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Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol: os textos sobre futebol de Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade é reconhecidamente um dos maiores poetas de nossa literatura. Tal reconhecimento se dá, em primeiro ponto, pela importância de sua obra e pela variedade temática de sua poesia, sendo importante poeta na formação de muitos dos que o sucederam. Em segundo, destaca-se o volume de sua produção literária, iniciada ainda antes de seu primeiro livro, com publicações em periódicos de variada natureza[1], sem contar a constante atividade de publicação de livros, começando com Alguma poesia, publicado em 1930, indo até considerável publicação de livros póstumos. Tal produção, que se estende ao longo do século XX, faz com que Silviano Santiago (2003) o considere um poeta que acompanha o andamento de seu tempo, percebendo as tensões e mudanças do seu trabalho ao longo do século.

Santiago (2003) faz tal referência a partir da divisão temporal do século XX proposta por Eric Hobsbawm em seu livro Era dos extremos (1996). O historiador inglês pensa que

“[…] a estrutura do Breve Século XX parece uma espécie de tríptico ou de sanduíche histórico. A uma Era de Catástrofe, que se estendeu de 1914 até depois da Segunda Guerra Mundial, seguiram-se cerca de 25 ou trinta anos de extraordinário crescimento econômico e transformação social, anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro período de brevidade comparável. Retrospectivamente, podemos ver esse período como uma espécie de Era de Ouro, e assim ele foi visto quase imediatamente depois que acabou, no início da década de 1970. a última parte do século foi uma nova era de decomposição, incerteza e crise – e, com efeito, para grandes áreas do mundo, como a África e a ex-URSS e as partes anteriormente socialistas da Europa, de catástrofe. À medida que a década de 1980 dava lugar à de 1990, o estado de espírito dos que refletiam sobre o passado e o futuro do século era de crescente melancolia fin-de-sciècle. Visto do privilegiado ponto de vista da década de 1990, o Breve Século XX passou por uma curta Era de Ouro entre uma crise e outra, e entrou num futuro desconhecido e problemático, mas não necessariamente apocalíptico”. (HOBSBAWM, 1996, p.15-16).

Dentro de tal perspectiva, Carlos Drummond de Andrade viveu esse século em sua completude. Nascido em 31 de outubro de 1902, viu ainda criança o início do século em 1914 e acompanhou-o em seu declínio na década de 1980, vindo a falecer em 17 de agosto de 1987. Não só como ser de seu tempo, esse tempo que ele poetiza como sendo sua matéria no poema “Mãos dadas”,  o poeta manteve-se atento ao cotidiano do século. Seu contato com o cotidiano se fez na ordem das pessoas, preocupado com a relação dos seres consigo mesmos, uns com os outros e com o mundo, a que ele chamou “caduco”.

No decurso da vida do poeta, Silviano Santiago percebe um conjunto de momentos e de manifestações poéticas. Ao longo de sua atividade literária, temos variado comprometimento de Drummond com as tensões de seu tempo. No início de sua trajetória na poesia, período que inclui seus primeiros livros, percebemos um poeta inquieto e preocupado com a estética modernista, com poemas engajados de forma profunda com o planejamento estético defendido pela geração literária de 1922. Em seguida, à medida que se aprofundava sua relação política com o Partido Comunista e seu aprofundamento ideológico do pensamento do campo da esquerda, a produção de poemas ganhava uma tensão política mais profunda, culminando no livro A rosa do povo, de 1945. Na sequência de sua trajetória, depois de certo desencanto ideológico, a poesia de Drummond segue percurso mais profundo, voltando-se para questões mais filosóficas e retomando determinados gêneros poéticos, como o soneto e os versos mais tradicionais. É dessa trajetória os livros Claro enigma, A vida passada a limpo, Lição de coisas e Fazendeiro do ar. Em seguida, Drummond já se encaminha para uma trajetória poética mais memorialística na trilogia Boitempo e parte, dali em diante, para pensar o corpo e o amor em textos de sua última produção, como os poemas de Amar se aprende amando, Corpo, e Amor natural (póstumo). Farewell, de 1996, fecha o percurso poético de Drummond (SANTIAGO, 2003, p. IV)[2].

