123.29

Caszely, o craque chileno que desafiou Pinochet

Thiago Rosa 27 de setembro de 2019

O futebol chileno é repleto de craques memoráveis. Um deles é ainda mais lembrado, pois sua trajetória se mistura com a do próprio Chile. Ídolo do Colo-Colo, ele era conhecido como o “rei do metro quadrado” por sua habilidade em driblar os adversários. Destemido em campo, fora dele esse atacante também ousou enfrentar um dos marcadores mais impiedosos do país. A história de Carlos Humberto Caszely ajuda a explicar por que o futebol jamais será só um jogo.

Carlos Caszely. Foto: Reprodução/Twitter.

Filho de René Caszely e Olga Garrido, Caszely cresceu no bairro de San Eugenio, em Santiago. Herdou a paixão pelo futebol do pai, um quase jogador que abandonou a dúvida de uma época em que o esporte era amador pela certeza do trabalho como ferroviário.

Começou a dar seus primeiros chutes no time amador dos Diablos Rojos, até ir parar no principal clube chileno, o Colo-Colo, onde estreou no profissional em 1967, aos 16 anos e meio. Tão jovem, mas com um talento de gente grande. Baixinho, driblador, com uma incrível força e uma canhotinha endiabrada, logo caiu nas graças da torcida do Cacique.

Titular do time já em 69, Caszely foi campeão nacional em 1970. No ano em que ganhou seu primeiro título, o Chile começava a vivenciar uma profunda mudança em outro campo, o da política. Liderando a coalizão esquerdista Unidad Popular, o médico e senador Salvador Allende venceu as eleições presidenciais, tornando-se o primeiro socialista marxista a ser eleito democraticamente na América. Em tempos de Guerra Fria, essa guinada à esquerda não seria perdoada pelos Estados Unidos, que impuseram medidas político-econômicas para desestabilizar o país.

Diferente dos americanos, Caszely nunca escondeu sua visão de mundo e seu respaldo à Unidad Popular. Nas eleições parlamentares de março de 73, apoiou publicamente as candidaturas vitoriosas dos comunistas Gladys Marín e Volodia Teitelboim para a Câmara e Senado, respectivamente. Craque do Colo-Colo e já capitão do Chile com apenas 22 anos, o atacante colocava seu prestígio à prova.

O ano de 1973, aliás, seria inesquecível para Caszely e o povo chileno. Com 9 gols, ele foi o artilheiro e comandou o Colo-Colo no vice-campeonato da Libertadores, vencida pelo Independiente, da Argentina. O inédito título continental não veio, mas as partidas do Cacique trouxeram alegria aos chilenos.

Salvador Allende e Carlos Caszely em Santiago. Foto: Reprodução/Twitter.

Nas ruas, a realidade em nada lembrava a celebração de um gol ou de uma vitória no futebol. O país enfrentava uma profunda crise socioeconômica e o acirramento da polarização. Greves, panelaços, violência urbana e o surgimento de grupos fascistas viraram parte do cotidiano. O destino da nação parecia previsível.

Em 11 de setembro, com apoio dos Estados Unidos, aviões de guerra do Exército comandados pelo general Augusto Pinochet atacam o Palácio de La Moneda, sede do Poder Executivo. Acuado e diante do iminente golpe de Estado, Allende fez seu último discurso via rádio Magallanes e, em seguida, cometeu suicídio. Tinha início ali a ditadura militar do Chile, período marcado pela tortura, execuções e que levou mais de 200 mil pessoas ao exílio.

A ascensão do regime aconteceu durante a fase final das Eliminatórias para a Copa de 74. Um mês antes do golpe, a seleção chilena havia garantido o direito de disputar a repescagem para o Mundial. O adversário seria a União Soviética, grande aliada ideológica dos tempos de Allende.

Por sorteio, a Fifa determinou que o classificado sairia após dois jogos: o primeiro, em 26 de setembro em Moscou e, em 20 de novembro, em Santiago. Antes mesmo da partida de ida, Caszely sentiria na pele o clima bélico entre Chile e União Soviética. Logo no desembarque, quase foi barrado. Alegavam os russos que o jogador não era o mesmo da foto no passaporte. Uma forma de intimidação ao inimigo, como relata o livro Glória roubada: o outro lado das Copas, de Edgardo Martolio.

