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Cherchez la femme

José Carlos Marques 26 de janeiro de 2018

Em coluna publicada na Folha de S. Paulo em 15 de julho de 1998 (“Dores antigas”), o jornalista Alberto Helena Jr. procurava analisar as razões da derrota da Seleção Brasileira por 3 x 0 para a França, na final da Copa do Mundo disputada três dias antes em solo francês. Em seu texto, Helena Jr. criticava a preparação tática da equipe e as opções do técnico Zagalo. Ao final, quase que em forma de apêndice, o jornalista arriscava uma provocação para explicar a crise que acometeu Ronaldo Fenômeno no dia da decisão: “Para esse enigma Ronaldinho, o mais sábio é recorrer à velha máxima francesa: cherchez la femme”.

A expressão tem origem no livro “Les Mohicans de Paris” (“Os moicanos de Paris”), publicado por Alexandre Dumas em 1854. Em tradução livre para o português, teríamos algo como “procurem a mulher”, ou “a responsável é a mulher”. A frase ganhou popularidade nos Estados Unidos por força de O. Henry (pseudônimo do escritor William Sydney Porter), que a utilizou para dar nome a um de seus contos, “Cherchez La Femme” (1909). As narrativas policiais também passaram a se utilizar da expressão, indicando que, para se solucionar um crime, bastava procurar a influência da mulher por detrás dos atos praticados pelos homens.

Ronaldinho (que passaria a ser chamado de Ronaldo Fenômeno em distinção a Ronaldinho Gaúcho) passou a ser vítima de inúmeras especulações em torno do que teria ocorrido com ele horas antes do jogo contra a França em 1998. A história é nebulosa até hoje. O jogador sofreu uma espécie de crise neurológica e foi levado às pressas para uma clínica nos arredores de Paris. Mesmo com a gravidade da ocorrência, a comissão técnica decidiu-se por manter o craque no time, decisão que gerou polêmica entre o próprio elenco.

Mas quais as origens da crise que afetou Ronaldo? Pressão pelos resultados? Estafa mental? Fadiga muscular? As más línguas chegaram a imputar à modelo e atriz Suzana Werner, então namorada do jogador, a origem de todos os males: ela teria se envolvido com outro homem durante a Copa (alguns indicavam o jornalista Pedro Bial, que fora visto com ela na arquibancada, assistindo a uma partida do Brasil) – daí o surto que teria vitimado o Fenômeno.

É provável que Helena Jr. não utilizasse nos dias de hoje tal expressão, lida atualmente como machista ao imputar à mulher a origem dos acertos e erros cometidos pelos homens. Machista ainda por acusar de traição a namorada do jogador, de forma a se justificar os problemas vividos por Ronaldo horas antes de entrar e campo na final da Copa de 1998. Pois eis que esse preconceito disfarçado está prestes a ser rememorado 20 anos depois, neste início de 2018, por ocasião da Copa da Rússia. É não é difícil perceber por quê. Basta olharmos para os memes e os comentários jocosos que têm sido proferidos, especialmente nas redes sociais, em torno do namoro redivivo entre Neymar e Bruna Marquezine.

marquezine
A atriz Bruna Marquezine. Foto: Max Haack/Agecom.

Como temos uma capacidade ímpar de fazer piada com tudo, a internet brasileira não poupou o enésimo anúncio de que Neymar voltou a engatar o namoro com a estrela da Globo. Entre as brincadeiras, passamos a ver coisas do tipo “Esse namoro tem que durar até a Copa da Rússia”; “se Neymar jogar mal na Copa já sabemos de quem é a culpa”; “Depois que reatou o namoro, Neymar já marcou sete gols em janeiro” (2 contra o Rennes pela Copa da França, um contra o Amiens pela Copa da Liga e quatro contra o Dijon pelo Campeonato Francês); “Marquezine tem mais responsabilidade que o Temer esse ano com sua pátria”, “A Bruna não entendeu que ela é a segunda pessoa mais importante da campanha do hexa?”, entre outras coisas. Até uma pesquisa divulgada no Twitter pelo @OMercadoPopular mostrava que o jogador tem média de gols mais alta na Seleção Brasileira nos períodos em que namorou a atriz.

