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Berlim 1936 – O mundo, inclusive o Olímpico, vira de ponta-cabeça com o nazismo (parte 1)

Paulinho Oliveira 8 de abril de 2021

Toda edição de Jogos Olímpicos tem uma influência política, seja na captação de recursos, seja em um ou outro protesto de delegação, ou até mesmo em determinado confronto esportivo, e o contexto nacional e internacional vivido na época também exerce importância considerável. Por seu turno, entre Atenas 1896 e Los Angeles 1932, as olimpíadas cresceram em popularidade, de forma que já se observava a pretensão dos grupos que detinham o poder em cada país anfitrião de aproveitar-se da ocasião para promover sua nação, seu povo, a cidade-sede e a sua maneira de gerir o evento. Nada, porém, se igualaria a Berlim 1936 e à sanha do führer Adolf Hitler de fazer desses Jogos a grande oportunidade de afirmação da suposta superioridade do que ele chamava de “raça ariana”. Seu governo não poupou esforços, tampouco dinheiro, para fazer daquela a mais organizada, pomposa e concorrida Olimpíada até então realizada.

Contudo, quando Hitler, líder do Partido Nazista e austríaco de nascimento, chegou ao poder em 30 de janeiro de 1933 e começou, quase que imediatamente, a pôr em prática a política antissemita, à base de muita violência e opressão, o Movimento Olímpico viu-se em uma situação desconfortável jamais vivida antes. Afinal, como conciliar o ideário de paz entre os povos que os Jogos Olímpicos buscavam representar – inclusive com a já tradicional revoada de pombas ao final de cada cerimônia de abertura – em um país governado por um regime totalitário que se convertia, pouco a pouco, em ditadura de partido único?

Seria possível a frieza de contemplar as disputas esportivas no belíssimo Olympiastadion – que substituiu o antigo Deutsches Stadion, igualmente imponente –, com suas arquibancadas completamente tomadas e o público em êxtase, diante da realidade tão sombria de um regime de exceção guiado, especialmente, pelo antissemitismo? O tempo mostrou que não só foi possível a frieza do Comitê Olímpico Internacional, como puderam seus maiores dirigentes – o presidente de honra Barão de Coubertin e o presidente Baillet-Latour – tecerem palavras por demais elogiosas aos Jogos de Berlim 1936 em seu livro oficial, publicado um ano depois. O primeiro (que sequer foi à capital alemã, pois já velho e doente) afirmou que a parada das nações no Olympiastadion havia sido um grande acontecimento, não apenas na história olímpica, mas na dos tempos modernos. Já o segundo disse que Berlim fora palco de uma unidade entre os povos sem a qual a paz e a felicidade jamais teriam ocorrido.

Berlim 1936
Bandeira olímpica e bandeira nazista no Estádio Olímpico de Berlim. Foto: A. Frankl/Bundesarchiv B 145 Bild-P017073.

O comportamento contraditório e insensível dos dirigentes do COI durante e após Berlim 1936 era diferente do que apresentavam quando Hitler chegou ao poder, três anos antes, evento que lhes causou, a princípio, bastante inquietação. Quando a capital alemã havia sido escolhida sede olímpica entre abril e maio de 1931, a Alemanha ainda vivia sob a chamada República de Weimar, em uma democracia parlamentarista, tentando se equilibrar economicamente, mesmo com as pesadas indenizações de guerra que tinha de arcar, por força do Tratado de Versalhes de 1919, firmado após sua derrota na Primeira Guerra Mundial.

Àquela época, os nazistas já experimentavam crescimento do apoio dos eleitores alemães, à procura de alguém que pudesse ser o salvador do povo, mergulhado no desemprego e na recessão. Hitler, com sua oratória vibrante e seu inquestionável carisma, conquistava cada vez mais adeptos para sua causa, sendo os judeus e os comunistas considerados os principais inimigos da Alemanha por ele e seus seguidores. Entretanto, ainda havia multiplicidade de partidos políticos, que buscavam se entender após os vários pleitos eleitorais que se sucediam, na tentativa de organizar a política alemã.

Quando se abriu a 29ª Sessão do COI, no Hotel Ritz, em Barcelona (Espanha), em 24 de abril de 1931, os espanhóis haviam acabado de vivenciar um golpe de Estado dez dias antes, que derrubara o rei Afonso XIII e instaurara uma república, governada, a princípio, pela Direita Liberal Republicana. O clima político na Espanha acabou afastando muitos dirigentes olímpicos, de modo que, no dia 26 de abril, quando deveria se dar a votação para a escolha da sede dos Jogos de 1936, não havia quórum suficiente. Desta forma, o COI recolheu 19 votos dos membros que tinham ido a Barcelona e resolveu que os ausentes poderiam votar pelo correio, encaminhando seus votos à sede do Comitê, em Lausanne (Suíça).