Para Antonio Candido, a experiência política do poeta propiciou a ele um aprofundamento da consciência do outro, superando o pitoresco e o anedótico na fixação com a vida de todo dia, ampliando a capacidade de o poeta “apreender o destino individual na malha das circunstâncias” (CANDIDO, 1995, p. 128), o que fez dele um excelente cronista de jornal (com vasta produção em prosa), atento às muitas situações sociais por que passava o Brasil e o mundo naquele tempo.

Foto: Wikipédia

Por ser um poeta de produção de fôlego, quase todos os temas figuraram em sua poesia. Há poemas de Drummond sobre a Segunda Guerra Mundial – como o famoso poema “Carta a Stalingrado” (lido por Luís Carlos Prestes na cadeia[3]), poemas sobre o cotidiano do Rio de Janeiro, como os “Inocentes no Leblon” ou “Verão Carioca 73”, um poema sobre a prisão de Nara Leão pelo regime militar, intitulado “Apelo”, seus muitos poemas sobre o amor, sobre Minas Gerais, sobre o contato dos seres uns com os outros, muitos poemas sobre o tempo e a relação que temos para com ele. Além desse variado conjunto de temas, há na produção de Drummond um conjunto de textos sobre futebol, esse esporte que Hobsbawm considerou como aquele  “que o mundo tornou seu”, por ser “simples e elegante, não perturbado por regras e/ou equipamentos complexos e que podia ser praticado em qualquer espaço aberto mais ou menos plano (HOBSBAWM, 1996, p. 197)”.

Carlos Drummond de Andrade nunca foi um cronista esportivo no sentido estrito do termo, como é o caso, por exemplo, na literatura, de Nelson Rodrigues – talvez o escritor que, juntamente com Roberto Drummond, mais escreveu sobre futebol no século passado. As crônicas e os poemas de Drummond sobre futebol são resultado da sua atividade regular em colunas de jornais, exercício que manteve por praticamente toda a vida de escritor. Nas páginas dos jornais, a variedade de escritas do poeta tinha espaço garantido, mantendo com o público leitor – em especial o público carioca – uma contínua relação de publicações de variada abordagem.

A atividade de jornalista sempre foi importante ao poeta. Tendo começado ainda muito jovem no jornalismo, publicando um jornal manuscrito no colégio, depois organizando textos de crítica literária para o Minas Gerais e chegando a organizar uma revista literária em Belo Horizonte, foi nos jornais regulares que esse trabalho ganhou maior fôlego, em especial no Jornal do Brasil, periódico em que Drummond atuou por maior tempo. O poeta acreditava que o jornalismo era prática fundamental a quem tem a intenção de ser escritor:

“O jornalismo é escola de formação e de aperfeiçoamento para o escritor, isto é, para o indivíduo que sinta a compulsão de ser escritor. Ele ensina a concisão, a escolha das palavras, dá a noção do tamanho do texto […] . Em suma, o jornalismo é uma escola de clareza de linguagem, que exige antes clareza de pensamento. E proporciona o treino diário, a aprendizagem continuamente verificada. Não admite preguiça, que é o mal do literato entregue a si mesmo. O texto precisa saltar do papel, não pode ser um texto qualquer. Há páginas de jornal que são dos mais belos textos literários. E o escritor dificilmente faria se não tivesse a obrigação jornalística”. (ANDRADE, 2008, p. 37)

No Jornal do Brasil, então, boa parte da produção literária do poeta foi publicada. O número de textos publicados é bastante considerável e, até o presente momento, nem todos foram, efetivamente, organizados para publicação em livros. Porém, no que diz respeito aos textos sobre futebol, Luís Maurício Graña Drummond e Pedro Augusto Graña Drummond organizaram as colunas esportivas no livro Quando é dia de futebol, publicado inicialmente pela editora Record em 2002 e atualmente publicado pela Companhia das Letras.

