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Careca da Coligay. E de Eurico Lara, Força Azul e Máquina Tricolor

Novamente aproveito um dia emblemático, este 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBT+, para compartilhar mais um pouco sobre a história da Coligay.

A data faz referência à chamada Rebelião de Stonewall. Na madrugada desse dia, o bar gay Stonewall Inn, em Nova Iorque, foi alvo de uma incursão policial. Algo relativamente comum na época. A diferença se deu por conta da violência policial, que foi maior do que de costume e levou a um confronto amplificado pelo envolvimento de vizinhos e frequentadores de outros bares da região.

A repercussão imediatamente canalizou a revolta contra a repressão à comunidade LGBT+. Milhares retornaram ao local nas noites seguintes, estendendo o protesto por cinco dias. No aniversário de um ano do episódio, foram motivo de manifestações em Nova Iorque, Los Angeles e Chicago – vistas, inclusive, como pioneiras das marchas LGBT. Virou símbolo da militância e do calendário LGBT+ nos Estados Unidos e no mundo. É um momento para relembrar a importância de seguir lutando e também de celebrar a diversidade.

Esse texto não possui uma relação direta com os eventos originados em Nova Iorque, mas embarca no espírito de orgulho que sua memória aciona. Trato do orgulho de Osmar Dziekaniaki Rodrigues, mais conhecido como Careca. Quero falar especificamente da trajetória dele. Um gremista gay. Visibilizando, assim, sua experiência como torcedor de futebol, um esporte geralmente inóspito a pessoas como ele.

Nas crescentes produções que circulam sobre a Coligay, Volmar Santos costuma ser a principal referência. Não à toa. Foi fundador e líder do grupo. Personagem fundamental não apenas na criação, como também na manutenção da torcida e de suas características tão marcantes de alegria e criatividade na arquibancada. Só que não fez tudo sozinho. Estava bem acompanhado. Não tivesse quem “comprasse sua ideia”, a torcida não teria se efetivado e atingido tanto sucesso por um punhado de anos. Careca, como muitos outros, pouco ou nunca mencionados, merecem sua parcela de reconhecimento. Ei-la.

Careca nasceu em Rio Grande, no Rio Grande do Sul, no ano de 1948. A cidade lhe deu a primeira noção de pertencimento: com o Sport Club Rio Grande, conhecido pelo título de o mais antigo clube em atividade do país. Tinha também certo apreço pelo Grêmio. Com a mudança para Porto Alegre é que esse sentimento se intensificou.

Foi para a capital gaúcha com 18 anos, valendo-se da casa de uma tia gremista como moradia.  Acompanhava a torcedora fiel regularmente aos jogos no Olímpico. Em pouco tempo, o Imortal Tricolor ganhou a preferência de seu coração.

O aumento e o fortalecimento desse vínculo ocorreram de forma paralela à sua participação em agrupamentos de torcedores. Nas arquibancadas, fez amizade com outros jovens. Passaram a ir aos jogos juntos e começaram a confeccionar bandeiras e papel picado. A animação e a iniciativa lhes trouxeram um convite para integrarem a Eurico Lara, única torcida organizada do Grêmio até então, vinculada à direção do clube na forma de departamento. Visto com os olhos de hoje, pode parecer algo de menor importância. Para eles, era especial. Tanto pelo simbolismo de integrar a torcida do Grêmio, quanto pelos privilégios que daí advinham como frequentar a sede do clube, conviver com outros jovens em atividades do grupo, participar de festas etc.

Careca conta que ele e o grupo de amigos contribuíram para transformações na Eurico Lara, como a implantação de uma bateria, o uso de bandeiras grandes e a utilização de uniformes. Tudo novidade para a época. Entretanto, nem tudo eram flores. O vínculo da Eurico Lara com o clube impedia que os torcedores manifestassem qualquer discordância com a diretoria. Alguns então decidiram sair em busca de autonomia.

Surgia a primeira torcida organizada independente do Tricolor, a Força Azul. Careca estava entre os fundadores, lá em 1974. Uma “torcida familiar”, segundo seu relato, numa clara referência às relações de muita proximidade, afeto e respeito construídas entre os/as integrantes, nem todos efetivamente parentes. Havia casais, filhos e filhas, irmãos e irmãs, mas também muitos integrantes que eram, assim como Careca, de cidades do interior e com poucos ou nenhum familiar em Porto Alegre, o que até contribuía para reforçar a aproximação com os/as colegas.

