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Bárbara não só pode como é Barbosa

Marcel Diego Tonini 1 de agosto de 2021

Este texto foi pensado a partir da leitura da coluna do raro jornalista Juca Kfouri na Folha de S. Paulo, no último dia 25, intitulada “Bárbara não pode ser Barbosa”. O objetivo, de forma alguma, é polemizar, muito menos fazer uma crítica pessoal, a quem, aliás, sempre admirei e contribuiu no início de minhas pesquisas acadêmicas. Trata-se, ao contrário, de uma reflexão para todes nós sobre racismo através do que recorrentemente acontece no futebol. Em momento algum, sou ou quero ser dono da verdade. Feitas essas necessárias e respeitosas observações iniciais, vamos lá.

Bárbara antes de sua quarta Olimpíada. Foto: Divulgação/Sam Robles/CBF.

Bárbara, a goleira da seleção brasileira de futebol de mulheres, tem como sobrenome Barbosa, o mesmo de Moacyr, o primeiro goleiro a vestir a camisa 1 da seleção brasileira de futebol de homens em uma Copa do Mundo, a de 1950. Após a segunda partida de sua equipe nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, em empate com as holandesas por 3 a 3, ela voltou a ser comparada ao colega de profissão nascido há 100 anos. Ao contrário do sentido usual, isso é motivo de lisonja para qualquer guarda-redes.

A distância temporal e o racismo tentam apagar, mas é sempre tempo para lembrar que Moacyr foi o maior de sua geração entre os anos 1940 e 1950. Está, aliás, entre os maiores de todos os tempos, brasileiros ou não. Entre as razões, estão não apenas títulos e feitos inéditos, como o fato de ter sido o primeiro a conquistar um título sul-americano por um clube de futebol, mas qualidades como raciocínio rápido, arrojo, agilidade e elasticidade, em especial por sua altura considerada baixa para os padrões atuais, 1,74m. Somam-se a isso duas características peculiares de pessoas negras que ele teve mais do que qualquer outre: serenidade e resiliência.

Essa história poucos conhecem e reconhecem. Quase todos – neste caso, é pronome masculino mesmo, não todes – só se lembram dele como “o goleiro do Maracanazo”, o que é uma síntese representativa do racismo à brasileira, seja de forma escancarada para ultrajá-lo, seja de maneira dissimulada para identificá-lo. Valer-se dessa alcunha é continuar a tratá-lo como sinônimo de fracasso, a imputar-lhe uma culpa que ele jamais teve, a sentenciar sobre ele uma pena eterna, mesmo após 21 anos de sua morte, a insistir na narrativa racista, a tomar o todo pela parte, e a promover, enfim, um apagamento de sua vida e obra. Em tempo, Moacyr sentia orgulho de ser vice-campeão mundial, algo que, como ele mesmo dizia, os brasileiros não sabiam reconhecer, sobretudo no futebol. E continuam sem saber hoje, ainda que ume atleta conquiste medalha de bronze ou participação em Jogos Olímpicos.

Inclusive, a fim de conhecer outros Barbosas, para além de 1950 e do próprio Moacyr, recomendo veementemente a visitação à exposição temporária Tempo de reação – 100 anos do goleiro Barbosa, do Museu do Futebol, Estádio do Pacaembu, São Paulo/SP. Mais do que uma homenagem ao centenário do atleta e da efeméride dos 150 anos da criação da posição de goleiro, reflete-se sobre racismo e antirracismo, no passado e no presente, no esporte e na sociedade. “Tempo de reação” remete não somente ao movimento de defesa de um arqueiro diante de um chute do adversário, mas também ao momento atual de reagir frente a atos discriminatórios de todos os tipos, sobretudo os raciais.

Tempo de reação – 100 anos do goleiro Barbosa. Foto: Divulgação/Museu do Futebol.

Bárbara é Barbosa tanto por seu sobrenome quanto por ser a melhor de sua geração. Não fosse assim, não seria convocada para quatro Copas do Mundo (2007, 2011, 2015 e 2019) e quatro Jogos Olímpicos (2008, 2012, 2016 e 2020), entre tantas outras competições, com mais de 70 jogos com a camisa da seleção brasileira. Profissionalmente, destaca-se pela qualidade técnica, pela segurança no uso das mãos e dos pés, e por ser grande pegadora de pênaltis desde o sub-20. Do mesmo modo que outras mulheres futebolistas, é guerreira e tem personalidade, ainda mais no Brasil e por sua história de vida, cujos percalços enfrentados são comuns em trajetórias negres.

