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O pior cego é o que só vê a bola: Bolsonaro, retorno das partidas e MP do Futebol

Amigos, inegável que o futebol é um personagem central em nosso atual contexto político. Tão especial é o lugar que ocupa, que o presidente da “gripezinha”, do “e daí? Quer que eu faça o quê?”, do “vírus superestimado”, do “todos iremos morrer um dia” e por aí vai, dizia, já em março, que “quando você proíbe jogos de futebol você está partindo para o histerismo”. Em abril, com as partidas paralisadas, falava firme pela volta do futebol: “Se depender do meu voto, eu aprovo”. Bem, seu desejo fez-se realidade em 18 de junho de 2020.

No dia 17, data em que o presidente da República teve um de seus mais exaustivos dias de trabalho, com 5 horas dedicadas ao povo brasileiro, Bolsonaro convidou três grandes lideranças esportivas para a posse do novo ministro das comunicações: Rodolfo Landim, presidente do Flamengo, Felipe Melo e Alexandre Pato. O motivo da reunião com tais vultos era a assinatura da Medida Provisória 984, a MP do Futebol, que acabou não ocorrendo naquela data, mas sim no dia seguinte. Mesmo assim, deu tempo do presidente agourar o título mundial do Palmeiras. Em 30 do mesmo mês, das 4 horas e meia trabalhadas no dia, Bolsonaro reservou 2 horas para debater a MP com representantes de oito grandes equipes brasileiras. Nada mais importante, neste momento, que discutir “direito de arena sobre o espetáculo desportivo” e “exploração de direitos desportivos audiovisuais”, não é mesmo? Não temos vírus, não temos desempregados, desalentados ou precarizados, não temos desvio de finalidade no auxílio emergencial, não temos a maioria das pequenas e médias empresas sem conseguir crédito, não temos ministérios com as menores execuções orçamentárias da história recente…

Evidentemente é um assombro toda a energia gasta nestas duas matérias – a volta do futebol e a MP 984 – no momento em que o país registra mais de 60 mil mortes e quase 1 milhão e 500 mil casos confirmados de Covid-19. No que diz respeito à volta das partidas, fora a pressão exercida pelo governo federal, o presidente não pode muito além de manifestar os seus desejos, já que autorizações dependem de governantes locais. O que não é necessariamente uma boa notícia, basta que olhemos para a morbidez da situação carioca.

Representantes dos clubes posam com Bolsonaro em Brasília. Foto: Marcos Corrêa/PR. Foto: Fotos Públicas.

Na segunda questão, tudo indica que, de fato, a MP será benéfica para o desenvolvimento do futebol caso construa-se um modelo de negociação coletiva entre os clubes e os agentes de transmissão. Porém, como aponta Bruno Maia, que acompanha o debate sobre direitos de transmissão há algum tempo, há uma total inadequação contextual para o encaminhamento da questão. Segundo ele, Bolsonaro atropela um debate que já vinha sendo construído por diversos atores, dando proeminência indevida ao presidente do Flamengo e fazendo com que algo que deveria pertencer à economia interna da política desportiva, vire polêmica, mobilize paixões e preste-se mais à divisão do que à união dos principais interessados no assunto: os torcedores. Como lembra-nos Mauro Cezar Pereira, levando em consideração o momento tragicamente excepcional em que vivemos, não seria demais exigir que os condutores da maior paixão nacional comportassem-se como atores políticos que deixam interesses não urgentes de lado, em prol do respeito ao cidadão brasileiro afetado pela crise sanitária que desdobra-se em econômica. Mas não, à cartolada também falta entendimento das complexidades nacionais, clareza na exposição de seus objetivos e vontade de negociação. Sobra-lhe, justamente, interesse. Bem adequada, portanto, à tradição da nossa elite futebolística.

Enquanto já se pensa na volta de torcedores aos estádios, irmãos morrem aos montes. Para mim, pelo andar desgovernado da carruagem, as perspectivas de retorno geral em agosto deveriam estar fora de cogitação. Como se não bastasse, Bolsonaro usa o futebol como cortina de fumaça para o caos imperante no país e, sem surpresas, alimenta, a partir da MP do Futebol, a sua guerra cultural, no caso, contra a Globo. Os torcedores são convocados a tomar lado em uma questão que nem é urgente, nem é política. Como elucidou João Cézar Rocha, na guerra cultural bolsonarista sempre haverá bodes expiatórios para ocultar a inexistência de projetos para a nação brasileira. A elite futebolística poderia funcionar como freio, mas atua, em sua maioria, como catalizadora das vontades do presidente.

 

Referências

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Vinicius Garzón Tonet

Professor da Rede Estadual de Ensino, mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes - FULIA.

Como citar

TONET, Vinicius Garzon. O pior cego é o que só vê a bola: Bolsonaro, retorno das partidas e MP do Futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 34, 2020.
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