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Camisa n° 1 – O primeiro nome, o último homem: o penoso ofício do goleiro

Allef Souza 12 de outubro de 2020
Foto: Pixabay

Seja nos grandes palcos em que desfilam as estrelas deste amado esporte, ou nos campos de várzea, daqueles mais caídos, em que o pé descalço e sofrido entra em contato direto com a terra, sempre existirá a figura do homem solitário, que repousa seu olhar atento na esfera que acaba de ser chutada pelo adversário, sem muita precisão. Esta, vem ao seu encontro de forma macia, quase como quem quer um afago, oferecendo – se àquelas mãos dedicadas ao ofício, por vezes cobertas pelas grossas luvas, em outras, apenas na proteção natural da pele. E ai, quando menos se espera…

_ FRANGUEIROOOOOOOO!

O ilustre Belchior com seu marcante bigode traduziu bem a sensação dessa figura que se encontra embaixo das traves, “Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol”. Ouso dizer que não existe nesse mundo ofício mais ingrato que a do goleiro, talvez a de locutor de rádio católica, narrando jogo da seleção Chinesa, ou entrevistando o ligeiro atacante Gil.

Neste homem, que vive em boa parte do tempo sozinho em sua grande área (vide São Marcos e seu cafezinho na Libertadores de 2000), isso, claro, se seus defensores ajudarem, tem área de goleiro que é mais movimentado que o aeroporto de Cumbica. É nele que o destino do jogo está literalmente nas mãos.

Não só em mãos, mas pernas, cabeça, peito ou pés, seja como Victor, que com o pé esquerdo garantiu a vaga do Galo para a semifinal da Libertadores, que consequentemente seria vencida pelo time mineiro, ou como a famosa e irreverente “Defesa escorpião, do colombiano Higuita. Mas essa não é lá muito recomendada, visto que aumenta as chances de ataques cardíacos nos torcedores e apostadores, além de alguns desacatos remetidos a mãe do arqueiro.

Esta figura que entra em campo trajando vestes de cores diferentes dos demais companheiros (Jorge Campos fugia a regra, se vestia diferente de qualquer outro ser humano), joga onde mal nasce grama, não recebe o mesmo prestígio que um atacante que empate o jogo nos acréscimos, mesmo que o arqueiro faça uma defesa impedindo o empate, também não recebe a mesma fama que um camisa 10 que dita o movimento do jogo, muito embora tenha que impedir toda essa movimentação à base de reflexos e porquê não dizer, coragem?

A camisa que carrega o número 1 nas costas, envergada por esse herói que não veste capa, mas que muitas vezes voa feito tal figura, representa antes de tudo confiança. Há de se confiar a um homem, mortal como todos em campo e fora dele, a proteção do objetivo mais quisto dentro de um estádio, buscado incansavelmente pelos ágeis pontas ou pelo sanguinário camisa 9.

Há de ser confiança, quando não, ou é porque você está acima do peso (os gordinhos sempre acabam no gol, eu acabei parando lá assim), ou porque o jogador em questão é completamente inábil, o famoso cone, para os mais chegados às gírias do ludopédio.

O primeiro homem dentro das numerações é também o último a qual se concentra a fé, quando este se encontra cara a cara com o atacante, é a figura a qual todos correm em direção na hora das penalidades, é a personagem que sempre aparecerá em um jogo, pro bem ou pro mal, a este homem, são 90 minutos sem falhas.

Barbosa. Foto: Wikipedia.

Foi essa “falha” (?), que marcou a carreira de Barbosa, goleiro da seleção de 50, sofreu em sua pele o pesado fardo dessa difícil função. O cronista Armando Nogueira é quem melhor retrata (em poucas palavras) a figura de Barbosa: “Certamente, a criatura mais injustiçada na história do futebol brasileiro. Era um goleiro magistral. Fazia milagres, desviando de mão trocada bolas envenenadas. O gol de Ghiggia, na final da Copa de 50, caiu-lhe como uma maldição. E quanto mais vejo o lance, mais o absolvo. Aquele jogo o Brasil perdeu na véspera.”

Fato é que a culpa jamais foi de Barbosa, mas este carregou consigo por todo restante da vida, como um goleiro que agarra uma bola indefensável e não pode pensar em soltar. Barbosa ilustra da forma mais trágica possível o que é essa função, e como ela vai do céu (a final da copa) ao inferno (a culpa que lhe deram).

Entretanto, como disse Armando, “o Brasil perdeu na véspera”. Diz minha sábia vozinha que só quem morre na véspera é peru, e sinceramente, de peru a frango, seja qual for o penoso, nenhum goleiro encara bem.


 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Allef Eduardo de Souza

Graduado em Letras - Inglês pela UENP, cronista , amante do futebol, da literatura, fã declarado da gigante Inter de Milão e que não dispensa uma mesa de bar.Corinthiano, maloqueiro e sofredor!

Como citar

SOUZA, Allef. Camisa n° 1 – O primeiro nome, o último homem: o penoso ofício do goleiro. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 29, 2020.
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