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A Batalha no Campeón del Siglo

Felipe Barbosa 3 de maio de 2017

Entre os palmeirenses que foram a Montevidéu existia uma grande preocupação com o trajeto até o novo estádio do Peñarol. O Campeón del Siglo fica a cerca de 20 km do centro da capital uruguaia, numa região isolada, pouco habitada e com poucas vias de acesso. O temor não se justificou. Fui para o jogo em um comboio de 4 vans, dois carros e um ônibus e não tivemos problema nenhum no caminho. Chegando ao estádio, tivemos que descer dos carros na beira da estrada, em frente à entrada do setor visitante, que fica ao lado da entrada pela qual ingressavam os torcedores carboneros que mais tarde entrariam em conflito com os palmeirenses. Na chegada, as duas torcidas se cruzaram sem problemas. O policiamento estava presente, mas em pequeno número.

Para entrar no estádio (foto 1), a torcida do Palmeiras precisava subir um barranco, passar por uma primeira triagem mostrando os ingressos, uma revista dos seguranças particulares do estádio e na sequência atravessar um ziguezague de grades alaranjadas, as mesmas que mais tarde foram transformadas em armas pelos torcedores adversários (foto 2). Esse ziguezague era cercado pelos dois lados por grades comuns com arame farpado no topo. Depois da catraca, havia cerca de 20 policiais equivalentes à tropa de choque monitorando a entrada da torcida. Só então os palmeirenses acessavam as escadarias que davam acesso às arquibancadas. Não existiam paredes ou novas grades depois da catraca, era um espaço aberto com a escada que dava acesso à arquibancada inferior e logo à frente, a escada para subir ao anel superior. Cerca de 2 mil palmeirenses foram ao jogo, e o espaço destinado aos visitantes deve comportar o dobro disso. Já nas arquibancadas, o que separava as duas torcidas eram duas grades, sem arame farpado no topo, com cerca de 10m de distância entre elas. Neste espaço, tanto no anel superior quanto no inferior, havia no máximo 10 funcionários responsáveis pela segurança, identificados pelos coletes laranjas (foto 3). Do outro lado, uma grade e um fosso separavam os palmeirenses do setor de cadeiras do Campeón del Siglo.

A principal Barra do Peñarol, a Amsterdam, fica do lado oposto ao setor visitante. Teoricamente seria um jogo tranquilo para os brasileiros, já que a principal organizada dos carboneros teria boa relação com a Mancha Verde. Ouvi relatos de torcedores da organizada palmeirense dizendo que os ônibus que saíram do Brasil chegaram a ser recebidos por representantes da Barra no estádio Centenário, ponto de encontro de alguns alviverdes antes da partida. E no jogo em São Paulo circulou a foto de alguns membros da Amsterdam na quadra da Mancha (foto 4).

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Foto 4 – Torcedores do Peñarol com palmeirenses antes do jogo em São Paulo (reprodução).

A Confusão

Antes da bola rolar, nenhuma provocação anormal, mas isso mudou ainda durante o primeiro tempo. Quando o jogo estava zero a zero, uma bomba arremessada por alguém do lado uruguaio estourou no ar, um pouco acima da torcida do Palmeiras. Houve silêncio, mas ninguém entendeu direito o que aconteceu. Os palmeirenses voltaram logo a cantar. A segunda explosão foi pouco depois do segundo gol do Peñarol. Desta vez, a bomba estourou no chão e provocou a ira dos palmeirenses. Os “comuns” se afastaram em direção à grade oposta ao setor de onde vieram as bombas, ficando perto do fosso que separava a torcida palmeirense do setor mais nobre do estádio. Ao mesmo tempo, muitos membros da Mancha correram em direção às grades, pressionando os seguranças do estádio para que tomassem uma atitude e trocando ofensas com os torcedores uruguaios. Depois de alguns momentos de discussão, a poeira baixou. A segurança, apesar do momento mais tenso, não foi reforçada no local e eles também não procuraram quem atirou as bombas.

O segundo tempo transcorreu sem maiores problemas. Com o apito final e o confronto dentro de campo, pelo menos mais uma bomba foi arremessada pela torcida do Peñarol (ver abaixo), desta vez revoltando os membros das organizadas palmeirenses que voltaram a correr em direção às grades de divisão das torcidas. Os primeiros objetos começaram a ser atirados nos palmeirenses pelos uruguaios.

Neste momento estava olhando a briga dentro de campo, e não vi quando os portões que separavam as torcidas e a área vazia entre elas foram arrombados. Quando olhei de novo, os brasileiros já estavam dentro do setor dos uruguaios, que correram para a parte superior da arquibancada. Dois ficaram para trás, caíram e apanharam dos palmeirenses. Veio a reação dos carboneros, e os brasileiros correram de volta para segurar a grade e o portão no espaço vazio que antes dividia as torcidas. Os torcedores que levaram bandeiras e faixas correram para salvá-las, prevendo uma confusão pior – esses materiais são “troféus de guerra” nas arquibancadas. Começou uma chuva de objetos. Garrafas de plástico, copos, pedaços de plástico e metal e garrafas térmicas usadas para a água quente do mate eram arremessados pelos uruguaios e devolvidos pelos palmeirenses. Essa parte da confusão na grade foi bem registrada pelas câmeras de TV, que mostram quando os carboneros tentam invadir a área dos visitantes por cima do anel inferior. Alguns pulam para o espaço vazio por trás dos seguranças, que agora estavam no topo da arquibancada (foto 5). Os próprios seguranças começaram a arremessar os objetos nos palmeirenses (foto 6) e a entregá-los aos torcedores do Peñarol para que agredissem os brasileiros (foto 7). Os responsáveis pela segurança no anel inferior colaboraram para a confusão e em nenhum momento tentaram conter os ânimos. No anel superior, diferente do que aconteceu embaixo, os seguranças seguraram o portão e impediram que as invasões acontecessem (foto 8).

