Existem certas cenas, certos filmes, certas fotografias que sintetizam um momento, um período histórico. As labaredas queimando o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, é para mim a cena definitiva de uma era, e talvez de uma sociedade. Nunca vi uma cena tão chocante quanto aquela. Chorei sem saber direito porque estava chorando. Era muita coisa junto. O meu sentimento era que viraram cinzas não somente o museu mais antigo do Brasil, fundado por D. João VI em 1818; não somente um dos prédios que melhor representa a formação do Estado brasileiro, tendo sido residência oficial de D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II; não somente o trabalho de seis ou sete gerações de pesquisadores; não somente as lembranças da infância, alegres e afetivas, fazendo picnics com a família nos jardins da Quinta da Boa Vista, visitando as “girafas e elefantes” no jardim zoológico e os “dinossauros e múmias” no museu. Viraram cinzas, talvez, naquela noite, todo um projeto de civilidade que tentamos construir nos últimos duzentos anos.
Voltando a história do prédio, quando a Corte Portuguesa desembarcou no Rio de Janeiro em 1808, a primeira moradia da Família Real foi o atual Paço Imperial, situado na Praça XV. A realeza considerou-a pouco confortável e se transferiu no ano seguinte para a Quinta da Boa Vista, que passou a ser a residência oficial dos monarcas até 1889.
Após a efetivação da República, abrigou a Assembleia Constituinte entre os anos de 1889 e 1891. E logo após, em 25 de junho de 1892, se tornou a nova sede do Museu Nacional. O seu imenso acervo era composto por cerca de 20 milhões de artefatos, como o crânio de “Luzia” que datava de 11 mil anos, a documentação linguística de povos extintos, o trono do Rei Adandozan (1718-1818) de Daomé, a coleção de arte e artefatos greco-romanos, os sarcófagos e múmias do Egito Antigo, os esqueletos de dinossauros e a coleção de aves empalhadas com quase 200 anos de idade. Além disso, o Museu abrigava inúmeros departamentos de pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como os de Antropologia, Botânica, Entomologia, Geologia e Paleontologia, Vertebrados e Invertebrados.
Nesse imenso oceano que é o Museu Nacional, gostaria de destacar uma pequena enseada chamada Universo do futebol, livro publicado em 1982 por antropólogos ligados à instituição. [i] Dentro da dimensão do que é o Museu Nacional, a obra pode ser considerada “pequena”. Mas teve uma importância fundamental para a consolidação das pesquisas sobre futebol, que até então eram consideradas de menor valor para o meio acadêmico.
O livro reunia os seguintes artigos: “Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro”, de Roberto DaMatta; “Na zona do agrião. Algumas mensagens ideológicas do futebol”, de Luiz Felipe Baêta Neves Flores; “Subúrbio: celeiro de craques”, de Simoni Lahud Guedes; “O momento feliz, reflexões sobre o futebol e o ethos nacional”, de Arno Vogel.
No seu artigo, Vogel evidenciou como o futebol e as conquistas das Copas do Mundo possibilitaram aos próprios brasileiros a construção de uma história positiva do Brasil, uma história que poderia ser contada sem mágoas ou ressentimentos. Já Guedes demonstrou, através da história de vida de trabalhadores, que o futebol possibilitava a mobilidade social de alguns indivíduos particularmente habilidosos. Assim, o jogo de futebol cumpria “funções simbólicas e sociais complexas, atualizando inclusões e exclusões, reforçando, criando e cortando laços sociais, atuando como mecanismo reprodutor e reinterpretativo de ideologias”. [ii] E Flores tratou o futebol como “um universo em aberto”, onde o esporte podia emitir mensagens que se articulavam quer com o que poderíamos indicar genericamente como a ideologia da permanência, quer com o que, também genericamente, chamaríamos de ideologia da transformação. Ou seja, o seu artigo era um estudo das possibilidades de apropriação ideológica que se poderia ter do futebol como fenômeno social.
E finalmente, contra os intelectuais que defendiam que “o futebol era o ópio do povo”, a opção teórica de DaMatta em seu artigo foi que o futebol possibilitou a dramatização da sociedade brasileira. Nas palavras do antropólogo: “Estudando o futebol e o esporte como um drama, pretendo analisar essas atividades como modos privilegiados através dos quais a sociedade se deixa perceber ou ‘ler’ por seus membros”. [iii] O rito e o drama seriam um determinado ângulo de onde uma dada população poderia contar uma história de si mesma, para si própria. Desta forma, o futebol praticado, vivido, discutido e teorizado no Brasil seria um modo específico, entre tantos outros, pelo qual a sociedade brasileira, apresentava-se, revelava-se, deixando-se, portanto, descobrir.
Para o antropólogo, não era salutar teoricamente utilizar um ferramental teórico baseado na concepção moderna do indivíduo universal, desenvolvido na Europa, em países como o Brasil que estava em processo de desenvolvimento. Especificamente aqui havia o indivíduo e a pessoa, a sociedade moderna e a sociedade tradicional. Havia o individualismo, as leis universais, o governo e o Estado, de um lado; e a família, os laços de parentescos, de apadrinhados e de lealdades pessoais, do outro. Em resumo, existia a “rua” e existia a “casa”. A contradição era que o futebol no Brasil consistia numa ponte entre a sociedade moderna e a tradicional, entre o indivíduo e a pessoas, entre a “rua” e a “casa”. O futebol era esporte e jogo ao mesmo tempo.