A recolha desses textos mostra um poeta e cronista atento ao futebol como a todos os elementos da vida do país. Os textos mostram um panorama do poeta diante do espetáculo. O futebol, como é comum em seus poemas e crônicas, não está desligado de um cenário mais complexo de situações. É parte estruturante da vida das pessoas, ou de boa parte delas, e essa atenção ao particular, ao detalhe, em especial da relação do torcedor com o futebol, é o que mais chama a atenção.  

Como exemplo das relações complexas que pensa Drummond sobre o futebol destaco uma sobre uma fala de Dario. A crônica foi publicada no Jornal do Brasil em 17 de agosto de 1971 e intitula-se “Falou e disse”. O texto, inicialmente voltado à implicância de seu autor com relação às frases célebres, muitas vezes usadas sem a espontaneidade necessária, tornando-se sem sentido e desusuais, acaba se confrontando com o uso feito por Dario numa entrevista. Em dado momento da crônica, comenta Drummond:

[…]

Pretendo apenas confessar que, não obstante minha alergia a frases lapidares, fui invadido por algumas palavras ditas em São Paulo, que me deslumbraram. Pronunciou-as um homem simples, no campo de futebol. Refiro-me a Dario, atacante do Atlético Mineiro, também conhecido por Peito de Aço e Pluto (o segundo apelido lhe teria sido dado por Gérson). Dario é antes força da natureza do que um pensador desses que irradiam da Europa ou da América do Norte, para universo, verdades supostamente definitivas, que não duram o tempo de uma geração. Dele se exclui qualquer intenção crítica ou filosófica. Jogou no seu time contra o Corinthians e saiu-se bem. Terminado o jogo, repórteres o cercam, crivando-o de perguntas. Eram de tal natureza que Dario respondeu:

– Não me venha com problemáticas, pois tenho solucionáticas.

Eis aí. Dario disse mais do que disse, dizendo apensa de futebol. […](ANDRADE, 2002, p. 125)

A resposta de Dario, acabou por se tornar emblemática por ser usada, mais tarde, pelo então ministro Jarbas Passarinho – uso que o poeta mineiro também dá destaque em outra crônica, intitulada “Solucionática”. Esse caso é um exemplo dessa relação mais complexa que faz Drummond com o futebol. Não trata só o espetáculo isolado, mas insere-o num contexto de vida cotidiana mais plural. O futebol aparece, aqui (e muitas vezes), como parte da vida como qualquer outro elemento e só no seu conjunto vale ser apreciado. Tem-se aqui um exemplo de que o futebol, como parte constituinte das relações sociais e humanas do país, pode proporcionar pensamentos mais complexos. Ao entender Dario como uma “força da natureza”, vê na sua fala muito mais profundidade que o próprio Dario no momento de sua resposta. Drummond estende o pensamento de Dario a outros campos. Diz ser um pensamento lapidar, uma resposta de bom senso àqueles que só trazem problemáticas. Ao fim da crônica, ao lembrar que Dario só foi à Copa de 1970 à pedido do então presidente Médici, completa: “Dario pode livrar o Governo de muito inventador de problemáticas.”

Outro ponto que chama atenção é de que as crônicas, via de regra, prendem-se pouco a um apaixonado clubismo. Simpatizante do Vasco, do Cruzeiro e do Corinthians, tendo dito que não entendia nada de futebol (como nos relata em entrevista[4]), sua relação de torcedor com os clubes com os quais se simpatiza pouco aparece nos textos. Um exemplo é o que encontramos no poema “Solução”, publicado no Jornal do Brasil em 23 de setembro de 1972, O tema é o canto de gol de um papagaio atleticano. Na impossibilidade de calar o papagaio, recomenda o poeta:

[…]

Evitem, pois, brigas forenses.

Outro projeto, mais certeiro,

aqui proponho aos cruzeirenses:

É ensinar “gol do Cruzeiro”

 

a um papagaio de igual força.