Uma vez abertas as cartas-voto dos ausentes em 13 de maio de 1931, revelou-se que onze cidades que haviam se proposto a sediar aqueles Jogos – inclusive o Rio de Janeiro – não haviam recebido um voto sequer. Barcelona, em contrapartida, recebeu 16 votos. A vencedora, todavia, com 43 votos, foi Berlim, que assim voltava a se tornar anfitriã e teria a chance de fazer a sua Olimpíada vinte anos depois daquela que fora cancelada por conta da Primeira Guerra.

Dois anos depois, com Hitler já no poder, começaram a chegar ao conhecimento do COI as atrocidades cometidas pelo regime nazista, chegando-se inclusive a cogitar que o ditador cancelaria os Jogos de 1936 na capital alemã. Paralelo a esse temor, o Movimento Olímpico enfrentava a pressão de vários países-membros para que tomasse posição firme contra o nazismo e os crimes perpetrados pela ditadura hitlerista. Porém, nem uma coisa, nem outra aconteceram. Hitler fez questão de manter a intenção de promover Berlim 1936, garantindo a Baillet-Latour que atletas de origem judia poderiam competir naquela Olimpíada, o que bastou para que o COI tentasse deixar de lado o genocídio e os arbítrios que começavam a fazer parte da vida da Alemanha, em nome do alegado ideal olímpico.

De “cabo boêmio” que não se levava a sério a führer: como Hitler conseguiu chegar ao poder

Munique, 1923. Nazistas tentam, pela primeira vez, golpe de Estado no evento conhecido como Putsch da Cervejaria. Foto: Wikipédia.

Na madrugada de 9 de novembro de 1923, a cervejaria Bürgerbräukeller, uma das mais populares de Munique, foi invadida por simpatizantes nazistas que mantiveram reféns Gustav von Kahr (comissário do Reich no estado), Hans Ritter von Seisser (chefe de polícia bávaro) e Otto von Lossow (comandante militar da Baviera). Em apoio aos golpistas, estava o marechal Erich Ludendorff, considerado herói alemão da Primeira Guerra. Hitler, o líder nazista, objetivava marchar sobre Munique da mesma forma que o ditador italiano Benito Mussolini fizera sobre Roma em 1922, mas sua tentativa de tomar o poder da Baviera acabou detida pelo Exército do Reich. Dezesseis militantes nazistas morreram, dezenas ficaram feridos e vários foram presos, inclusive Hitler.

Os insurgentes mortos seriam transformados em mártires da causa dos golpistas, enquanto uma bandeira com a suástica suja de sangue se converteria, mais tarde, em peça sagrada durante a ditadura nazista. Quanto a Hitler, passaria a ser conhecido por seus detratores como o “cabo boêmio”, em alusão ao seu hábito de frequentar cervejarias e à graduação que possuía no Exército Alemão, da qual não podia avançar pelas leis vigentes à época, a não ser que houvesse nascido de fato no país, o que não era o caso, já que austríaco.

Em 1º de abril de 1924, os revoltosos do que ficou conhecido como “Putsch da Cervejaria” conheceram suas sentenças. A mais rigorosa foi imposta contra Hitler, condenado a cinco anos de prisão. Porém, o julgamento do líder nazista acabou se convertendo em uma peça de publicidade do partido, pois foi permitido ao acusado discursar sem limite de tempo para uma plateia embevecida e hipnotizada pelo discurso enérgico daquele homem de causas fortemente nacionalistas, antissemitas e anticomunistas.

Hitler cumpriu apenas nove meses na cadeia, dentro da qual pôde gozar de privilégios e, inclusive, escrever seu único livro, Minha Luta (Mein Kampf, em alemão), um compêndio do pensamento que nortearia o futuro regime nazista. A burguesia que detinha o poder naquela época não levava o nazismo muito a sério, mas via em Hitler alguém que poderia barrar o avanço dos comunistas, o que era simpático aos que não queriam ver a República de Weimar virar uma réplica da Rússia pós-revolução bolchevique, que, em 1922, se transformara em União Soviética.

