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“A brecha que o sistema queria”: o caso Pacaembu 22 anos depois (Parte IV)

Fabio Perina 22 de novembro de 2017

Creio que nenhuma estratégia reacionária não dura nem um minuto sem perder coerência conforme se aprofunda na sua ganância reacionária.

Por exemplo, o discurso corrente que é preciso acabar com a violência no futebol para que as “famílias de bem” voltem a frequentá-lo. Já está envelhecido o suficiente por não considerar que a recente elitização trouxe uma forte exclusão das famílias de classes populares de usufruírem o futebol como lazer. Bem como já parte de um pressuposto equivocado que torcedor organizado não tenha família por supostamente ser marginal.

O tiro também sai pela culatra quando se pune tanto a cultura torcedora (inclusive no que vai além das Torcidas Organizadas) que não sobra nada de vibração e festa nos estádios. Assim cada vez menos gente se interessa a ir pros estádios no dia a dia, e, no limite, podem se desinteressar até por assistir futebol.

É curiosa a grande contradição que tanto mídia como opinião pública em geral olham para um mesmo sinalizador numa arquibancada no Brasil ou na Argentina e em um caso o censuram e no outro o admiram! Isso só pode levar a crer que querem ver os brasileiros ‘consumindo’ a festa dos outros pela televisão, mas não protagonistas de sua própria festa na arquibancada.

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Sinalizadores na arquibancada. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Uma situação curiosa que conto aos amigos do quanto a repressão e o controle, até para os motivos mais banais, está em vigor é que qualquer um pode encher uma mochila com objetos pessoais cotidianos (como desodorante, tesoura, escova, etc.) e depois pode subir em um avião e ir para qualquer parte do mundo ou dar um passeio por qualquer parte da cidade com ela que é permitido. Menos no estádio de futebol!

E mais, a sociedade em geral se dá por satisfeita com medidas “exemplares” como jogos com torcida única como se a única solução fosse do tipo “guerra contra a criminalidade”. Essa é uma medida que interessa apenas a defender os lucros do espetáculo esportivo, mas que gera situações ainda mais imprevisíveis para a segurança pública, pois em qualquer canto da cidade apenas uma das torcidas pode ser identificada em seu caminho, mas a outra não. É espantoso como não se questiona a inteligência(!) de quem defende torcida única se cada vez mais as ocorrências graves são cada vez mais longe dos estádios.

Ou ainda, a ganância punitiva de federações e ministérios públicos é tão grande que se hoje decreta a punição a uma torcida sem poder entrar com materiais, num dia depois que alguns membros dela se envolverem em confusão dentro do estádio não poderão pela lógica levar a punições pra entidade, pois formalmente ela não estava no estádio!

Assim, tanto pela lógica quanto pelas evidências concretas se percebe a incapacidade das medidas mais comuns em combater a violência envolvida no futebol. Seja a torcida única, seja a extinção da entidade, ambas tem em comum a exclusão do torcedor e da Torcida Organizada como cidadão com direitos e responsabilidades e com livre direito de associação.

Essa cultura punitiva parece ser a forma mais moderna de autodestruição da sociedade ao fazer com que o abuso de poder e o estado de exceção sejam parte da rotina junto da criminalização do diferente como se fosse inimigo. O que muitos não percebem é que quanto mais a sociedade for conivente com penas severas para motivos banais, apenas para atender a sanha por vingança de alguns, uma hora alguma “caça às bruxas” irá enquadrar cada um de nós apenas pelo grupo social que somos reconhecidos.

Os ingleses, diante do contexto do relatório Taylor, diziam que tratando os torcedores como animais eles se tornariam animais. Porém pareceu ser uma formulação vaga o suficiente para se encaixar até mesmo num projeto de elitizar os estádios como se os alambrados fossem os grandes culpados. O que poucos afirmam é: excluíram os torcedores e ainda esperam que aceite isso pacificamente! Não foi direcionada pelo lado de tratar o torcedor como um agente de direitos e politizá-lo, mas sim de modernizar a estrutura tirando os alambrados!