Enquanto esporte, o futebol possibilitava a disciplina das massas, afinal os torcedores tinham regras a obedecer, hora certa para chegar, um lugar para ocupar no interior do estádio, e um comportamento com limites bem definidos. O futebol também possibilitava a introdução da concepção de fair play, já que positivava a ideia da igualdade das regras para ambos os times, a igualdade de oportunidades, a banalização da perda. Afirmava valores caros para o mundo ocidental como o individualismo, afinal era você que escolhia o time que iria torcer; o igualitarismo, já que todos começavam o jogo em condições iguais; e a isonomia, pois a regra valia para todos. Afirmava a competição como uma atividade rotineira. Quem ganhava era quem tinha mais competência, mais talento e melhor desempenho. Finalmente, o futebol era esporte porque dava uma lição de democracia, onde as leis tinham de ser obedecidas por todos, onde as regras não podiam ser mudadas e onde havia alternância entre vitoriosos e perdedores.
Entretanto, para DaMatta, o futebol brasileiro não era somente um esporte. Era também um jogo, situado numa zona intermediária entre a festa popular, onde atores e espectadores se confundiam carnavalescamente, e o espetáculo erudito, onde atores e espectadores estavam rigorosamente separados. O torcedor estava separado dos jogadores, mas interagia com eles, através dos seus gritos, cânticos, bandeiras, uniformes, confetes, serpentinas, fumaças, luzes e demais apetrechos. O futebol também possibilitava a formação de novas comunidades, novas famílias, diferentes das famílias e comunidades tradicionais. Agora era possível escolher a que comunidade iria pertencer, a que time iria torcer, recriando num nível moderno a comunidade na “rua”. Além disso, o futebol carregava a ideia de destino. A imprevisibilidade do futebol deixava-o próximo da religião, da transcendência, da sorte e do destino. Por causa dos poucos tentos feitos numa partida, quando comparado com outros esportes coletivos, o resultado era mais imponderável. Finalmente o futebol era considerado um jogo devido à ênfase na utilização das partes baixas do corpo, com destaque dos quadris e da cintura, da mesma forma que o samba e a capoeira. Desta forma, o jogo – e não o esporte – possibilitou a criação de um estilo brasileiro de praticar o futebol, caracterizado pelo “jogo de cintura”. [iv]
A teoria damatiana do futebol sofreu diversas críticas ao longo dos anos como: a ausência de conflitos sociais, a essencialização do futebol brasileiro sem a perspectiva de mudanças históricas e, principalmente, uma certa ingenuidade ao afirmar que o futebol possibilitava uma “escola de democracia” para a sociedade brasileira. Entretanto, o valor da sua teoria era inegável. Ela mostrou que era possível criar um arcabouço teórico e metodológico que, sem negar os referenciais estrangeiros, permitia visualizar as especificidades da sociedade brasileira.
Em relação à última crítica – da ingenuidade em afirmar que o futebol consistia em uma verdadeira “escola de democracia” para os brasileiros – é importante compreendermos que o autor estava vivenciando e sendo influenciado pelo contexto político social da época. Basta ver que a ideia do fair play, de ganhar praticando um futebol criativo e habilidoso e sempre de forma honesta e justa, não estava restrita ao meio acadêmico. Era uma concepção defendida por grande parte da imprensa, era uma ideia que permeava a história de vida de diversos jogadores da época como Afonsinho, Reinaldo, Zico e Sócrates e era um valor que se pretendia hegemônico por amplos setores da sociedade civil, não somente para o futebol, mas para todos que aspiravam construir uma democracia plena. [v]
Grande exemplo para a sociedade brasileira, hoje, que arde juntamente como o Museu Nacional. Parece que, em nossa história recente, o processo de luta e construção de uma cidadania plena em direitos civis, políticos e sociais, tão virtuoso nas décadas de 1970 e 1980, foi em algum momento interrompido.
As labaredas estão ardendo em 2018. Pode-se argumenta com toda a razão que o incêndio não atinge somente o Brasil. Mas me parece que devido as nossas fragilidades institucionais, de cidadania e de cultura política democrática, as mudanças aqui ocorrerão de forma mais drástica, mais absoluta. A caixa de Pandora foi aberta e não sei se, quando conseguirmos fechá-la, sobrará algo.
É muito esgoto, é muita escravidão, é muito preconceito!
NOTAS:
[ii] Idem, p. 74.
[iii] Idem, p. 21.
[iv] Idem, p. 19-42.
[v] Não podemos esquecer que outros autores, ligados direta ou indiretamente à academia, escreveram artigos e livros sobre a temática na mesma época. Alguns identificaram o futebol como um aparelho ideológico do Estado. Ver: DIEGUEZ, Gilda Korff (org.). Esporte e poder. Petrópolis: Vozes, 1985; RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia e poder. Petrópolis: Vozes, 1984. Outros buscaram uma mudança de perspectiva. No livro Futebol e cultura, organizado pelos historiadores da Universidade de São Paulo (USP) José Carlos Sebe Bom Meihy e José Sebastião Witter, a tendência de considerar “o futebol o ópio do povo” foi redimensionada. Segundo Meihy, era notória a tentativa de calar o povo, subjugando-o a comportamentos de massa passiva, amorfa e fanfarrona. Para ele, ficava claro que a noção de política como algo nocivo e a preferência popular pelo futebol como algo saudável, era interessante para quem pondo-se ao lado da massa procurava roubar-lhe a capacidade de participação e rotular o esporte como “ópio do povo”. Ver: MEIHY, José Carlos Sebe Bom; WITTER, José Sebastião (orgs.). Futebol e cultura: coletânea de estudos. São Paulo: IMESP/DAESP, 1982. Sobre futebol e política, ver também: SANTOS, Joel Rufino dos. História política do futebol brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981.