Caroço de Pinha e o direito do pobre à arquibancada
Caroço de Pinha está morto.
Dito de outra forma…
Antônio Joaquim de Sousa, paraibano, torcedor do Botafogo da Paraíba, 63 anos, morreu na semana passada em João Pessoa, vítima de Covid-19.
E, vou dizer de antemão, eu não sei se consigo explicar para as pessoas de fora da Paraíba a dimensão do que isso representa.
Eu frequento o Estádio Almeidão desde 1991, quando fui levado por um tio a um jogo entre Botafogo-PB e Auto Esporte pelo Campeonato Paraibano daquele ano. E eu simplesmente não lembro de um único jogo que ele não estivesse lá.
Um homem muito pobre, negro, que carregava no apelido (penso eu) um certo sentido pejorativo, mas que o ressignificou para se tornar uma pessoa popular na cidade, famosa mesmo, uma das poucas unanimidades em torno do Belo (o apelido do clube pessoense). Um homem sem emprego fixo, que vivia por caminhar pelo Centro da cidade, fazendo pequenos bicos e pedindo dinheiro a um e a outro, e que religiosamente estava nos jogos do seu time do coração.
Sempre vestido à caráter, com camisa do clube, generosa lapada de cachaça em punho, cigarro derby preso ao dedo da mão esquerda, com seu andar trôpego e voz pouco articulada. Cantando, dançando, comemorando. Fazendo da Arquibancada Sombra do estádio (no Almeidão, as arquibancadas são batizadas de Sol e Sombra e eu acho isso poético demais) o seu habitat preferido.
Todo torcedor o conhecia. Já pagou uma dose para ele. Já repassou um cigarro. Ajudou a comprar o seu ingresso. E, mesmo sem dinheiro, quase sem nada, na base das caronas e das doações, foi um torcedor que já viajou praticamente todo o país acompanhando jogos importantes do clube de João Pessoa.
Comemorou o acesso à Série C do Campeonato Brasileiro em 2013 dentro do Estádio Presidente Vargas, em Fortaleza. Sofreu o impacto do gol no minuto final que impediu o acesso à Série B em 2018, no Estádio Santa Cruz, de Ribeirão Preto. São apenas alguns dos muitos exemplos mais recentes.
Mas o que torna tudo mais dolorido é a certeza de que Caroço de Pinha é um tipo de torcedor cada vez mais raro no futebol brasileiro. Um tipo que vem sendo alijado dos estádios do país nos últimos anos. Que não tem mais lugar no Maracanã, por exemplo, nas tais arenas multiusos que amputam o caráter popular do futebol e tornam o jogo inalcançável para a grande maioria dos brasileiros.
O documentário Geraldinos (2015) explica muito bem esse fenômeno. Evidencia exatamente isso. Torcedores como Caroço de Pinha são as principais vítimas do processo de arenização em curso desde que o Brasil começou a se preparar para sediar a Copa do Mundo de 2014. Arenas que, tal como defendido por Mascarenhas (2013, p. 143), tentam se vender “como paradigma mundial de conforto, segurança, previsibilidade, controle e, acima de tudo – embora veladamente –, rentabilidade e elitização”.
No ano passado, aliás, eu escrevi um artigo para a revista FuLia/UFMG (CALDAS, 2020) que falava justamente sobre como foi importante a Paraíba ficar de fora da Copa do Mundo. Como os estádios locais, livres dessa “modernização”, são ressignificados pelos torcedores dentro de um processo topofílico (BALE, 2003) que é importante demais para o jogo, para a democracia do torcer, para as sociabilidades torcedoras.
Ainda citando Mascarenhas (2013, p. 155), gosto de pensar os estádios como “lugar de referência”, como “memória acumulada, vivida coletivamente”. E, para tanto, para que isso aconteça em sua potência máxima, é imprescindível que a pluralidade se faça presente. Que haja espaço nesse futebol para os muito pobres.
Nesse sentido, estádios como o Almeidão representam a resistência. Estádios antigos, precários em muitos sentidos, mas que são positivamente classificados pelos torcedores de “raiz” numa clara oposição às novas arenas. Estádios, enfim, que ainda permitem que torcedores como Caroço de Pinha tenham o seu lugar na arquibancada.
Bem, permitiam, antes da pandemia, óbvio.
E quando tudo isso passar, quando a população brasileira for vacinada em massa, quando os estádios de futebol puderem voltar a receber torcedores, vai ser amargurante demais voltar ao Almeidão e não encontrar mais o velho companheiro de arquibancada por lá.
No mais, é continuar resistindo. Lutando para que outros torcedores como ele continuem tendo espaço no estádio.
É uma das homenagens possíveis que se pode fazer à memória dele.
Referências
BALE, Jhon. Sports Geography: Second Edition. London and New York: Routledge, 2003.
CALDAS, Phelipe. Amor (não) se explica: torcida, topofilia e estádio de futebol. FuLia/UFMG. Belo Horizonte, v. 5, n. 2, pp. 52-78, 2020.
CARVALHO, Phelipe Caldas Pontes. O belo e suas torcidas: um estudo comparativo sobre as formas de pertencimento que cercam o Botafogo da Paraíba. Dissertação (Mestrado em Antropologia), UFPB, João Pessoa, 2019.
GERALDINOS. Direção: Pedro Asbeg e Renato Martins. 2016 (73 min.), son., color.
MASCARENHAS, Gilmar. Um jogo decisivo, mas que não termina: a disputa pelo sentido da cidade nos estádios de futebol. Cidades. São Paulo, v. 10, n. 17, pp. 142-170, 2013.