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Brasil, Museu Nacional, futebol

Denaldo Alchorne de Souza 17 de outubro de 2018

Existem certas cenas, certos filmes, certas fotografias que sintetizam um momento, um período histórico. As labaredas queimando o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, é para mim a cena definitiva de uma era, e talvez de uma sociedade. Nunca vi uma cena tão chocante quanto aquela. Chorei sem saber direito porque estava chorando. Era muita coisa junto. O meu sentimento era que viraram cinzas não somente o museu mais antigo do Brasil, fundado por D. João VI em 1818; não somente um dos prédios que melhor representa a formação do Estado brasileiro, tendo sido residência oficial de D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II; não somente o trabalho de seis ou sete gerações de pesquisadores; não somente as lembranças da infância, alegres e afetivas, fazendo picnics com a família nos jardins da Quinta da Boa Vista, visitando as “girafas e elefantes” no jardim zoológico e os “dinossauros e múmias” no museu. Viraram cinzas, talvez, naquela noite, todo um projeto de civilidade que tentamos construir nos últimos duzentos anos.

Voltando a história do prédio, quando a Corte Portuguesa desembarcou no Rio de Janeiro em 1808, a primeira moradia da Família Real foi o atual Paço Imperial, situado na Praça XV. A realeza considerou-a pouco confortável e se transferiu no ano seguinte para a Quinta da Boa Vista, que passou a ser a residência oficial dos monarcas até 1889.

Após a efetivação da República, abrigou a Assembleia Constituinte entre os anos de 1889 e 1891. E logo após, em 25 de junho de 1892, se tornou a nova sede do Museu Nacional. O seu imenso acervo era composto por cerca de 20 milhões de artefatos, como o crânio de “Luzia” que datava de 11 mil anos, a documentação linguística de povos extintos, o trono do Rei Adandozan (1718-1818) de Daomé, a coleção de arte e artefatos greco-romanos, os sarcófagos e múmias do Egito Antigo, os esqueletos de dinossauros e a coleção de aves empalhadas com quase 200 anos de idade. Além disso, o Museu abrigava inúmeros departamentos de pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como os de Antropologia, Botânica, Entomologia, Geologia e Paleontologia, Vertebrados e Invertebrados.

Um incêndio de proporções ainda incalculáveis atingiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Foto: Tania Rego /Agencia Brasil.

Nesse imenso oceano que é o Museu Nacional, gostaria de destacar uma pequena enseada chamada Universo do futebol, livro publicado em 1982 por antropólogos ligados à instituição. [i] Dentro da dimensão do que é o Museu Nacional, a obra pode ser considerada “pequena”. Mas teve uma importância fundamental para a consolidação das pesquisas sobre futebol, que até então eram consideradas de menor valor para o meio acadêmico.

O livro reunia os seguintes artigos: “Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro”, de Roberto DaMatta; “Na zona do agrião. Algumas mensagens ideológicas do futebol”, de Luiz Felipe Baêta Neves Flores; “Subúrbio: celeiro de craques”, de Simoni Lahud Guedes; “O momento feliz, reflexões sobre o futebol e o ethos nacional”, de Arno Vogel.

No seu artigo, Vogel evidenciou como o futebol e as conquistas das Copas do Mundo possibilitaram aos próprios brasileiros a construção de uma história positiva do Brasil, uma história que poderia ser contada sem mágoas ou ressentimentos. Já Guedes demonstrou, através da história de vida de trabalhadores, que o futebol possibilitava a mobilidade social de alguns indivíduos particularmente habilidosos. Assim, o jogo de futebol cumpria “funções simbólicas e sociais complexas, atualizando inclusões e exclusões, reforçando, criando e cortando laços sociais, atuando como mecanismo reprodutor e reinterpretativo de ideologias”. [ii] E Flores tratou o futebol como “um universo em aberto”, onde o esporte podia emitir mensagens que se articulavam quer com o que poderíamos indicar genericamente como a ideologia da permanência, quer com o que, também genericamente, chamaríamos de ideologia da transformação. Ou seja, o seu artigo era um estudo das possibilidades de apropriação ideológica que se poderia ter do futebol como fenômeno social.