[…]

(ANDRADE, 2002, p. 125)

 A relação do torcer nos textos de Drummond sobre futebol é sempre mais ampla que o amor a um clube específico. Mesmo que haja crônicas e poemas sobre jogos em particular, ou clubes (como no poema acima), o torcer é uma atividade que extrapola tais relações e se torna, para ele, uma relação de paixão muito superior e ampla. No caso do poema em questão, o central não é o clubismo, mas um grito de um papagaio que, para o poeta, passa a ser atleticano por gritar “gol do Galo”. Não é uma questão de briga, ou necessariamente de confronto. Mas sim de dar destaque ao fato de que o futebol extrapola a barreira humana, chega aos animais. O futebol canta pela voz de um papagaio, não é mais o grito humano de um torcedor. Para além da rixa entre atleticanos e cruzeirenses, mais vale o “esporte verboso” que faz falta a nação. Ao fim do poema, ao decretar o papagaio campeão, por ser capaz de gritar o gol do Galo, faz com que a manifestação da alegria, do amor do torcer seja o mais importante. 

Pode-se citar, a título de exemplo da importância do torcer nos textos de Quando é dia de futebol alguns outros exemplos. Ao poema publicado no Correio da Manhã, em 24 de julho de 1966, intitulado “Aos Atletas” seguem duas notas:

Futebol – A partida de futebol é mais disputada por torcedores do que por atletas no campo.

Por aí – No futebol, cada clube não tem uma torcida, tem um partido organizado, e eles se aliam ou se separam conforme os azares do campeonato. (ANDRADE, 2002, p. 87

Essas notas reduzem com uma síntese típica de seus poemas como Drummond entende o espetáculo. Com foco no torcedor, por ser dele o grande baile na disputa do jogo, cabe pensá-lo de forma mais íntima. A relação do torcedor com o futebol é que, para Drummond, afasta-o do destaque de um cronista esportivo stricto sensu. Desligado de análises táticas, despreocupado com escalações, Carlos Drummond de Andrade traz outros aspectos para suas colunas, em especial o torcedor, como foco central de sua atividade de poeta. O futebol só vale na estrita relação com as paixões humanas que provoca, com a beleza estética que produz, nas associações que movimenta. Sem o torcedor, não importa o desempenho dos atletas. Como uma das notas salienta, a disputa é extra jogo, está nos torcedores. Da mesma forma, por determinadas situações, torce-se pelo adversário do adversário, numa relação em que Drummond percebe um princípio de organização de partidos políticos que, mesmo distantes em pautas ideológicas, em determinados momentos da vida pública, unem-se em torno de uma pauta comum.

Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Foto: Wikipédia

Num cenário como esse, de uma disputa que extrapola o espaço do jogo, chegando a animais e a organizações complexas de torcer –  que levam em considerações momentos de disputa que estão além do que está em jogo –, é possível o futebol alcançar outra categoria significativa, chegando a outro patamar. Por tal razão, Pelé e Garrincha são os grandes ídolos do poeta. Pela capacidade de dar ao espetáculo do futebol mais do que somente um contato simples com o esporte, mas de transcendê-lo à categoria da arte.

Sobre o milésimo gol de Pelé,  na crônica “Pelé: 1.000”, publicada no Jornal do Brasil em 28 de outubro de 1969, diz Drummond:

[…] A obra de arte, em forma de gol ou de texto, casa, pintura, som, dança e outras mais, parece antes coisa-em-ser na natureza, revelada arbitrariamente, quase que à revelia do instrumento humano usado para a revelação. Se a obrigação é aprender, por que todos que aprendem não realizam? Por que só este ou aquele chega a realizá-la? Por que não há 11 Pelés em cada time? Ou 10, para dar uma chance ao time adversário?