Descontado o tom cômico dos gracejos, não dá para ignorar o cunho também machista de algumas brincadeiras, imputando sempre à mulher (no caso, Bruna Marquezine) a responsabilidade pela boa forma do jogador de futebol. Na história dos craques da Seleção Brasileira, essa forte relação afetiva entre um casal só parecer ter paralelo com as histórias de dois lendários botafoguenses: Didi (bicampeão mundial em 1958 e 1962) e Guiomar; e Garrincha e a cantora Elza Soares.

Didi demonstrava uma necessidade constante de comunicar-se e de dar satisfações à esposa, que era tida como ciumenta e onipresente na vida do craque. Tínhamos aqui uma participação feminina muito mais forte, já que Guiomar (que acompanhou o jogador ao longo de sua fase áurea) cuidava dos contratos do marido e fazia exigências aos dirigentes esportivos em prol de seu companheiro. Já no caso de Garrincha, a relação com Elza Soares ganha forma no início da decadência futebolística do craque. De todo modo, a cantora transformou-se também numa presença icônica ao lado do astro após sofrer todo tipo de preconceito por ter-se envolvido com um jogador casado.

Bruna Marquezine, ao que tudo indica, não influencia a carreira de Neymar a ponto de controlar seus negócios e decisões profissionais, nem se envolveu com ele enquanto ele estava comprometido. Mas é inegável que essa relação tem um ingrediente midiático infinito e com alto poder inflamável diante da velocidade e instantaneidade das redes sociais – a ponto de existirem sites que já procuraram especular quanto tempo poderia durar o namoro entre os dois, como fez o Bumbet no início de 2017.

As brincadeiras aparentemente inocentes em torno de Marquezine escondem também um alto poder de combustão e de machismo ao imputar à mulher a responsabilidade pelo desempenho de seu parceiro. No fundo, esse cenário só serve para infantilizar ainda mais Neymar, que desde que chegou ao Paris Saint-Germain parece ter deixado de lado a discrição dos tempos de Barcelona.

No time catalão, Neymar precisou manter-se à sombra de Messi, e talvez por isso tenha se transferido para uma equipe onde pudesse reinar sozinho. Dizem que a escolha pelo clube parisiense levou em conta também a presença dos “parças”, ou seja, os vários brasileiros que já estavam no clube e que criaram uma barreira de proteção para as infantilidades do craque. Os problemas com Cavani, com parte da torcida e com os outros latino-americanos do time só mostram o quanto Neymar ainda precisa amadurecer profissionalmente.

Paris 8x0 Dijon. Fto C.Gavelle/PSG
Paris 8×0 Dijon. Neymar fez quatro gols e saiu vaiado por não deixar Cavani cobrar o pênalti. Foto: C.Gavelle/PSG.

Conhecidos por darem origem ao casal “Brumar” (junção de Bruna e Neymar), os dois jovens merecem ser felizes no amor, como qualquer um de nós. Ninguém merece, porém, que caiba à mulher a responsabilidade pelos atos de quem quer que seja. Não precisamos mais “chercher la femme”, a não ser nas páginas antigas de contos e romances. E Neymar e seus simpatizantes precisam saber que qualquer sucesso ou insucesso da Seleção Brasileira na Copa da Rússia será fruto apenas dos jogadores e da comissão comandada pelo técnico Tite.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Carlos Marques

José Carlos Marques é Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru) e integra o Departamento de Ciências Humanas da mesma instituição. É Livre-Docente em Comunicação e Esporte pela Unesp, Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Licenciou-se em Letras (Português Francês) pela Universidade de São Paulo. É autor do livro O futebol em Nelson Rodrigues (São Paulo, Educ/Fapesp, 2000) e de diversos artigos em que discute as relações entre comunicação e esporte. É líder do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e modalidades Lúdicas).

Como citar

MARQUES, José Carlos. Cherchez la femme. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 26, 2018.
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