E finalmente, contra os intelectuais que defendiam que “o futebol era o ópio do povo”, a opção teórica de DaMatta em seu artigo foi que o futebol possibilitou a dramatização da sociedade brasileira. Nas palavras do antropólogo: “Estudando o futebol e o esporte como um drama, pretendo analisar essas atividades como modos privilegiados através dos quais a sociedade se deixa perceber ou ‘ler’ por seus membros”. [iii] O rito e o drama seriam um determinado ângulo de onde uma dada população poderia contar uma história de si mesma, para si própria. Desta forma, o futebol praticado, vivido, discutido e teorizado no Brasil seria um modo específico, entre tantos outros, pelo qual a sociedade brasileira, apresentava-se, revelava-se, deixando-se, portanto, descobrir.

Para o antropólogo, não era salutar teoricamente utilizar um ferramental teórico baseado na concepção moderna do indivíduo universal, desenvolvido na Europa, em países como o Brasil que estava em processo de desenvolvimento. Especificamente aqui havia o indivíduo e a pessoa, a sociedade moderna e a sociedade tradicional. Havia o individualismo, as leis universais, o governo e o Estado, de um lado; e a família, os laços de parentescos, de apadrinhados e de lealdades pessoais, do outro. Em resumo, existia a “rua” e existia a “casa”. A contradição era que o futebol no Brasil consistia numa ponte entre a sociedade moderna e a tradicional, entre o indivíduo e a pessoas, entre a “rua” e a “casa”. O futebol era esporte e jogo ao mesmo tempo.

Enquanto esporte, o futebol possibilitava a disciplina das massas, afinal os torcedores tinham regras a obedecer, hora certa para chegar, um lugar para ocupar no interior do estádio, e um comportamento com limites bem definidos. O futebol também possibilitava a introdução da concepção de fair play, já que positivava a ideia da igualdade das regras para ambos os times, a igualdade de oportunidades, a banalização da perda. Afirmava valores caros para o mundo ocidental como o individualismo, afinal era você que escolhia o time que iria torcer; o igualitarismo, já que todos começavam o jogo em condições iguais; e a isonomia, pois a regra valia para todos. Afirmava a competição como uma atividade rotineira. Quem ganhava era quem tinha mais competência, mais talento e melhor desempenho. Finalmente, o futebol era esporte porque dava uma lição de democracia, onde as leis tinham de ser obedecidas por todos, onde as regras não podiam ser mudadas e onde havia alternância entre vitoriosos e perdedores.

Bombeiros e Defesa Civil trabalham após incêndio no Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, na zona norte do Rio. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil.

Entretanto, para DaMatta, o futebol brasileiro não era somente um esporte. Era também um jogo, situado numa zona intermediária entre a festa popular, onde atores e espectadores se confundiam carnavalescamente, e o espetáculo erudito, onde atores e espectadores estavam rigorosamente separados. O torcedor estava separado dos jogadores, mas interagia com eles, através dos seus gritos, cânticos, bandeiras, uniformes, confetes, serpentinas, fumaças, luzes e demais apetrechos. O futebol também possibilitava a formação de novas comunidades, novas famílias, diferentes das famílias e comunidades tradicionais. Agora era possível escolher a que comunidade iria pertencer, a que time iria torcer, recriando num nível moderno a comunidade na “rua”. Além disso, o futebol carregava a ideia de destino. A imprevisibilidade do futebol deixava-o próximo da religião, da transcendência, da sorte e do destino. Por causa dos poucos tentos feitos numa partida, quando comparado com outros esportes coletivos, o resultado era mais imponderável. Finalmente o futebol era considerado um jogo devido à ênfase na utilização das partes baixas do corpo, com destaque dos quadris e da cintura, da mesma forma que o samba e a capoeira. Desta forma, o jogo – e não o esporte – possibilitou a criação de um estilo brasileiro de praticar o futebol, caracterizado pelo “jogo de cintura”. [iv]