O Rei chega ao milésimo gol (sem pressa, até permitindo o charme de retificar para menos a contagem) por uma fatalidade à margem do seu saber técnico e artístico. Na realidade, está lavrando sempre o mesmo tento perfeito, pois outros tentos menos apurados não são de sua competência. Sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instantes de não-Pelé, como os não-Pelés que somos todos. (ANDRADE, 2002, p,195-196)

O jogador é elevado à categoria de artista que sabe, para além da técnica, dar espaço à manifestação  da arte. O lugar do artista no espetáculo, somado a quem de fato faz o jogo ser o que é, o torcedor. Pelé, “o mágico”, como ele mesmo o chama, é capaz de transformar uma cobrança de pênalti em obra de arte. Além disso, o texto mostra que não há, frente ao espetáculo puro, espaço no poeta para seu clubismo. O gol de Pelé vale como elemento isolado, não importando se foi feito sobre seu time de simpatia, o Vasco. 

Sobre Garrincha, em “Mané e o sonho”, publicada no Jornal do Brasil, em 22 de janeiro de 1983, escreve:

Garrincha, em sua irresponsabilidade amável, poderia, quem sabe?, fornecer-nos a chave de um segredo de que era possuidor e que ele mesmo não decifrava, inocente que era da origem do poder mágico e de seus músculos e pés. Divertido, espontâneo, inconsequente, com uma inocência que não excluía espertezas instintivas de Macunaíma – nenhum modelo seria mais adequado do que esse, para seduzir um povo que, olhando em redor, não encontrava os sérios heróis, os santos miraculosos de que necessitava no dia-a-dia. (ANDRADE, 2002, p. 217-218)

Garrincha é pensado a partir da comoção que traz ao povo, ao se tornar ídolo das massas. Nessa capacidade, o autor passa a tratar Garrincha como a explicação para o entendimento da relação do povo com a alegria que o cerca, o que dá a ao craque o destaque e a importância que tem. Garrincha não é como Pelé, um artista no brilho máximo da técnica, mas um encantador da torcida, tradutor da vida de todos que tem, no improviso e na imprudência de seu jogar, uma relação de identificação íntima, substituindo ídolos de outra natureza no todo-dia das pessoas.

Por fim, para pensarmos o conjunto de elementos a que o poeta/cronista se debruça quando pretende dizer de futebol, vamos ao seu “Sermão da Planície”, publicado no Jornal do Brasil em 18 de junho de 1974.

SERMÃO DA PLANÍCIE

Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade.

Bem-aventurados os que, por entenderem de futebol, não se expõem ao risco de assistir às partidas, pois não voltam com decepção ou enfarte.

Bem-aventurados os que não tem paixão clubista, pois não sofrem de janeiro a janeiro, com apenas umas colherinhas de alegria a título de bálsamo, ou nem isto.

Bem-aventurados os que não escalam, pois não terão suas mães agravadas, seu sexo contestado e sua integridade física ameaçada, ao saírem di estádio.

Bem-aventurados os que não são escalados, pois escapam  de vaias, projéteis, contusões, fraturas, e mesmo da glória precária de um dia.

Bem-aventurados os que não são cronistas esportivos, pois não carecem de explicar o inexplicável e racionalizar a loucura.

Bem-aventurados os fotógrafos que trocaram a documentação do esporte pela dos desfiles de modas, pois não precisam gastar tempo infindável para fotografar o relâmpago de um gol.

Bem-aventurados os fabricantes de bolas e chuteiras, que não recebem as primeiras na cara e as segundas na virilha, como os atletas e os assistentes ocasionais das peladas.

Bem-aventurados os que não conseguiram comprar televisão a cores a tempo de acompanhar a Copa do mundo, pois, assistindo pelo aparelho do vizinho, sofrem sem pagar 20 prestações pelo sofrimento.

Bem-aventurados os surdos, pois não os atinge o estrondar das bombas da vitória, que fabricam outros surdos, nem o matraquear dos locutores, carentes de exorcismo.

Bem-aventurados os que não moram em ruas de torcida institucionalizada, ou em suas imediações, pois só recolhem 50% do barulho preparatório ou comemoratório.

Bem-aventurados os cegos, pois lhes é poupado torturar-se com o espetáculo direto ou televisionado da marcação cerrada, que paralisa os campeões, ou o lance imprevisível, que lhes destrói a invencibilidade.