Munique não sediou o “Putsch da Cervejaria” por acaso. Era ali, na capital da Baviera, que residia a oposição de extrema-direita à República de Weimar. Naquela cidade, nascera o DAP, fundado em janeiro de 1919 pelo chaveiro Anton Drexler, a quem se atribui a descoberta de Hitler e sua filiação àquela legenda, que se transformaria um ano depois no Partido Nazista. Banidos por um ano da cena política alemã depois da tentativa de golpe de Munique, os nazistas não disputaram nenhuma eleição para o Reichstag até 1928. Àquela época, a idade mínima para votar havia se reduzido para 20 anos, enquanto as mulheres conquistaram o direito de tomar parte nas eleições a partir de 1919. Durante toda a República de Weimar, ocorreram um total de dez pleitos eleitorais: oito para o Reichstag e dois para a presidência (sendo o primeiro deles indireto, em 1919, quando o social-democrata Friedrich Ebert foi eleito com larga vantagem). A oposição ao conceito imperialista que vigorou durante a Era Guilhermina – apontado como causador da Primeira Guerra –, aliado ao desejo de um sistema parlamentarista democrático (em oposição ao pensamento revolucionário da extrema-esquerda espartaquista de Rosa Luxemburgo), foram fatores que fizeram com que, entre as eleições parlamentares de 1919 e 1930, o SPD (de centro-esquerda) fosse o partido majoritário no Reichstag, com seu maior sucesso tendo sido, justamente, no pleito inaugural de janeiro de 1919, com 163 assentos conquistados (37,86%), quase o dobro dos 91 conquistados pelo Zentrum.

Uma nota de 10 bilhões de marcos, que, na verdade, não tinha valor real nenhum. Eram tempos de hiperinflação na República de Weimar, fenômeno que ajudou a impulsionar o discurso de “salvação nacional” do nazismo.

A crise econômica provocada pela hiperinflação, especialmente em 1923, turbinou o crescimento dos comunistas. O KPD, banido das eleições de 1919, conquistou importantes 2,1% dos votos em 1920, o equivalente a 4 assentos no Reichstag. Na eleição seguinte, em maio de 1924, o partido aumentou sua votação para 12,6%, tornando-se a quarta maior bancada do parlamento, com 62 assentos. Os comunistas eram um dos principais inimigos do nazismo, que viam nos princípios marxistas parte do que chamavam de “conspiração judaica” para dominar o mundo. Não eram raros os confrontos de rua entre militantes do KPD e do Partido Nazista. Este, por sua vez, tinha seu discurso fortemente antissemita e anticomunista tolerado pela burguesia que detinha o poder na República de Weimar: a uma, porque os poderosos de plantão não desejavam que a Alemanha trilhasse o mesmo caminho revolucionário bolchevique da Rússia; a duas, porque o antissemitismo já existia na Europa e dava coro a extremistas de direita bem antes do nazismo. Essa tolerância a Hitler pode ajudar a explicar o motivo pelo qual ele recebeu uma pena considerada branda pela tentativa de golpe de 1923 – apenas cinco anos de prisão, tendo cumprido só nove meses –, e seu partido, um banimento temporário de um ano, voltando a se organizar a partir de fevereiro de 1925.

Hitler defendia, desde quando compusera o Mein Kampf, um poder autocrático forte para promover a Lebesraum que levaria à Grossdeutschland, mas se convencera, depois do insucesso do “Putsch da Cervejaria”, de que apenas pelo caminho legal da democracia conseguiria atingir seus objetivos – inclusive o de acabar com a própria democracia. Assim, o Partido Nazista começou a participar regularmente das eleições parlamentares a partir do pleito de 20 de maio de 1928, que foi vencido, mais uma vez, pelo SPD (com 153 assentos), seguido pelo direitista Partido Nacional do Povo Alemão (DNVP), pelo Zentrum e pelo KPD. Naquela eleição, os nazistas conseguiram ingressar pela primeira vez no Reichstag, graças a 2,6% dos votos, o que lhes deu direito a 12 cadeiras. Hitler e seus comandados, naquele instante, ainda não eram levados a sério pela maior parte dos alemães. Um ano depois, todavia, a Alemanha sofreu os efeitos da Grande Depressão iniciada com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York.