A Força Azul cresceu e ficou conhecida entre gremistas, mantendo-se em atividade por décadas. Careca deixou de participar poucos anos após seu início. A saída ou o afastamento de algumas lideranças gerou uma briga por poder que enfraqueceu a torcida e levou à sua desarticulação. Em meio a esse processo, ele também resolveu tomar outros rumos.

Nesse mesmo período, era frequentador regular da Coliseu, boate porto-alegrense voltada para o público LGBT+. Como gremista apaixonado que era, estava entre os primeiros conhecidos que Volmar Santos, proprietário da casa noturna, convidou para formar a Coligay.

O grupo estreou do Olímpico em abril de 1977. A fama veio também com a conquista do Campeonato Gaúcho daquele ano, o seu primeiro na arquibancada, tirando o Grêmio de uma seca de oito anos sem títulos. Ficou o status de pé-quente.

A Coligay tinha uma performance bastante marcante, classificada como alegre, festiva, animada e mesmo engraçada. Atraíam atenção também por sua indumentária com chapéus, paetês, plumas, purpurina, sapatos de salto, entre outros. “Mas a atração principal era por causa daquela camisola, aquele camisão grande que tinha as letras que formava as letras do Grêmio”, conta Careca (RODRIGUES, 2017, p.11).

Entre suas tantas lembranças como torcedor, ele define uma como a mais marcante: o desfile da Coligay no Beira-Rio, antecedendo à disputa de um Gre-nal em 1979. Talvez para os colorados tenha sido ocasião para tripudiar da “torcida gay” do rival, mas os gremistas não se incomodaram e adoraram ocupar o gramado da casa do adversário.

Careca permaneceu como membro até sua extinção, no início dos anos 1980, ocorrida em função da saída de Volmar. O líder retornou à terra natal, Passo Fundo (RS), e fechou as portas do Coliseu, que funcionava como ponto de encontro e sede da torcida. Não tardou, todavia, para que ele e outros gremistas se mobilizassem para criar uma nova organizada. Em 1982, na companhia de colegas que se reuniam no Bar do Ramon, estabelecimento no entorno do Olímpico, criaram a Máquina Tricolor (ROCHA, 2017). De forma similar à Força Azul, tinha um perfil heterogêneo, com homens, mulheres e crianças. Muitas famílias e mesmo um núcleo mirim, com integrantes de até 15 anos (TORCIDAS, 1997).

Graças a esta torcida é que Careca teve a oportunidade de ir a Tóquio assistir ao título mundial do Grêmio, em 1983. O clube organizou uma ação para ajudar as maiores torcidas da época. A ideia era levar alguns representantes na delegação para acompanhar o confronto com os alemães do Hamburgo, então campeões europeus. As próprias agremiações venderam camisetas autografadas e carnês Jogada de Campeão para financiar as viagens (CRUZ, 1983). A escolha do/a premiado/a cabia, então, a cada organizada. Careca foi um dos dois membros selecionados pela Máquina Tricolor, o que demonstra a valorização da sua contribuição à torcida pelos seus pares.

Quando se mudou para o Rio de Janeiro, ainda na década de 1980, deixou a organizada, a terceira e última de sua vida. O que, de forma alguma, abalou seu vínculo com o clube. Mesmo longe, mantém o hábito de, pela televisão, assistir a todas as partidas do Tricolor. Mostrando a importância dessas ocasiões, contou-me que:

“O Grêmio não é só um time para mim, o Grêmio é uma religião minha, eu tenho uma doença que se chama Grêmio, ‘Grêmio Mania’, que eu… Dia de jogo do Grêmio se você vim me perturbar eu mando você para puta que pariu, porque é a hora que eu tô fazendo a minha oração e não quero ser perturbado por ninguém” (RODRIGUES, 2017, p.4).

Seguiu acompanhando como pôde. Reunia-se a outros gremistas em bares e nos estádios sempre que o Grêmio visitava os cariocas. Na cidade, junto a outros gaúchos, por nove anos organizou uma comemoração de aniversário do clube em meio às festividades da Semana Farroupilha:

“a gente fazia a missa campeira, a gente dava brinde e a gente pedia para que todo mundo fosse com a camiseta do Grêmio” (RODRIGUES, 2017, p.4).