Bem-aventurados os que nasceram, viveram e se foram antes de 1863, quando se codificaram as leis do futebol, pois escaparam dos tormentos da torcida, inclusive dos ataques cardíacos infligidos tanto pela derrota como pela vitória do time bem-amado.

Bem-aventurados os que, entre a bola e o botão, se concentraram com este, principalmente sem camisa, pois se consolam mais facilmente de perder o botão da roupa que o bicho da vitória.

Bem-aventurados os que, na hora da partida internacional, conseguem ouvir a sonata de Albinoni, pois destes é o reino dos céus.

Bem-aventurados os que não confundem a derrota do time da Lapônia pelo time da Terra do Fogo com a vitória nacional da Terra do Fogo sobre a Lapônia, pois a estes não visita o sentimento de guerra.

Bem-aventurados os que, depois de escutar este sermão, aplicarem todo o ardor infantil no peito maduro para desejar a vitória do selecionado brasileiro nesta e em todas as futuras Copas do Mundo, como faz o velho sermoneiro desencantado, mas torcedor assim mesmo, pois para o diabo vá a razão quando o futebol invade o coração.  (ANDRADE, 2002, p. 135-137)

Aqui temos um conjunto de elementos importantes da produção literária de Drummond. Primeiro, o humor, marca da maior parte de seus textos. Um humor que inverte a relação de bem-aventurança proposta no texto, em sua relação direta com a brincadeira com o texto bíblico, como faz em alguns de seus textos[5]. O “sermão” é para que tudo o que envolva a força emocional do espetáculo seja posto de lado para que, enfim, possa-se viver em paz. Porém, o sermoneiro desencantado, “torcedor assim mesmo”, não consegue cumprir o que é pedido, pois começará a Copa, e com o torcer e com o coração, a razão que vá ao diabo. Além disso, coloca em cena os muitos elementos do torcer, os muitos atores no espetáculo, mas todos a partir de um olhar apaixonado, na força da paixão que há entre o esporte e sua manifestação no torcedor. É possível ver que o quadro da bem-aventurança só se deseja a partir da relação torcedor-futebol, com exceção do que compete à bola e à chuteira. Escalar, ser escalado, morar em rua de torcida, etc, racionalizar a loucura são elementos que colocam o torcer em destaque.

Foto: Wikipédia

Os textos de Drummond nos provocam em momento tão delicado para o futebol. Se é o torcedor quem, para o poeta, compõe o espetáculo, dá sentido a ele e faz dele o que ele de fato é, a ausência do torcedor pode ser compreendida como a morte da relação íntima com o futebol. Sem torcida, o futebol perde em significação e vira um conjunto tático sem propósito, visto que o propósito é o que ele causa – estética e emocionalmente – no torcedor. A relação íntima que o sustenta e o justifica é, ao fim e ao cabo, a presença de uma torcida apaixonada e sem bem-aventurança.  

Dessa forma, o futebol, para Drummond, é um conjunto de elementos que estão além do jogo propriamente dito. Nas crônicas e poemas, é pensado em sua relação indissociável com o torcedor, que não é mero espectador do espetáculo. Para o poeta mineiro, o torcedor é quem faz do futebol o que ele é, e na relação de paixão que tem o torcedor com o esporte, com os jogadores, com outros torcedores e atores no espetáculo é que a magia do futebol se dá. É a partir dessa interação que é possível pensar Garrincha como o herói de um povo, de pensar Pelé como um artista maior, de pensar que, só é possível fazer tudo isso ser o que é, a partir do movimento apaixonado o qual possui o torcedor. Por isso, no texto “Sermão da Planície”, Drummond nos diga que o bem-aventurado é quem não padece dos arroubos de paixão do futebol, de todos os seus atores. Bem-aventurados os que não torcem, os que não são escalados, os que não escalam. Estar fora disso é estar tranquilo, e portanto, fora. Mas o que importa mesmo e de fato é mandar “para o diabo com vá a razão quando o futebol invade o coração”.   