Tanto Moacyr quanto Bárbara – e não coincidentemente a ginasta Rebeca Andrade também – tiveram origens humildes, lidaram com a ausência do pai e lutaram para sobreviver antes de adentrar no esporte profissional. Se o campineiro, aos 14 anos, perdeu precocemente o pai devido a um coice de cavalo, a recifense, aos 10, viu o pai abandonar a família em decorrência do alcoolismo.

Apesar do sucesso esportivo, ambes tiveram e têm de conviver com críticas pesadas, seja por parte de alguns torcedores, seja por parte de alguns jornalistas, em geral homens, brancos, héteros, de classe média e letrados. Isso diz muito sobre a falta de empatia ou, pior, preconceito mesmo tido por aqueles que vociferam nas arquibancadas ou nas redes (antis)sociais, nas transmissões ou nas redações. E explica a maneira abjeta como o jornalista holandês Johan Derksen se referiu à brasileira após a referida partida. Bárbara também é Barbosa, portanto, infelizmente, pelo racismo que sofre. Para além disso, é vítima de xenofobia, lgbtfobia e machismo, explícita ou implicitamente.

Estamos no terceiro milênio, mas ainda ouvimos e lemos comparações descabidas e contraproducentes entre modalidades e corpos “masculinos” e “femininos”. Ainda temos de lidar com visões e leituras biologizantes, pseudocientíficas e “teorias” que argumentam em favor da diferença desses “polos”, como se não houvesse nada entre eles, ou mesmo fora deles. Isso porque a questão da diversidade foi tema principal da abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020…

Curioso que, ao contrário dessas pessoas, em nenhum momento, vemos uma futebolista sequer solicitando a diminuição do tempo, do campo ou das traves de jogo. O que elas reivindicam, aliás, é respeito, igualdade de tratamento e condições melhores para a modalidade.

De mão trocada, Bárbara voa para evitar o gol da China na estreia dos Jogos Olímpicos Tóquio 2020. Foto: Divulgação/Sam Robles/CBF.

Antes de qualquer crítica ou análise, é preciso olhar para a história do futebol de mulheres, sobretudo no Brasil. Aqui, elas ficaram proibidas de jogar entre 1941 e 1979. Somente em 1986 tivemos nossa primeira seleção, em 2013 – isso mesmo há 8 apenas anos! – organizamos o primeiro campeonato nacional, e tão somente no ano passado tivemos a criação do cargo de coordenadora de competições femininas da CBF – com Aline Pellegrino.

O ponto em debate não deveria ser o direito de poder criticar Bárbara por eventuais falhas de peso ou de atuação contra a Holanda, mas, sim, a falta de direito que uma mulher, brasileira, negra e lésbica tem de poder falhar, seja no esporte, seja na vida. Essa condição foi negada a Moacyr e tem sido negada a Bárbara.

A luta antirracista, feminista e pela diversidade nos ensina que o primeiro passo é exatamente o reconhecimento de quem somos, coletiva e individualmente. Para não alongar a discussão, basta dizer que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão após 388 anos, tem uma proporção de parlamentares mulheres absurdamente menor que Ruanda, Bolívia e Emirados Árabes Unidos, e conquistou pela 12ª vez seguida a “medalha de ouro” no assassinato de pessoas LGBTQIAP+ em todo o mundo. Só assim entendemos como temos genocidas no poder.

Eu, homem, cis, hétero, branco, letrado, de classe média etc. não tenho direito de dizer nem julgar, ainda mais publicamente, como Bárbara ou qualquer outro negre tem de reagir diante das críticas racistas, machistas, xenofóbicas, lgbtfóbicas, classistas, quer sejam elas intencionais e conscientes, quer não.

Apenas lembro, como diz o ditado, que a luta para os Barbosas tem de ser dobrada e constante diante de violências sem tréguas. Não serão feitos esportivos que aplacarão tais infelizes experiências. As vivências de Moacyr e Bárbara estão aí para provar. As réguas sempre são mais altas, os pesos, maiores, os ismos, perenes. Ainda mais no gol.

Força e resiliência, pois, como diz o poeta, “amanhã há de ser outro dia”!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. Bárbara não só pode como é Barbosa. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 2, 2021.
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