A economia alemã não tinha forças para passar ao largo da crise internacional, e, em fevereiro de 1929, já eram 3 milhões os desempregados. A miséria ganhava as ruas, o que potencializava um clima de incerteza e revolta, explorado politicamente por oportunistas como Hitler, cuja tese da “punhalada nas costas” que a Alemanha teria levado por haver se retirado “invicta” da Primeira Guerra e sido “enganada” por uma conspiração comandada pelos judeus e comunistas começou a ganhar apoio popular. O resultado foi que, nas eleições de 14 de setembro de 1930, o antes incipiente Partido Nazista terminou em segundo lugar, com impressionantes 6,4 milhões de votos (ou 18,25%), abaixo apenas do SPD, que obteve 24,53% da preferência eleitoral. Quanto aos assentos no Reichstag, os nazistas conquistaram 107, enquanto os social-democratas, 143. O KPD, por sua vez, teve 30 assentos a menos que o partido de Hitler, o que este considerou uma grande vitória.

Àquela altura, o mundo já acompanhava com atenção e preocupação o crescimento assustador dos nazistas, embora poucos previssem que Hitler se tornaria o führer que acabou sendo. Quando Berlim foi escolhida sede olímpica em 1931, afinal, a República de Weimar ainda subsistia, sob a chefia do veterano marechal Paul von Hindenburg desde 1925, embora com sucessivos gabinetes instáveis. Apesar da fragilidade do sistema eleitoral parlamentar proporcional, o mosaico de partidos políticos e a frequência com que aconteciam eleições davam a entender que a Alemanha vivia uma plena democracia e desse estado não sairia, mesmo que Hitler ganhasse cada vez maior notoriedade.

Entretanto, as eleições presidenciais de 1932 – ano em que o número de desempregados alemães ultrapassou 6 milhões, cerca de um terço da força de trabalho – mostraram ao mundo que o líder nazista precisava ser levado bem mais a sério. Com 30,1% dos votos no primeiro turno e 36,8% no segundo turno (estes equivalentes a 13,4 milhões de sufrágios), Hitler não foi páreo para o reeleito Hindenburg (um dos que chamavam o nazista de “cabo boêmio”), que venceu com 53% dos votos, mas ficou evidente que aquele não se contentaria apenas em disputar eleições e ser figurante.

Os nazistas queriam o poder, porque tinham ciência do crescente apoio popular às suas ideias. Dois meses depois, as eleições parlamentares fizeram do Partido Nazista a maior representação no Reichstag, com 230 assentos (37,27% dos votos), um crescimento mais que dobrado em relação à eleição anterior. A maioria se manteve com novas eleições convocadas para novembro do mesmo ano, ante o impasse na formação de uma coalizão com Hitler, e os nazistas conquistaram 196 assentos, após receber 33,09% dos votos populares.

Pressionado pelos resultados eleitorais e pelo próprio Hitler, o presidente Hindenburg acabou nomeando-o chanceler da Alemanha em 30 de janeiro de 1933. O caminho estava pavimentado para uma ditadura da maneira que os nazistas queriam, mas faltava um pretexto para tanto, pois ainda havia a autoridade de Hindenburg no meio do caminho. Um mês depois, em 27 de fevereiro, um grande incêndio – supostamente provocado pelo ativista comunista holandês Marinus van der Lubbe – destruiu o prédio do Reichstag, sem que, todavia, houvesse vítimas. Era o pretexto que os nazistas queriam.

Sob o argumento de proteger os alemães, Hitler pressionou Hindenburg a se utilizar das prerrogativas do artigo 48 da Constituição de 1919, para que ambos assinassem o Decreto do Presidente do Reich para a Proteção do Povo e do Estado, que se tornaria mais conhecido como o Decreto do Incêndio do Reichstag. Em apenas seis artigos, o decreto, que afirmava combater “atos de violência comunistas contra o Estado”, era, na prática, o fim da Constituição de Weimar de 1919: suspendia direitos e garantias fundamentais como liberdade de expressão e opinião, liberdade de imprensa, direito de reunião e sindicalização, sigilo postal, telegráfico e telefônico e inviolabilidade dos domicílios; estabelecia que o Reich tinha supremacia sobre os seus estados quanto à aplicação dos termos do decreto; determinava que crimes como alta traição, explosão, danos a ferrovias, incêndio culposo ou inundação culposa, antes puníveis com prisão perpétua, seriam punidos com a morte; também previa a pena capital a quem atentasse contra a vida do presidente da República ou de qualquer membro do governo, ou quem cometesse “sério distúrbio à paz”; determinava, outrossim, que a aplicação das penas se daria ainda que outra lei anterior ao decreto previsse para o crime penalidade menos gravosa (o que foi utilizado como subterfúgio legal para a execução de Marinus van der Lubbe).

Propaganda eleitoral do Partido Nazista nas eleições de 5 de março de 1933, lembra o Incêndio no Reichstag e demoniza os comunistas.