Notas

[1] John Gledson tem um capítulo de seu Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade dedicado a esses textos, datados entre 1921 e 1927.  Sobre as publicações em periódicos mineiros antes de 1930, que fazem com que alguns críticos busquem nos escritos do jovem Drummond os elementos que configuram uma construção de um ideal poético, cf. John Gledson (1981, p. 23-56), Maria Zilda Ferreira Cury (1998) e Antônio Sérgio Bueno (1982).

[2] Farewell é considerado o último livro da coleção de poemas de Drummond por ser essa a vontade do poeta. Porém, há ainda a publicação de outros livros póstumos posteriores a ele, em razão de o poeta ter deixado um volume de textos escritos em seus arquivos pessoais, ou mesmo publicado em jornais. Valem ressaltar desse conjunto de textos, os reunidos em Os 25 poemas de triste alegria, escritos em 1924 para a então namorada (e futura esposa) Dolores Dutra de Moraes e Quando é dia de futebol, publicado pela primeira vez em 2002, de que falaremos nesse texto.

[3] Em entrevista a Geneton Moraes Neto, Prestes comenta: “Um dos poemas que mais conheci foi o que ele escreveu sobre Stalingrado. De outros não me lembro. Eu estava preso quando li o poema. Mil novecentos e quarenta e cinco foi o ano da vitória contra Hitler, a tomada de Berlim. A emoção, aqui, existe. É um poema longo e bastante laudatório sobre os combates em Stalingrado – o combate decisivo na guerra.” Para saber mais da relação de Prestes e Drummond, cf. MORAES NETO, 2007, p. 104-290.

[4] Numa coletânea de crônicas de vários autores, parte do projeto “Para gostar de ler”, da Editora Ática, publicadas inicialmente na década de 1970. Numa breve entrevista sobre temas gerais, que abre a coletânea, o poeta é perguntado se gosta de futebol e para que time torce. Assim responde Drummond: “Não entendo nada de futebol, mas tenho simpatia pelo Vasco da Gama, no Rio; pelo Cruzeiro, em Belo Horizonte, e pelo Corinthians, em São Paulo.” (ANDRADE et alli, 1978, p. 8) 

[5] Drummond, em “Poema de sete faces”, primeiro poema do primeiro livro, faz um poema carregado de humor na relação que estabelece com a vida de Jesus. No poema, o eu é anunciado, assim como Jesus, mas por um “anjo torto / desses que vivem nas sombras”. Na quinta estrofe do poema, pergunta o eu. ‘Deus, por que me abandonaste / se sabias que não era Deus, / se sabias que eu era fraco.” A relação com a vida de Jesus no primeiro poema de seu primeiro livro se intensifica por ter sido o poema publicado, de acordo com John Gledson, no dia 25 de dezembro de 1928, sob pseudônimo “Carlos Alberto” (GLEDSON, 1981, p. 78).

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de; CAMPOS, Paulo Mendes; BRAGA, Rubem; SABINO, Fernando. Para gostar de ler – volume 3 – crônicas. São Paulo: Ática, 1978.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Organização de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Quando é dia de futebol. Organização Luís Maurício Graña Drummond e Pedro Augusto Graña Drummond. Rio de Janeiro: Record, 2002.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Tempo vida poesia. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.

BUENO, Antônio Sérgio. O modernismo em Belo Horizonte: década de vinte. Belo Horizonte: PROED, Imprensa da UFMG, 1982.

CANDIDO, Antonio. “Inquietudes na poesia de Drummond”. In: Vários escritos. 3. ed. rev. E ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 111-147.

CURY, Maria Zilda. Horizontes modernistas: o jovem Drummond e seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas Cidades, 1981.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. 2. ed. 6. reimp. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

MORAES NETO, Geneton. Dossiê Drummond. 2. ed. rev. E ampl. São Paulo: Editora Globo, 2007.

SANTIAGO, Silviano. “Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade” In. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Organização de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. p. III-XLI.


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Danilo Barcelos

Professor de Teoria da Literatura na Universidade Estadual de Montes Claros, Doutor e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo, graduado em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto.

Como citar

BARCELOS, Danilo. Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol: os textos sobre futebol de Carlos Drummond de Andrade. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 17, 2020.
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