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O Bayern de Munique, a resistência ao nazismo e o resgate da memória

Copa Além da Copa 2 de novembro de 2020

Poucos clubes no planeta são tão poderosos quanto o Bayern de Munique: atual campeão europeu, venceu também as últimas oito edições da liga alemã. Mais do que colecionar títulos, tem prestígio suficiente para que sua marca se confunda com o próprio futebol.

Mas esse é um domínio recente: após ser campeão alemão em 1932, o clube bávaro só voltaria a sentir o gosto da glória nacional na temporada 1968-69. Houve uma época em que o Bayern era sinônimo de sobrevivência e de resistência, não de títulos.

De origem judia, hoje o clube busca não só seguir trilhando o sucesso absoluto dentro de campo, mas também resgatar o seu passado de luta contra o nazismo. Em tempos de levante da extrema-direita, essa é uma história que precisa ser contada.

Esse texto é um complemento ao Copa Além da Copa de novembro, sobre jogadores que enfrentaram ditaduras. Para escutá-lo, clique aqui!

Um clube de origem judia

Na ata de fundação do Bayern de Munique, em 1900, dois dos dezessete signatários eram judeus (um deles, o famoso escultor Benno Elkan). A influência judaica cresceu rapidamente, e menos de uma década depois, em 1910, Kurt Landauer chegou à presidência do clube.

O Bayern de Landauer passou a ter um número cada vez maior de judeus em seu alto escalão. Ele ficou muitos anos à frente do clube e se destacou por sempre contratar técnicos também de origem judaica. O mais célebre deles foi Richard Dombi, com passagens importantes por Barcelona e Feyenoord.

Placa perto da Arena Allianz em homenagem a Kurt Landauer. Foto: Wikipedia.

A presença de Landauer e de outros judeus na direção e no corpo técnico fez com que o Bayern fosse considerado um “judenklub” pelos nazistas. Estava marcado o começo da perseguição.

Em 1932, Landauer foi obrigado a deixar o comando do Bayern e, mais tarde, em 1938, foi preso pelos nazistas. Após trinta e três dias em um campo de concentração, conseguiu fugir para a Suíça, onde passou o restante do período da Segunda Guerra Mundial. Apenas um outro membro de sua família sobreviveu ao Holocausto.

A resistência durante a guerra

Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, o Bayern de Munique já demonstrava seu posicionamento contra o nazismo. Kurt Landauer e os demais judeus haviam sido removidos do clube, mas a subserviência a Adolf Hitler não aflorou.

O primeiro episódio de confronto ao nazismo aconteceu em 1934, quando os jogadores do clube se envolveram em uma grande briga contra os camisas marrons, grupo paramilitar que era visto como “o futuro exército” por Hitler. Dois anos depois, o jogador Willy Simetsreiter causou extremo desconforto na cúpula do esporte alemão ao tirar fotos com Jesse Owens, o homem que envergonhou o nazismo nas Olimpíadas de Berlim.

Sigmund Haringer, zagueiro que disputou a Copa do Mundo de 1934, quase foi preso por chamar um desfile de bandeiras nazistas de “teatro infantil”. Os jogadores do Bayern, com destaque para Conny Heidkamp, o capitão da equipe, recusaram-se a doar seus troféus e medalhas para o governo, que queria derretê-los para ter mais dinheiro para todo o aparato da guerra.

É preciso mencionar que, antes da ascensão do nazismo ao poder, o Bayern de Munique era um clube profissional, mas foi obrigado a voltar ao amadorismo com o banimento do esporte como profissão pelos nazistas. Isso fez com que seus principais jogadores fossem para países vizinhos.

Ainda durante a Segunda Guerra Mundial, aconteceu o que seria o maior ato de resistência daquele Bayern de Munique. E foi um ato ligado justamente ao seu ex-presidente Kurt Landauer.

Durante uma excursão à Suíça, o Bayern de Munique fez um amistoso contra a seleção nacional do país vizinho. Ali, nas tribunas, Landauer finalmente poderia voltar a ver o seu querido clube, o qual presidiu por tantos anos, de perto.

E o apreço era recíproco: o Bayern não fez naquele dia a saudação nazista, mas sim uma saudação a Landauer, que o assistia. Todos os jogadores cumprimentaram o ex-presidente que havia posicionado o clube contra o nazismo. Esse posicionamento estava, enfim, completo.

Os nazistas no rival

Evidentemente, o Partido Nazista não ficaria de braços cruzados ao ser desafiado pelo Bayern. A resposta, então, foi financiar o grande rival local do clube, o TSV 1860, também de Munique.

