144.18

Bebeto Odisseu e a nau rubro negra de 1987

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 9 de junho de 2021

A crônica de hoje faz menção, novamente, à tradição helênica e traz como figura Odisseu – também conhecido pelo nome de Ulisses. Odisseu é protagonista da conhecida “Odisseia”, um poema épico assinado por Homero. Quem contracena com Odisseu neste escrito é Bebeto, ele que foi uma das estrelas daquela constelação de craques do Flamengo, que conquistou o título brasileiro de 1987. Bebeto se tornou ídolo da nação neste idílico ano, tendo sido protagonista daquela conquista ao marcar gols importantes em momentos decisivos do certame.

A Odisseia é uma obra literária que narra a batalha de Odisseu que, ao assumir para si a autoria da vitória dos gregos sobre os troianos, desagrada ao Deus olimpiano Poseidon. Ao assumir ser autor da vitória sobre os gregos, Odisseu está a desdenhar da influência dos deuses sobre as destinações humanas, fato este que enfureceu Poseidon. Não é postura adequada a nenhum devoto atribuir a si as conquistas, pois tudo que lhe é dado é fruto da destinação de um ser superior benevolente. Por consequência, o deus dos mares fica furioso com Odisseu e lhe agoura um fim trágico: Poseidon promete fazer com que Odisseu se perca em sua viagem náutica e nunca mais consiga retornar à sua cidade, Ítaca, onde lhe esperam sua esposa, Penélope, e seu filho, Telêmaco. O deus dos mares, então, prepara várias armadilhas para impedir que a nau de Odisseu atraque em sua cidade de origem. O romance de Homero é a narrativa dessa viagem de Odisseu tentando retornar à sua casa.[1]

Odisseu
Odisseu na gruta de Polifemo, por Jacob Jordaens, século XVI. Museu Pushkin. Fonte: Wikipédia

O episódio fundador da vitória dos gregos ante aos troianos é a construção de um grande cavalo de madeira, obra astuta idealizada por Odisseu, como arma de guerra para penetrar, não pela força, mas pela inteligência, os muros troianos. O exército grego construiu este grandioso artefato de madeira e o deixou nas portas da cidade de Tróia, como suposto presente aos troianos, que simbolizava a desistência dos gregos frente ao combate. O rei de Tróia pede que os portões da cidade sejam abertos e que o cavalo seja trazido para dentro. Esse era oco em seu interior e lá estavam escondidos Odisseu e seus soldados. Já nos limites internos dos muros troianos, o exército de Odisseu salta do interior do “presente grego” e aniquila os inimigos, saqueando e incendiando a cidade rival. Esta gigante obra de madeira ficou conhecida como “Cavalo de Tróia”.

Estratégia semelhante aconteceu nas semifinais do Campeonato Brasileiro de 1987, no confronto entre Flamengo e Atlético Mineiro. Bebeto foi tão astuto como Odisseu para com Zico, Renato Gaúcho, Zinho, Andrade e Aílton adentrar as muralhas da zaga atleticana e vencer os dois jogos daquelas semifinais. Com um esquema tático “equino troiano”, o exército rubro-negro aniquila o galo mineiro com gols de Bebeto nos dois jogos. No jogo de ida, no Rio de Janeiro, Bebeto fez o gol da partida tirando a invencibilidade do time de Telê Santana naquele campeonato: Flamengo 1 x 0. Também foi dele o segundo dos três na vitória do Mengão em pleno Mineirão: Atlético-MG 2 x 3 Flamengo. Após estar vencendo por 2 x 0, o Flamengo volta para o segundo tempo e deixa empatar o jogo. O galo precisava só de mais um gol para avançar às finais, mas a “máquina de guerra” do Flamengo entra em ação. Renato Gaúcho, numa arrancada “cavalar” do meio de campo após enfiada de bola de Aílton, dribla o último homem da zaga do galo e o goleiro João Leite para fechar o placar. As muralhas do Mineirão vão abaixo e o Flamengo saqueia o coração de mais de cem mil atleticanos presentes no estádio.

Na viagem de retorno à sua terra, Odisseu outra vez desafia e desdenha de Poseidon, quando, por uma estratégia astuta, consegue enganar o filho do citado deus, o ciclope Polifemo. Odisseu e seus companheiros, no caminho de volta para a casa, invadem a terra dos ciclopes e adentram a caverna de Polifemo. Após oferecerem vinho ao ciclope, fazendo com que ele dormisse, Odisseu e seus companheiros, conforme um plano arquitetado pelo primeiro, furam seu único olho. Justamente por consistir em um plano, Odisseu pensou antes e revelou ao seu inimigo uma identidade falsa, denominada “ninguém”, como se fosse esse seu nome. Ao gritar de dor após ter o olho vazado, Polifemo berra aos outros ciclopes que “ninguém” furara seu olho, sendo jogado no campo da palavra e da linguagem, o que faz com que os outros ignorassem o ciclope ferido, permitindo a fuga de Odisseu rumo a seu barco, que deveria seguir até Ítaca. Contudo, não contente com seu feito, à distância, Odisseu revela ao ciclope sua verdadeira identidade, anunciando seu nome. Enfurecido, Polifemo arremessa uma rocha contra a embarcação. Mais uma vez, o protagonista homérico assume uma autoria astuta pela sua façanha.