Em 5 de março de 1933, aconteceram novas eleições parlamentares, o que havia sido determinado pelo presidente Hindenburg, que dissolvera, em 1º de fevereiro, o Reichstag. Hitler, em seu primeiro pronunciamento público como chanceler, dissera a uma plateia de generais que seu governo acabaria com o “câncer” da democracia e “exterminaria” o marxismo. A campanha eleitoral de março, com efeito, foi marcada pelo terror nazista, especialmente voltado contra os comunistas, os principais alvos do Decreto do Incêndio do Reichstag.

Foi também a primeira grande mostra do poder que teria a propaganda, sob a responsabilidade do gauleiter (equivalente a prefeito) de Berlim, Joseph Goebbels, eficaz em transformar a “ameaça comunista” e o incêndio do Reichstag em motivos para que os alemães votassem em massa no Partido Nazista – o que foi feito, inclusive, com o auxílio de tropas da SA (Sturmabteilung), o braço paramilitar do nazismo, que monitorava os votos dos eleitores, a fim de garantir a supremacia de Hitler.

De fato, os nazistas obtiveram a maioria, mas os 43,91% dos votos e 288 assentos no Reichstag não foram o resultado esperado. O SPD, que também já estava na mira nazista, conquistou 20,43% dos votos (120 cadeiras), e o KPD, mesmo com toda a perseguição amparada pelo Decreto do Incêndio do Reichstag, com militantes seus sendo presos, torturados e mortos pela SA, obteve excelentes 16,86% dos sufrágios, conseguindo assegurar 81 assentos no parlamento.

Hitler estava resolvido a sepultar de vez a democracia e governar a Alemanha com poderes totais. Por isso, logo na primeira sessão do parlamento após as eleições de 1933 – agora reunido no Kroll Opera House, um teatro que estava fechado desde 3 de julho de 1931, quando fora exibido o último espetáculo da ópera O casamento de Figaro, de Mozart –, o líder nazista apresentou para discussão e votação o Ato de Habilitação, que visava dar ao chanceler o poder de estabelecer suas diretrizes de governo sem a necessidade de se consultar o Reichstag ou o presidente da República.

Para conseguir aprovar essa lei, o Partido Nazista – que, embora majoritário, não tinha a maioria absoluta do parlamento – forjou aliança com o direitista DNVP e atraiu para si o Zentrum, partido católico, sob a promessa de realização de concordata com o Vaticano. A bancada do SPD – fragilizada com a prisão arbitrária de alguns de seus integrantes – votou integralmente contra, e seu líder, Otto Wels, chegou a se dirigir de forma enérgica a Hitler da seguinte forma: “O senhor pode até atentar contra nossas vidas e nossa liberdade, mas jamais atingirá nossa honra! Nós podemos estar indefesos, mas jamais perderemos a honra!” Já a bancada do KPD não estava presente, pois todos os seus membros estavam presos e seriam posteriormente enviados aos primeiros campos de concentração, dentre os quais o de Dachau, próximo a Munique, inaugurado em 22 de março de 1933. O Ato de Habilitação foi aprovado por 444 votos contra 94 e representou o golpe de morte na Constituição de 1919 – ela, formalmente, continuava em vigor, mas, na prática, seus dispositivos eram letra morta.

A pá de cal no regime democrático foi a morte do presidente Hindenburg, em 2 de agosto de 1934. A partir de então, Hitler, utilizando-se dos plenos poderes concedidos pelo Ato de Habilitação, declarou vaga a presidência da República e decidiu que suas atribuições seriam conjuntas com as de chanceler. O “cabo boêmio” de 1923, pouco mais de uma década após o malogrado “Putsch da Cervejaria”, se transformava no führer, o líder supremo da Alemanha. Faltavam exatamente dois anos para os Jogos Olímpicos de Berlim 1936.

Este texto é parte do Capítulo 10 do livro JOGOS POLÍTICOS DA ERA MODERNA. Outra parte será publicada aqui no Ludopédio na semana que vem. O livro pode ser adquirido neste link.

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Paulinho Oliveira

Jornalista (MTb 01661-CE), formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2004.Escritor, com duas obras publicadas: GUERREIROS DE SANTA MARIA (Fortaleza, Premius Editorial, 2013, ISBN 9788579243028) e JOGOS POLÍTICOS DA ERA MODERNA (Fortaleza, publicação independente, 2020, ASIN B086DKCYBJ).

Como citar

OLIVEIRA, Paulinho. Berlim 1936 – O mundo, inclusive o Olímpico, vira de ponta-cabeça com o nazismo (parte 1). Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 14, 2021.
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