Assim, o clube passou a ter uma excelente infraestrutura, com campos de treinamento de alta qualidade para a época, além de ajuda para gerir os jogadores, que precisavam passar pelo serviço militar.

Altamente centralizador, o regime nazista acabou com o campeonato alemão como era conhecido até então, e introduziu as Gauligas, 16 ligas regionais por todo o país. Na Gauliga da Baviera, o 1860 obteve grande êxito, sendo vice em 1934, 38 e 39, e conquistando o título em 1941 e 43.

Além disso, o clube conquistou uma Copa da Alemanha sobre o forte Schalke 04 em 1942. Já o Bayern, nesse período, lutava apenas pela sobrevivência. O clube se apequenou a ponto de, no início da década de 1960, quando foi formada a Bundesliga, campeonato profissional alemão, não ser convidado para participar.

E quem estava lá, representando Munique? O 1860, é claro.

Reencontrando o passado

Mas, se hoje a sociedade alemã é considerada um exemplo para o resto do mundo no que diz respeito a lidar com o próprio passado autoritário, nem sempre foi assim. A Alemanha Ocidental, na qual a região da Baviera e a cidade de Munique estavam inseridas, só passou a olhar para o passado de forma mais clara no final da década de 70.

E o Bayern se reergueu dessa forma, sem olhar para trás, especialmente a partir da segunda metade dos anos 60, quando formou uma geração dourada, representada pelo goleiro Sepp Maier, pelo zagueiro Franz Beckenbauer e pelo atacante Gerd Müller. Eles inauguraram uma era vencedora do clube que perdura até hoje.

Sepp Maier, Franz Beckenbauer e Gerd Muller em 1967. Foto: Wikipedia.

Mas por que então o Bayern não recuperou suas origens judaicas e de resistência ao nazismo antes? Afinal, Kurt Landauer retornaria à Alemanha após a guerra, e ainda voltaria a ser presidente do clube entre 1947 e 1951. Mas seu legado foi propositalmente esquecido.

Por anos, a palavra “judeu” foi evitada na comunicação oficial do clube. Quando recontava sua história, por exemplo, o Bayern dizia que Landauer tinha deixado o país naqueles anos por razões “políticas e raciais”, sem especificá-las.

De acordo com uma entrevista de Fritz Scherer, um dos cartolas do clube, ao jornal britânico The Guardian em 2012, havia um receio de “reações negativas” ao falar abertamente sobre essas questões. Na virada do século, porém, e especialmente nos últimos 10 anos, as coisas mudaram.

O Bayern atual

Hoje, há uma placa com o nome e com a história de Kurt Landauer ao lado da Allianz Arena, o espetacular estádio do Bayern. É um contraste curioso entre o passado de luta e o presente grandioso do gigante da Baviera.

Mas o reconhecimento do clube às raízes judaicas vai além: hoje, o nome de Landauer é celebrado pelos ultras do Bayern, com o CEO da equipe, Karl-Heinz Rummenigge, tendo declarado-o como “o pai do Bayern de Munique moderno”.

Além disso, no museu da arena bávara, os anos de Landauer à frente do clube hoje são destacados, sendo uma atração para torcedores de longa data do Bayern, que antes pouco sabiam sobre a história antinazista da própria equipe.

E o Bayern ainda doou, em 2010, dinheiro para a construção de um campo com o nome de Kurt Landauer para o TSV Maccabi Munich, um clube amador da comunidade judaica na cidade. A cancha foi inaugurada com um amistoso entre o time da casa e uma equipe de estrelas da história do Bayern.

Goretzka durante treinamento do Bayern de Munique em 2019. Foto: Wikipedia.

Aliás, entre os astros do elenco atual da equipe, está o meia Leon Goretzka. Fora dos campos, Goretzka já se demonstrou preocupado pelo crescimento da extrema-direita, que, no contexto alemão, ocorre por meio do partido Alternativa para a Alemanha, mais conhecido pela sigla AfD.

Com receio do negacionismo do Holocausto, Goretzka organizou uma campanha em 2020 para levantar fundos para o memorial do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, que teve que fechar as portas temporariamente devido à pandemia.

Entre Landauer e Goretzka, o Bayern parece ter encontrado uma forte identidade.


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Como citar

COPA, Copa Além da. O Bayern de Munique, a resistência ao nazismo e o resgate da memória. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 3, 2020.
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