Outra vez também o Odisseu Bebeto assume protagonismo, nas partidas finais do campeonato brasileiro contra o Internacional de Porto Alegre, empurrando a bola para o barbante nos dois jogos. No trajeto rumo ao título, o Flamengo “atraca sua embarcação” às margens do Guaíba e adentra à “caverna” do Inter. Ali Bebeto marca no empate em 1 x 1 no gigante da Beira-rio, no primeiro jogo da final. Com tal resultado os colorados chegaram “cambaleando” para a final no Maracanã: este era o plano da “nau de Bebeto Odisseu”. Na final, Bebeto “vaza o olho do Polifemo Taffarel”! É dele o gol do título no Maracanã – Flamengo 1 x 0 Internacional. Os ciclopes colorados caem vencidos e Bebeto deixa seu “nome” eternizado no panteão da Gávea. Ou seja, o gol e o título de campeão brasileiro tira de Bebeto a condição de ser um “ninguém”.

Flamengo 1987
Fonte: Reprodução Placar

Bem, você leitor já deve estar curioso para saber se Odisseu conseguiu retornar a Ítaca e reencontrar sua esposa e seu filho. Sim, ele chegou, mas demorou um pouco: ele só consegue retornar alguns anos mais tarde. Fazendo um paralelo com Bebeto, a Copa do Mundo FIFA de Futebol de homens, em 1994 foi, certamente, o ápice da carreira do jogador, e a dupla com Romário renderia ao Brasil um título que não vinha desde a Copa de 1970. Na semifinal daquele mundial realizado nos EUA, Bebeto ao fazer um dos gols contra a Holanda, comemora com um emblemático “balanço de ninar bebê” em homenagem ao nascimento de seu filho Mattheus.[2] Ao final da batalha do mundial de 1994, Bebeto Odisseu retorna ao Brasil com a taça de campeão do mundo e reencontra sua esposa Denise, segurando, por primeira vez, o pequeno Mattheus em seus braços.

O soteropolitano Bebeto saiu das categorias de base do seu time do coração, o Vitória da Bahia, para ser jogador do Flamengo. Chegou na Gávea em 1983 e ficou por lá até o ano de 1989. Em 1996 Bebeto ainda teve uma curta (e tímida) passagem pelo Flamengo. Pelo rubro-negro carioca, tornou-se o sétimo maior artilheiro da história do clube com 149 gols em 307 jogos. Bebeto foi bicampeão brasileiro pelo Flamengo (1983 e 1987) [3] e campeão carioca em 1986. Em 1989 Bebeto participa de uma das mais controversas transferências do futebol brasileiro: sai do Flamengo e vai jogar no arquirrival Vasco da Gama[4], onde conquista o brasileiro daquele ano.

Sua estada no Vasco e os jogos contra o Flamengo nos fazem rememorar o episódio da passagem de Odisseu pela temida ilha habitada pelas sereias. No seu retorno a Ítaca, a embarcação de Odisseu tinha que passar próximo a uma ilha habitada por sereias. Tais seres mitológicos entoavam um divino som para atrair os marinheiros que ali passavam, e quando eles se aproximavam delas, enfeitiçados pela melodia de seu canto, elas os chacinavam. O “canto da sereia” é metáfora perfeita à torcida do Flamengo. O adversário que chega ao Maracanã e ouve “o canto da Nação” já sente o cheiro da “morte” no seu entorno. Tal como na Odisseia de Homero, o “canto” aqui é alegoria perigosa, pois representa aquilo que seduz e arrebata.

Sabedor da magia e dos perigos do canto das sereias, Odisseu elabora um plano, qual seja, ele tapa com cera os ouvidos dos seus marinheiros, mas antes pede para ser amarrado ao mastro do navio para ouvir seguro o coro das sereias. Assim, a embarcação passa ilesa: os marinheiros não ouvem as sereias; Odisseu, por sua vez, as ouve, mas não vai até elas, pois está atado. Quando Bebeto entrava em campo para jogar contra seu antigo time, vinha sempre com os ouvidos tapados, pois o “canto da Nação” sempre lhe devolvia os encantos da época em que preso ao mastro da nau rubro negra ouvia a melodia mais linda de sua vida: “Mengooooo…”. E, ele, no entanto, não sucumbia!

 

Notas

[1] Por isso que o termo “Odisseia” é comumente utilizado para fazer menção às mais variadas aventuras/viagens repletas de situações dramáticas.

[2] O filho de Bebeto cresceu nas categorias de base do Flamengo conquistando vários títulos importantes nas divisões menores, sendo o mais emblemático deles a Copa São Paulo de Futebol Junior de 2011. Como profissional, Mattheus conquistou o Campeonato Carioca de 2014 pelo Mengão.

[3] Em 1983 Bebeto jogou uma única partida no campeonato brasileiro, justamente a final contra o Santos, vencida pelo time rubro-negro pelo placar de 3 x 0.

[4] No Brasil, além de atuar nos times de Flamengo e Vasco, Bebeto também jogou pelo Vitória (BA), Cruzeiro e Botafogo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Bebeto Odisseu e a nau rubro negra de 1987. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 18, 2021.
Leia também:
  • 177.17

    O Ninho: Vivendo e morrendo Flamengo

    Eduarda Moro, Alexandre Fernandez Vaz
  • 177.5

    Sob a guarda de Ogum: a luta de Stuart Angel contra as demandas da ditadura

    Fabio Zoboli, Perolina Souza
  • 175.9

    Flamengo x Vasco 1999: a origem do ‘vice de novo’

    Gabriel de Oliveira Costa