A primeira partida entre as duas seleções foi jogada exatos 15 dias após o golpe, sob o olhar de mais de 60 mil pessoas, que vaiaram os novos capitalistas. Terminou em 0x0, com uma grande atuação defensiva dos chilenos.

Quase dois meses separavam o jogo de Moscou à volta em Santiago. À medida que o tempo passava, o Chile mergulhava no caos. Ao estilo do regime nazista, o Estádio Nacional passou a ser usado como uma espécie de campo de concentração. Ao invés de gols e da alegria do futebol, o que se via ali era tortura e morte. E era justamente esse o local escolhido para o confronto decisivo entre as seleções.

Segundo a Cruz Vermelha, mais de 7 mil pessoas foram levadas pelos militares para o Estádio Nacional em um único dia. Foto: Reprodução.

A comunidade internacional e a imprensa já falavam abertamente da barbárie praticada no Estádio Nacional. No local, Victor Jara, famoso cantor e ativista político, havia sido torturado e morto. A União Soviética se recusou a jogar em solo chileno, mesmo que isso implicasse na perda da vaga para a Copa. A Fifa deu de ombros à alegação moral e ao temor de insegurança dos europeus e manteve a partida. Dias antes Pinochet tratou de esvaziar o estádio, enviando os prisioneiros para a abandonada Salitrera Chacabuco. Não adiantou. Os europeus se mantiveram reticentes e não vieram à América.

Não havia adversário naquele 21 de novembro, mas para o protocolo da Fifa era como se tivesse. Assim, no dia 21 de novembro, diante de um estádio cheio de torcedores, Caszely atuaria em um jogo que jamais aconteceu. Time posto em campo e, como combinado no vestiário, o atacante do Colo-Colo passa a bola para o capitão Francisco “Chamaco” Valdés, que marca diante do gol vazio. O episódio ficou conhecido como “o gol mais triste do Chile”. Os sul-americanos ganharam por WO, mas Caszely sabia que, de fato, não havia o que celebrar.

Drible em Pinochet

Na véspera da Copa, quis o ditador recepcionar toda a seleção antes do embarque para a Alemanha. A razão era clara: usar o futebol como ferramenta política. No Edifício Diego Portales – sede do governo após o bombardeio do Palácio de La Moneda –, Pinochet discursou e, então, passou a cumprimentar um a um os jogadores.

Caszely ainda tinha na memória os chilenos que o abordavam na esperança de que ele encontrasse algum familiar ou parente preso no estádio nacional. Para ele, estar ali era viver o pior da história. De forma espontânea e surpreendente, ele não se curvou ao ditador. “[…] de repente, a porta se abriu e saiu um senhor de óculos escuros, bigodinho, chapéu e capa. Eu tinha acabado de ver o filme de Anne Frank e tinha lido o livro. E era como se fosse Hitler, aparecendo naquele momento. Duro, forte, triste, tenso. Não sei se transpirava mais no campo, jogando, ou nesse momento, quando lhe neguei a mão. E eu lhe neguei a mão como se dissesse, como se o fizesse entender que não gostava de violência, nem ditadura, nem guerra. Queria viver em paz”, contou o atacante no documentários Os rebeldes do futebol.

Coube a um jornalista do veículo La Segunda trazer à tona o episódio passado na sede do governo. Como um porta-voz do regime, publicou em tom acusatório: “Veja como é desagradável esse jogador comunista, que inclusive foi capaz de negar a saudação ao Presidente”. O gesto de rebeldia de Caszely se tornou público e não seria esquecido pelos militares.

Num país marcado pelas atrocidades perpetradas pelo próprio Estado, representar o país em uma Copa do Mundo não parecia algo simples. Na estreia contra os donos da casa, derrota de 1×0 e Caszely é expulso aos 67 minutos, o 1º atleta a levar vermelho em um Mundial. Um prato cheio para os partidários do regime. Um membro do governo presente junto à delegação chegou a disparar: “Caszely, expulso por não respeitar os Direitos Humanos”. Nas duas partidas seguintes, empate de 1×1 com a Alemanha Oriental e e 0x0 diante da Austrália. O Chile dava adeus à Copa e a ditadura encontrava alguém para culpar.