Hoje vive em Maricá. No interior do Rio de Janeiro, com a companhia de menos gremistas, vira-se como pode. Convence muitos amigos a apoiar o clube:

“quem está do meu lado vai ser gremista [riso], porque é uma religião, é tipo uma lavagem, ‘ou tu é meu amigo ou não é?!’” (RODRIGUES, 2017, p.4).

Sala de estar da residência de Osmar Dziekaniaki Rodrigues (Careca). Fonte: Arquivo pessoal de Osmar Dziekaniaki Rodrigues.

A força de seu pertencimento também se percebe na decoração da casa, com todos os espaços coloridos em azul, preto e branco. Sem falar nos escudos aos montes. Não à toa, conta que

“aqui onde eu moro, […] se na entrada perguntar pelo Osmar ninguém sabe, mas se perguntar pelo gremista todo mundo sabe aonde eu moro” (RODRIGUES, 2017, p.5).

 

Ao rememorar sua trajetória de torcedor, nos diferentes espaços por que passou, grupos que integrou e pessoas com as quais conviveu, Careca endossa as memórias positivas:

“Naquela época nós viajávamos a qualquer lugar e nós éramos respeitados aonde chegássemos” (RODRIGUES, 2017, p.9), “A bicharada passava por tudo que era lugar e era bem recebido em qualquer parte” (idem, p.18).

Lembra ainda de uma relação amistosa com outros torcedores organizados e também com os atletas do Grêmio. Integrantes de torcidas e jogadores eventualmente se encontravam no Bar do Ramon, e, por vezes, mesmo nos vestiários – visto que, naquela época, o acesso de torcedores a esse espaço era mais facilmente permitido. Ele era uma figura conhecida, chamado pelo apelido por todos, denotando carinho e intimidade.

Diferentemente de Careca, sabemos que muitos torcedores/as LGBT+ deixaram de frequentar estádios de futebol devido à discriminação. Outros tantos nem mesmo construíram uma relação positiva com esse esporte por experiências negativas em outros espaços. Ao compartilhar as memórias desse torcedor, mais uma exceção do que a regra, não sugiro que o futebol era um ambiente acolhedor a homens gays.

Permito-me tirar o foco, por um instante, dos olhares de reprovação, dos gritos ofensivos, das agressões. Para, aí sim, em nome da diversidade por que tanto lutamos, concentrar todas as intenções e comemorações nessa história de orgulho de torcedor. Justamente a de um gremista que conseguiu superar os obstáculos encontrados e tanto contribuiu para os espetáculos produzidos pelas torcidas gremistas nas décadas de 1970 e 1980. Para que se repita cada vez mais. Para que se multiplique. E muitos mais façam história. A sua história e a de seu clube. Como torcedor e como LGBT+.

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Essa e tantas outras histórias e reflexões sobre a Coligay estão no livro Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay, que será lançado no segundo semestre deste ano pela Dolores Editora.

Para ter um gostinho da obra, você pode baixar gratuitamente o livreto de Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay, uma amostra da versão final. É só clicar aqui.

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Depoimentos

ROCHA, Luiz Afonso Oliveira da. Depoimento de Luiz Afonso Oliveira da Rocha: Projeto Garimpando Memórias. Porto Alegre: Centro de Memória do Esporte – ESEFID/UFRGS, 2017.

RODRIGUES, Osmar Dziekaniaki. Depoimento de Osmar Dziekaniaki Rodrigues: Projeto Garimpando Memórias. Porto Alegre: Centro de Memória do Esporte – ESEFID/UFRGS, 2017.

Periódicos

TORCIDAS Organizadas: Máquina Tricolor. Nação Tricolor, Porto Alegre, v.1, n.4, 1997.

CRUZ, Sidnei. Torcidas organizadas também voam à Tóquio. Correio do Povo. Porto Alegre, p.12, 06 dez. 1983.

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Luiza Aguiar dos Anjos

Atleticana, boleira, professora e pesquisadora. Interessada principalmente nas existências invisibilizadas nas arquibancadas e campos.

Como citar

ANJOS, Luiza Aguiar dos. Careca da Coligay. E de Eurico Lara, Força Azul e Máquina Tricolor. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 68, 2020.
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