Falam da violência que ele possa cometer, mas não se fala da exclusão que veio antes.

Os problemas mais sérios do nosso futebol são um simulacro dos problemas da nossa sociedade[1].

Como já deu pra se perceber até aqui esse tema exige debates mais frequentes e profundos; e claro que esse texto não pretende explorar as várias conexões entre o que se poderia chamar “mundo das torcidas” e a sociedade, mas apenas citar alguns tópicos possíveis.

Não basta se conformar que hoje o futebol ‘precisa’ cobrar mais caro pelo ingresso porque mudou o perfil da classe trabalhadora durante a década de 2000, com maior poder de compra, e se diversificaram as opções de entretenimento. Isso apenas serve para encarar um problema social como mero ajuste técnico e por um ponto final na discussão que interessa à elitização dos ingressos.

As conexões com a sociedade precisam tocar em situações muito mais profundas. Se esse texto busca falar de elitização e criminalização contra as Torcidas Organizadas, na sua maior parte elas foram vítimas desse processo, mas também houve uma certa margem para elas próprias reproduzirem certas formas de elitização e criminalização que se enraizaram. Numa sociedade que caminha a ser cada vez mais individualista e violenta em relação há 20 anos, cada membro e cada Torcida não resiste passar impune a esses processos.

De lá pra cá tem sido tão mais frequente o desmonte de políticas públicas de lazer, abrindo espaço para o entretenimento privado especulativo, isso também se reflete numa pior oferta de lazer para jovens da periferia. Se nos anos 90 era comum o discurso de membros de Torcida Organizada que os jovens se atraíam pela torcida para aliviar sua revolta e sua frustrações, isso também parece ter se atualizado na forma de uma piora de vários serviços públicos até os dias de hoje.

Hoje em dia para se resolver os problemas da sociedade também tem sido é o mesmo proceder que predomina para regular os problemas do futebol (dentre de campo ou fora dele): sempre é mais fácil proibir a todos ao invés de se prevenir ou investigar os poucos responsáveis pelo ato.

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Polícia escolta torcedores do Corinthians antes do clássico contra o Palmeiras 2015 antes da implementação da torcida única. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Fala-se que o Brasil é o país da impunidade, mas não para as classes populares reféns de um Código Penal que aplica punições severas demais e que levam a um sistema prisional fracassado e lotado.

Para se prevenir de verdade a violência associada ao futebol não é preciso que se criem novas leis. Muito menos novas leis que generalizam punir uma entidade inteira. A impunidade continua enquanto se deixa de lado o princípio da responsabilidade individual de cada um.

Portanto, um cidadão esmagado no transporte público precário pode ser o mesmo torcedor esmagado em filas pra entrar nos estádios; o policial que reprime manifestações nas ruas tende a cumprir o mesmo papel reprimindo torcedores; a autoridade que numa ‘canetada’ vinda de seu gabinete prejudica vários cidadãos tende a cumprir o mesmo papel prejudicando torcedores.

A reforma do Estatuto do Torcedor de 2010 permite que uma Torcida Organizada inteira pague pelo erro de uns poucos membros. E permitindo criminalizar os mais diversos acessórios e condutas de festas nas arquibancadas, na medida que a legislação é vaga e dá ao policiamento poder arbitrário de decidir caso a caso o que pode ser considerado provocação e apologia à violência, sobrando pouca margem de expressão.[2]

O problema da violência é demasiado profundo e nesse texto vou dedicar apenas algumas breves reflexões. Grande parte da sociedade costuma se chocar porque uma minoria se revolta contra o sistema, mas nunca se pergunta como que uma maioria ainda aceita não se revoltar contra o sistema…

Desde o seu nascimento as Torcidas Organizadas precisam enfrentar a situação pela qual o povo incomoda os poderosos; e o povo organizado incomoda muito mais. Hoje não chega a ser muito diferente as políticas reacionárias de se remover pobres dos novos estádios e remover das ruas de áreas nobres. Ou as políticas reacionárias de se criminalizar organizações torcedoras e criminalizar movimentos sociais.

