece por aqui com as cobras num carrinho de bebê. É conhecida como a Mulher da Cobra.

– Mas as cobras nunca picaram essa mulher? Elas não são venenosas?

– Váaaaaaaaaarias vezes! Ela é toooda picada! Dizem que são jiboias, mas acho que não são, jiboia não é venenosa?

– Caramba! Sei lá…!

– O pessoal do prédio já tentou expulsá-la de todo jeito. “Mas agora eu cortei o cabelo igual ao de homem, tô igual homem! E pintei de loiro”, disse imitando a criadora de serpentes. “Eles não vão mais me reconhecer. Quero ver mandar a gente embora”. Antes de você chegar, ela estava falando isso. Você a tirou do transe na calçada.

– E ela do meu. Eu estava andando muito distraído, voltando para casa já no piloto automático.

– Pra que lado você mora?

– Moro no Prado, na Rua Erê. É um pouco longe, mas vou subir a pé.

– Eu moro na Rua Perimetral, conhece? Podemos subir juntos a Av. Augusto de Lima até a Ituiutaba com Paraguassú. Eu viro à direita e você à esquerda… Como é seu nome mesmo, velho?

– Meu nome é Miro, o seu é?

– Redelvin, com ene no final.

– Olha, é o nome de um amigo do meu tio Belmiro. Redelvim, com eme, um anarquista que aparece muitas vezes em seus diários dos anos 1930 e 1940. 

– Ah, seu tio era escritor?

– Nada. Era um aspirante, um amanuense a serviço do Estado.

Caminhamos juntos comendo maçãs e levando um papo ameno até chegar ao ponto no qual nos despediríamos. Trocamos os números de telefone e pedi a ele que, quando pudesse, me enviasse as fotos da Mulher da Cobra. E continuei, sozinho, a cantarolar “Cobra Coral”, do Caetano e do Wally, até chegar a minha casa, onde toparia com gatos e não serpentes.

Para de ondular, agora, cobra coral:
a fim de que eu copie as cores 
com que te adornas, 
a fim de que eu faça um colar para dar 
à minha amada, 
a fim de que tua beleza
teu langor
tua elegância
reinem sobre as cobras não corais.

Já no meu quarto, de banho tomado, escrevendo e me preparando para dormir, as fotografias me foram enviadas. Ficaram ótimas. Levantei da cama excitado, imprimi as quatro fotos e as colo, abaixo, sequenciadas.

Fotografia: Sávio Leite.

 

Antes, enviei uma mensagem para o Redelvin, talvez um novo amigo. Nunca sabemos os contornos exatos de uma amizade.

– Cara, muito obrigado pelas fotos. Vc gosta de futebol? Quer ir ao jogo do Galo comigo amanhã no Mineirão? Me esqueci de te falar que eu tinha acabado de ganhar dois ingressos lá na Galoucura, como vc entrou no bonde… rs

– Ah, de nada, as fotos também são suas… Cara, não entendo nada de futebol. Você vai ficar na Galoucura? Tenho medo disso… lá tem cobras? kkkkk.

– Uai! Até tem… rs.  Vamos?

Passam das onze horas, o Cerro Porteño acabou de vencer o Nacional no outro confronto da chave do Atlético. Os paraguaios se isolaram na liderança com nove pontos, os uruguaios continuam com seis e os venezuelanos, como os mineiros, ainda não pontuaram. A situação é a pior possível. Um empate, amanhã, praticamente já elimina o Galo por antecipação das oitavas de final. Portanto, é preciso atacar sem piedade, com confiança em Luan e Cazares, nossos municiadores. Aliás, o craque equatoriano completará vinte e sete anos, mais um bom motivo para festejar.

Enfim, por aqui, tudo na mesma. Eu não joguei na cobra, porque não sei o Jogo do Bicho, e não ficarei rico nesta noite. Por enquanto, fecharei este diário e pedirei a intervenção da Irmã Benigna, a “Santa da Hora”, para apaziguar os espíritos viperinos, vilipendiosos, que andam afetando o mundo. Rezarei uma Salve Rainha.

Penso em minha mãe, penso nos venezuelanos, nos galos, nas serpentes… afago o gato, desligo a luz. E a escuridão invade o quarto.

Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve! A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A Vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei! E, depois desse desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto do Vosso ventre. Ó Clemente, ó Piedosa, ó Doce e sempre Virgem, Maria! Rogai por nós Santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Amém!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gustavo Cerqueira Guimarães

Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG. É graduado em Psicologia e Letras pela PUC-Minas. Autor dos livros de poesia Língua (2004) e Guerra (inédito). Desenvolveu pesquisa de pós-doutorado, PNPD-CAPES (2013-2018), sobre a relação do futebol com as artes na Faculdade de Letras da UFMG. Atualmente, é editor da revista FuLiA / UFMG

Como citar

GUIMARãES, Gustavo Cerqueira. Atlético x Zamora pela Libertadores: os diários viperinos de Miro. Ludopédio, São Paulo, v. 118, n. 4, 2019.
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