Com a chuva constante de objetos, parte da torcida palmeirense correu para o anel superior, enquanto outros buscaram abrigo nas partes protegidas do anel inferior – principalmente dentro dos banheiros e atrás da lanchonete. Foi neste local que fiquei durante quase toda a briga. Comigo estavam muitos torcedores, incluindo idosos, crianças e mulheres que não conseguiam chegar à escada para subir ao anel de cima. Onde estávamos os objetos arremessados não chegavam, mas o perigo era real caso os torcedores do Peñarol invadissem o lado palmeirense. Estávamos praticamente encurralados, dali, a única saída seria pular no campo ou no fosso que nos separava de outro setor de torcedores do Peñarol (foto 9).

foto 09 - mostra o fosso separando a torcida visitante do setor mais nobre do estádio

Veio o segundo momento de confronto, mais sério e não registrado pelas câmeras de TV. Aqueles torcedores do Peñarol que pularam a grade por trás dos seguranças invadiram o setor palmeirense pela parte de cima da arquibancada inferior. Lá, membros das organizadas palmeirenses, principalmente da Mancha Verde e da TUP, conseguiram segurar os uruguaios à força. Começaram a aparecer barras de metal e tábuas de madeira – muitas com pregos – sendo usadas como armas (fotos 10 a 13).

Vi os primeiros torcedores feridos, com sangue no rosto e nas roupas.

O terceiro ponto de confronto foi o que deixou mais palmeirenses feridos. Na rua, os carboneros derrubaram as grades alaranjadas que serviam para controlar o acesso de palmeirenses e chegaram a ultrapassar a última cerca que os separava dos visitantes (foto 14 e vídeo do Twitter do Gabriel Santoro – ver abaixo) .

Do lado de fora também vinha uma chuva de pedras, garrafas de vidro, cacos e garrafas térmicas. Como o espaço era desprotegido, os objetos atingiram os palmeirenses que seguravam os uruguaios pelo lado.  Para conter o ataque, os brasileiros montaram no topo da escada uma barricada com as grades laranjas e os restos de uma tenda de madeira que antes do jogo vendia doces e salgadinhos. Enquanto a parede do fundo virou a barricada, pedaços de madeira viraram armas (fotos 14 e 15).

Muitas garrafas de vidro e pedras atingiam em cheio a escada de acesso à arquibancada superior, ferindo muitos torcedores que tentavam fugir do confronto. As garrafas estouravam na escada e os estilhaços atingiam as pessoas que estavam fora do confronto. Ao meu lado, um menino de uns 13 ou 14 anos bota a mão no rosto e fala  “pai, tá doendo, pegou alguma coisa aqui”. O pai pede para ver o rosto do menino e tenta tranquilizá-lo dizendo que não era nada. Mas muito sangue escorria logo abaixo do olho do garoto. Ali perto, também vi um idoso com o nariz cortado e sangrando.

Mais tarde, ouvi de organizados que alguns torcedores do Peñarol chegaram ao topo da escada de acesso, mas dali não passaram graças aos membros das organizadas do Palmeiras que resistiram.

Tudo durou entre 15 e 20 minutos. Foi quando a polícia entrou em ação. Vi o ataque deles aos torcedores do Peñarol que estavam no setor visitante enquanto palmeirenses corriam de volta para as arquibancadas. Temi que depois os policiais viessem para cima de todos nós, mas não aconteceu. Consegui finalmente subir para o anel superior, as coisas se acalmaram e começou o atendimento aos feridos. Vi pelo menos duas duplas de socorristas atendendo e fazendo curativos nos palmeirenses machucados.

Ficamos cerca de uma hora e meia dentro do estádio, esperando que todos os torcedores do Peñarol deixassem a área. Os rastros da batalha estavam espalhados por todos os lados: mulheres desmaiando, pessoas vomitando, torcedores ensanguentados, objetos usados como armas espalhados pelo chão, crianças apavoradas. Quando fomos liberados, havia cápsulas de balas de borracha na rua. Muitos  palmeirenses que tinham ido ao estádio de táxi ou uber e combinado o retorno com os motoristas acabaram ficando sem como voltar pra casa. A minha van, por exemplo, deu carona para pai e filho que ficaram para trás. Para voltar a Montevidéu, os grupos de palmeirenses foram escoltados pela polícia até o centro da capital.

Sobre a falta de ação da polícia, ouvi o relato de um palmeirense que na hora em que a briga estourou correu para as catracas, onde estavam policiais da tropa de choque desde o início do jogo. Ele implorou para que os policiais separassem a confusão, mas ouviu que no Uruguai a regra é que eles não podem entrar no estádio, atuam somente na rua, ficando a segurança a cargo de empresas particulares contratadas pelos clubes. Eles precisariam de uma ordem superior para agir. Mas no caso da segurança falhar e se mostrar completamente ineficaz, não seria o momento de usar o bom senso e intervir? Os palmeirenses invadiram o setor adversário primeiro, mas isso teria acontecido se não fossem as três bombas que entraram no estádio e foram atiradas pelos uruguaios nos brasileiros?

A ineficácia da segurança no estádio, aliada à demora na ação da polícia quase transformaram a noite de um jogo memorável em mais um episódio trágico do futebol sul-americano.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Felipe Barbosa

Jornalista

Como citar

BARBOSA, Felipe. A Batalha no Campeón del Siglo. Ludopédio, São Paulo, v. 95, n. 4, 2017.
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