A ditadura militar não terminou no sentido que deixou um aparelho de Estado cada vez mais repressivo. E junto dele lhe dando legitimidade uma cultura repressiva e punitiva, na medida que diariamente a “teoria do inimigo interno” é invocada contra diversos grupos sociais que se quer exterminar, e o torcedor organizado é nesse sentido um ‘boi de piranha’ conveniente.

Sobre a violência, é preciso questionar, mais do que porque ela aumenta, mas porque os mecanismos da sua canalização e institucionalização não estão mais sendo eficientes. Algum local para desaguar toda a violência simbólica tem que ter, senão a violência física fica cada vez mais frequente, sem regras, direta e cruel.

Mas não. Hoje parece ser quase unanimidade absoluta no futebol, por seus diversos atores sociais e formadores de opinião, que qualquer provocação seja censurada como “incitação à violência”. Havendo uma nova cruzada moral de doutrinar e pacificar os ânimos de todos.[3]

Se hoje o estádio não consegue cumprir com tal necessidade, as Torcidas Organizadas aparentam depois de iniciada essa era de proibições terem assumido duas caras: da ‘bancada’ e da ‘pista’—e que talvez não vão se reconciliar mais. E está muito longe de compreender a violência mais profunda nas Torcidas Organizadas apenas quem olhe para a situação de dentro dos estádios durante os 90 minutos.

Quis um capricho do destino que o incidente no maior clássico paulista (Palmeiras x Corinthians) no dia 03/04/2016 fosse bem longe do Pacaembu, e não mais dentro dele como em 20/08/1995. Dessa vez a vítima fatal indo contra as estatísticas dos últimos anos ao não pertencer a nenhuma Torcida Organizada. Mas o que ficará mais marcado nesse novo capítulo da “caça às bruxas”, que também inclui mandatos de prisão, é a punição de torcida única para todos os clássicos paulistas. Bem como a proibição de qualquer material de Torcidas Organizadas em qualquer estádio paulista (inclusive para as que são de outros Estados!). Das muitas “proezas” repressivas que a promotoria e o governo estaduais conseguiram fazer, dessa vez realmente “capricharam” na capacidade de punir milhares de torcedores que não tinham nada a ver com o ocorrido que não poderão entrar como visitantes. E sem alterar em nada a criminalidade nas ruas.

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Palmeiras 1 x 0 Corinthians, primeira fase do Paulistão (03/04/2016). Pacaembu não recebia o clássico desde 2014. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Como já disse Karl Marx, os grandes fatos da história acontecem primeiro como tragédia depois como farsa. Uma semelhança muito infame nesse cenário armado foi o papel de autoridades do campo jurídico encontrarem no tema das Torcidas Organizadas uma oportunidade de notoriedade e posterior carreira política ao acelerarem as medidas repressivas e delas fazerem um uso passional. Antes, Fernando Capez. Agora, Alexandre de Morais e Paulo de Castilho.

Para quem não se lembra, naqueles primeiros meses de 2016 a política estadual estava bastante agitada com a “máfia da merenda” de Capez e a política nacional com o impeachment de Dilma. Como era de se esperar (quem ainda ousa dizer que o futebol é alienador?), as torcidas e as arquibancadas em geral mostraram o seu valor manifestando-se por medidas mais democráticas[4]. Os “coveiros” da mobilização popular, aqueles que ainda insistem em ver o futebol como ópio do povo, tiveram que engolir o povo se organizando em arquibancadas como representação da situação nas ruas fora delas. Soa, assim, como muito além de mera coincidência a notória investida punitiva do poder público ao procurar aproveitar uma ocasião e recolocar as Torcidas Organizadas na mira como única alternativa de frearem os protestos populares e desviarem a atenção de um cenário político com conflitos tão evidentes.