Chile sim, Junta não”, dizia o cartaz da torcida durante o jogo entre chilenos e alemães na Copa. Foto: Reprodução/Twitter.

Mal sabia Caszely que, enquanto ele jogava na Alemanha, sua mãe tinha sido detida e torturada pelos militares durante um dia todo. Caszely só tomaria conhecimento disso ao voltar do Mundial. Tinha ela marcas de golpes, queimaduras e feridas que dificilmente seriam cicatrizadas. Pinochet tinha se vingado da forma mais cruel possível. Por sorte – se é que existe alguma diante disso –, Caszely ainda pôde reencontrar sua mãe e recomeçar a vida. Nessa época, ele já atuava pelo Levante, da 2ª divisão da Espanha, onde reafirmou sua fama de goleador. De lá, foi para o Espanyol de Barcelona e virou ídolo. Retornou ao Colo-Colo em 78 para se consagrar tricampeão chileno. Com a seleção, seria ainda vice-campeão e melhor jogador da Copa América de 79 e jogou a Copa de 82, na Espanha. Caszely fazia do futebol sua arma política.

Golaço na ditadura

Em 1985, aos 35 anos, jogando pelo Colo-Colo, Caszely encerrou oficialmente sua brilhante carreira. O jogo diante de um combinado de estrelas da América do Sul, com um Estádio Nacional abarrotado de gente se transformou em um grande ato pela democracia. A transmissão do evento havia sido proibida pela ditadura. Mesmo com o veto, pelas ondas da Radio Cooperativa, era possível ouvir o coro do público: “E vai cair! E vai cair”.

Caszely é cercado por torcedores em seu último jogo pelo Colo-Colo. Foto: Reprodução/Twitter.

Cada vez mais pressionada pela oposição, pela comunidade internacional e já sem o apoio dos Estados Unidos, a ditadura chilena foi perdendo força. Em 1988, na tentativa de dar um tom de legitimidade, Pinochet convocou um plebiscito para 5 de outubro. Caberia ao povo decidir pela continuidade ou não do regime.

De 5 de setembro a 1º de outubro, a televisão exibiu propagandas pelo Sim e Não à ditadura. Ídolo no esporte e símbolo de resistência, Caszely foi convidado a participar da campanha. Ele aceitou, mas com uma condição: não seria o jogador a falar sobre os horrores da ditadura, mas sim alguém que a sofreu na pele.

Assim, em 20 de setembro, Olga Garrido contou em detalhes os momentos macabros que passara diante dos militares. Na sequência, junto dela, Caszely apareceu diante das câmeras, fazendo um chamado a votar pelo Não. “Porque sua alegria é minha alegria. Porque seus sentimentos são meus sentimentos. Porque esta linda senhora é minha mãe”.

A história jamais havia sido contada em público, o que gerou uma enorme comoção nacional. Institutos de pesquisa na época avaliaram que o testemunho da mãe de Caszely fez com que 7% dos indecisos optassem por dar um basta ao autoritarismo. O “Não” venceu com 59,99% dos votos e a democracia voltou a seguir seu curso no ano seguinte.

Destemido dentro e fora do campo, Caszely não se curvou diante dos adversários. Enfrentou todos, um a um. Pela alegria de jogar futebol e o direito de viver em paz.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Thiago Rosa

Formado em Jornalismo e com especializações em Relações Internacionais, Marketing e Gestão da Experiência do Consumidor. Cofundador do Extracampo, projeto com a finalidade de mostrar a influência do esporte mais popular do mundo na sociedade e na vida das pessoas ao longo do tempo. Tem a certeza de que o futebol jamais será só um jogo.

Como citar

ROSA, Thiago. Caszely, o craque chileno que desafiou Pinochet. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 29, 2019.
Leia também:
  • 126.24

    Sindelar, a lenda da Áustria que desafiou o nazismo

    Thiago Rosa
  • 125.1

    Papa Francisco e San Lorenzo: uma história de amor e fé

    Thiago Rosa
  • 123.15

    Futebol e homofobia: a triste história de Justin Fashanu

    Thiago Rosa