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Os “Boleiros”, de Ugo Giorgetti, passados 20 anos

José Carlos Marques 14 de dezembro de 2018

O filme Boleiros, Era uma vez o futebol, do cineasta Ugo Giorgetti, foi lançado em abril de 1998 num contexto bastante favorável a filmes que abordassem o futebol: o Brasil, Campeão do Mundo em 1994 nos Estados Unidos, despontava como o maior favorito para conquistar também a Copa do Mundo da França, que teria início algumas semanas depois. A possibilidade de o escrete canarinho obter o “pentacampeonato” povoava o imaginário da comissão técnica, da torcida, da imprensa e do mercado publicitário – apenas para citar alguns atores ligados ao espetáculo.

Completados 20 anos desde seu lançamento, o filme não foi alvo de grandes iniciativas que celebrassem a efeméride. Seria interessante, aliás, que voltássemos ao enredo da película para que, num breve exercício comparativo, tentássemos verificar o que mudou de lá para cá, ou seja, quais evoluções ou involuções cercaram o futebol brasileiro nestas duas últimas décadas.

Em 1998, a Seleção Brasileira exibiria uniformes produzidos pela Nike, fornecedora contratada em 1996 por cifras vultosas (US$ 160 milhões). A multinacional passava a vestir uma equipe dos sonhos, em que despontavam Ronaldo Fenômeno, Rivaldo, Roberto Carlos e outras estrelas de destaque na conquista da Copa de 1994 – casos de Romário (que seria cortado às vésperas do evento), Dunga, Bebeto, Taffarel, Leonardo, Cafu, entre outros.

Boleiros tratava-se ainda do primeiro filme de ficção a trazer o futebol como tema principal após mais de uma década de ausência do “esporte bretão” na filmografia nacional. Se nos atentarmos apenas à produção ficcional da década de 1980, caberia referir quatro títulos: Asa Branca, sonho brasileiro (1981), de Djalma Limongi; Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias; Onda Nova (1983), de José Antônio Garcia; e Os Trapalhões e o Rei do Futebol (1986), de Carlos Manga.

O enredo do filme busca a fugacidade da glória e da vida, o que serve de mote à composição de personagens e paisagens bem paulistanas: um grupo de jogadores aposentados, de diferentes idades, reúne-se frequentemente num bar, ao final da tarde, para rememorar casos e histórias do passado. Cada um desses “boleiros”, a seu tempo, narra uma história para o deleite dos colegas.

O filme articula essas narrativas em torno de seis episódios, a saber: 1 – Pênalti (sobre a corrupção em torno de cartolas e juízes de futebol); 2 – Paulinho Majestade (sobre o ex-jogador que vive na miséria e que coloca à venda sua medalha de campeão do mundo); 3 – Pivete (sobre o “dom” natural do pequeno infrator que vive marginalizado na periferia); 4 – Azul (sobre o racismo no futebol, o abandono parental e as negociatas em torno da venda de jovens talentos para a Europa); 5 – Pai Vavá (sobre a pressão dos torcedores e a oposição entre superstição e medicina no futebol); 6 – Hotel (sobre a relação entre o craque galã e uma “maria-chuteira”, mediada pelo autoritarismo do treinador na concentração).

O “paulistanismo” do filme mostra-se, então, em todo o seu esplendor, ao homenagear, em cada episódio, um clube identificado com a história de São Paulo, casos, pela ordem, do Juventus, Santos, São Paulo, Portuguesa, Corinthians e Palmeiras. Ao redor dessa mesa de bar o que os personagens fazem nada mais é do que contar histórias sobre futebol.

Ao revermos essa lista de seis episódios, não é difícil perceber que os temas problematizados pelo filme continuam atuais e com poucas alterações desde então. A grande ausência é o fato de o futebol praticado por mulheres ter sido solenemente ignorado na película, mesmo com o sucesso na época da Seleção Brasileira Feminina, que chegou a disputar o bronze na Olimpíada de Atlanta em 1996 (essa ausência das mulheres procurará ser compensada no Boleiros 2, de 2006).

O grande problema de Boleiros, entretanto, é a representação que se faz da mulher não futebolista: ela invariavelmente aparece em papeis secundários, quase marginais – e, em dois casos, como agente de perturbação da ordem estabelecida (é o caso da ex-mulher de Azul, que ameaça revelar à imprensa que sustenta sozinha o filho do jogador, e o caso da hóspede do hotel que flerta com o artilheiro do Palmeiras no hotel em que o time está concentrado). Nos dias de hoje, tal representação certamente ganharia outras cores e formatos.

Mas a característica mais acentuada do filme de Giorgetti – e possivelmente a que mais afastou do filme o espectador médio de futebol, sempre à espera da festividade do jogo – é o tom disfórico que finaliza todas as histórias. A realidade é vista sempre com desesperança, e o passado é mitificado diante de um presente que traz as marcas do envelhecimento. O niilismo diante do presente reflete-se na nostalgia das referências ao passado, como as fotografias antigas estampadas nas paredes do bar.

Ugo Giorgetti. Foto: Antonio Scarpinetti/Unicamp.

Em todo caso, a despeito da melancolia e da angústia dos relatos, “Boleiros” assumiu o risco de colocar o futebol em debate no cenário cultural brasileiro, este pouco afeito a aceitar tal modalidade como tema de representação ou discussão. É justamente na década de 1990 que o futebol incrementa sua presença no meio acadêmico nacional, com a proliferação de teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso. É também nessa mesma época que o meio editorial brasileiro percebe, ainda que tardiamente, o potencial até então latente da literatura de e sobre o futebol.

Ao optar por criar sua narrativa com o uso da história oral, “Boleiros” reatuliza a lenda das “Mil e uma noites” com Sheherazade, que, para não ser decapitada pelo sultão, resolve contar-lhe uma história a fim de entretê-lo após passar a noite no leito real. Enternecido com o relato da jovem mulher, o monarca deixou-se seduzir e, durante 1.001 noites, permitiu que Sheherazade contasse uma nova história e não fosse executada. A metáfora dos contos do mundo árabe sintetiza nossa condição humana: precisamos contar histórias para nos manter vivos.

Os boleiros que se reúnem na mesa de bar a cada final de tarde só renascem e se sentem vivos diante dos contos e casos relatados por eles mesmos. Não é por outra razão que o próprio subtítulo do filme aponta para o universo da fábula: “Era uma vez o futebol”. Seria interessante que tal iniciativa, levada a cabo 20 anos atrás, ensejasse o surgimento de novos filmes que coloquem o futebol em diferentes perspectivas de análise.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Carlos Marques

José Carlos Marques é Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru) e integra o Departamento de Ciências Humanas da mesma instituição. É Livre-Docente em Comunicação e Esporte pela Unesp, Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Licenciou-se em Letras (Português Francês) pela Universidade de São Paulo. É autor do livro O futebol em Nelson Rodrigues (São Paulo, Educ/Fapesp, 2000) e de diversos artigos em que discute as relações entre comunicação e esporte. É líder do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e modalidades Lúdicas).

Como citar

MARQUES, José Carlos. Os “Boleiros”, de Ugo Giorgetti, passados 20 anos. Ludopédio, São Paulo, v. 114, n. 15, 2018.
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