Passados aqueles meses de mobilizações tão efervescentes, quando, mesmo vendo-se, como se diz no boxe, “entre as cordas e abrindo contagem”, as Torcidas Organizadas assumiram sua responsabilidade social, uma vez consumado esse novo pacote de punições elas foram novamente abandonadas pelos principais agentes do futebol. Tive a impressão que pouca ou nenhuma indignação ou solidariedade foi notada por parte de tantos jornalistas (desses dificilmente esperamos algo de positivo mesmo!), pesquisadores, militantes e coletivos que vem procurando lutar “contra o futebol moderno”. Talvez esse afastamento deu-se por não se sentirem afetados pelas novas medidas, ou seja lá quais outras hipóteses, mas com certeza todo torcedor perde se limitar a compreensão das punições como problema exclusivo das Torcidas Organizadas. Trocando em miúdos, quando nos indignamos nas redes sociais com as punições dizendo que “só falta um dia não poder mais cantar!”, esse dia pode estar mais próximo do que imaginamos…

Em dezembro de 2016, aproveitando a comoção pela tragédia do avião da Chapecoense, as diretorias das principais Torcidas Organizadas paulistas foram ao Pacaembu para um grito de paz num encontro inédito entre rivais.

No dia 1º de agosto de 2017 elas reabriram negociações com o poder público para a volta progressiva dos materiais de festa e de identificação das entidades nas arquibancadas através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).

Encerrando esse dossiê, não posso deixar de relatar esse dois fatos nos últimos meses da luta pela volta das Torcidas Organizadas paulistas, de fato e de direito. Inteligentes e organizadas que são, as diretorias viram as sucessivas ciladas que lhes foram armadas e precisaram se prevenir do fim das entidades que caminhava. Evidente que tais fatos não foram unânimes entre seus membros. Ao mesmo tempo, o sistema procura dividi-las. Seja entre as entidades, pois com base na ideologia de cada uma optaram por diferentes estratégias entre protestar ou negociar com o poder público. Seja dentro das próprias entidades, com muitas diretorias excluindo membros isoladamente ou até ‘bondes’ inteiros. Exclusões saudadas com entusiasmo por agentes externos como a mídia e o poder público ao sugerirem como novo ‘discurso único’ que sua única sobrevivência se dará “separando a parte podre”—mas evidente que se não conhecem o dia a dia da torcida não podem ir além dessa superficialidade. Somente os próximos passos dessa luta tão complexa podem caracterizar se o que se fez até aqui foi um recuo estratégico e inteligente ou ter abaixado a cabeça ao “sistema”…

[1] https://medium.com/@BA1909/s%C3%A3o-sempre-os-mesmos-ser%C3%A1-ed184a7134c3

[2] Para saber mais: GOMES, Luiz Flávio, et al. “Estatuto do Torcedor comentado.” São Paulo: Revista dos Tribunais (2011).; ZIESEMER, Henrique da Rosa et al. Análise crítica sobre o estatuto do torcedor: do esvaziamento das políticas de segurança à expansão da judicialização da violência nos estádios. 2012.; PEREIRA OLIVEIRA, Lucas et al. A ineficácia dos instrumentos jurídicos atuais no combate à violência nos estádios. 2014.

[3] “Cerco”. De Varsóvia? Não, da Rua Turiassú. Pelo silencio dos ‘cidadãos de bem’ da Pompéia…
http://espnfc.espn.uol.com.br/palmeiras/o-periquitao/7110-os-doces-barbaros-a-torcida-do-palmeiras-fez-historia

http://espnfc.espn.uol.com.br/palmeiras/o-periquitao/11438-allianz-parque-e-a-vassoura-do-desprezo

[4] Todo estádio é um pequeno projeto de sociedade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. “A brecha que o sistema queria”: o caso Pacaembu 22 anos depois (Parte IV). Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 22, 2017.
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