A teoria damatiana do futebol sofreu diversas críticas ao longo dos anos como: a ausência de conflitos sociais, a essencialização do futebol brasileiro sem a perspectiva de mudanças históricas e, principalmente, uma certa ingenuidade ao afirmar que o futebol possibilitava uma “escola de democracia” para a sociedade brasileira. Entretanto, o valor da sua teoria era inegável. Ela mostrou que era possível criar um arcabouço teórico e metodológico que, sem negar os referenciais estrangeiros, permitia visualizar as especificidades da sociedade brasileira.

Em relação à última crítica – da ingenuidade em afirmar que o futebol consistia em uma verdadeira “escola de democracia” para os brasileiros – é importante compreendermos que o autor estava vivenciando e sendo influenciado pelo contexto político social da época. Basta ver que a ideia do fair play, de ganhar praticando um futebol criativo e habilidoso e sempre de forma honesta e justa, não estava restrita ao meio acadêmico. Era uma concepção defendida por grande parte da imprensa, era uma ideia que permeava a história de vida de diversos jogadores da época como Afonsinho, Reinaldo, Zico e Sócrates e era um valor que se pretendia hegemônico por amplos setores da sociedade civil, não somente para o futebol, mas para todos que aspiravam construir uma democracia plena. [v]

Grande exemplo para a sociedade brasileira, hoje, que arde juntamente como o Museu Nacional. Parece que, em nossa história recente, o processo de luta e construção de uma cidadania plena em direitos civis, políticos e sociais, tão virtuoso nas décadas de 1970 e 1980, foi em algum momento interrompido.

As labaredas estão ardendo em 2018. Pode-se argumenta com toda a razão que o incêndio não atinge somente o Brasil. Mas me parece que devido as nossas fragilidades institucionais, de cidadania e de cultura política democrática, as mudanças aqui ocorrerão de forma mais drástica, mais absoluta. A caixa de Pandora foi aberta e não sei se, quando conseguirmos fechá-la, sobrará algo.

É muito esgoto, é muita escravidão, é muito preconceito!


NOTAS:

[i] DAMATTA, Roberto et. al.. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

[ii] Idem, p. 74.

[iii] Idem, p. 21.

[iv] Idem, p. 19-42.

[v] Não podemos esquecer que outros autores, ligados direta ou indiretamente à academia, escreveram artigos e livros sobre a temática na mesma época. Alguns identificaram o futebol como um aparelho ideológico do Estado. Ver: DIEGUEZ, Gilda Korff (org.). Esporte e poder. Petrópolis: Vozes, 1985; RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia e poder. Petrópolis: Vozes, 1984. Outros buscaram uma mudança de perspectiva. No livro Futebol e cultura, organizado pelos historiadores da Universidade de São Paulo (USP) José Carlos Sebe Bom Meihy e José Sebastião Witter, a tendência de considerar “o futebol o ópio do povo” foi redimensionada. Segundo Meihy, era notória a tentativa de calar o povo, subjugando-o a comportamentos de massa passiva, amorfa e fanfarrona. Para ele, ficava claro que a noção de política como algo nocivo e a preferência popular pelo futebol como algo saudável, era interessante para quem pondo-se ao lado da massa procurava roubar-lhe a capacidade de participação e rotular o esporte como “ópio do povo”. Ver: MEIHY, José Carlos Sebe Bom; WITTER, José Sebastião (orgs.). Futebol e cultura: coletânea de estudos. São Paulo: IMESP/DAESP, 1982. Sobre futebol e política, ver também: SANTOS, Joel Rufino dos. História política do futebol brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. Brasil, Museu Nacional, futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 112, n. 15, 2018.
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