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Circo e Futebol: o Festival Artístico Sportivo em São Januário

Aira F. Bonfim 7 de maio de 2020

Há algum tempo tenho insistido no entrelaçamento entre os temas circo e futebol. Como todo relacionamento novo — não pelo tempo da historiografia, mas pelo que comumente encontramos nos textos contemporâneos que lemos -, os olhares de suspeita ou surpresa têm sido comuns sobre as minhas propostas. Normal.

Mas vamos ao picadeiro, que esse é o campo que me interessa.

Pensar o campo esportivo formado pelo futebol no Brasil exige um esforço de voltarmos para um passado não tão distante, mas suficientemente antigo, uma vez que os leitores aqui presentes não estavam vivos como testemunhas das primeiras décadas do século XX. Em outras palavras, esse texto bebeu de pesquisas que tiveram como fontes os jornais e as fotografias da época de 1920 e 1930. Os rádios, as televisões, a internet e as lives surgiriam muitos anos mais tarde.

A despeito desse passado, o futebol já estava lá. E junto dele, os circos. Semelhante ao futebol, o formato dos espetáculos de circo como conhecemos também foi uma “invenção” inglesa nascida no século XVIII. No Brasil e em outros países do mundo, o fenômeno dos circos foi o que mais reuniu público durante o século XIX e meados do XX, mesmo momento em que o futebol nascia, crescia e se popularizava em terras tupiniquins.

A cada terreno onde as tendas coloridas eram armadas, iniciava-se uma verdadeira disputa dos mercados ávidos por diversão nas cidades brasileiras. Mercado esse que viu o seu apogeu na primeira metade do século XX, fazendo dos circos nacionais a mais importante manifestação artística do Brasil, com grande apelo popular — mais até que o cinema nacional — e, por vezes, sendo a única diversão que chegava até os rincões da América do Sul.

Dito isso, ser um produtor de circo, papel desempenhado por famílias inteiras, homens e mulheres, artistas e empresários do ramo, fazia com que esses profissionais estivessem sempre atentos a qualquer novidade cultural capaz de seduzir e gerar maiores fidelizações com o público pagante a cada nova turnê. O futebol brasileiro, pulsante nas primeiras décadas do século XX, era uma grande arma de sedução, com pitadas regionalizadas de identificação das massas.

Quando voltamos no tempo e procuramos as primeiras relações entre os espetáculos circenses e o futebol brasileiro, encontramos suas associações mediadas por números inusitados e ao mesmo tempo comuns entre os artistas dos picadeiros: torneio de mini bicicletas, times de cães adestrados… todos vestidos com o fardamentos das equipes.

Essa mistura, apesar de parecer inusitada nos dias de hoje, não era exatamente uma novidade, uma vez que a sociabilidade ao ar livre, os encontros esportivos e o ambiente do tempo fora do trabalho estavam em formação e, ao mesmo tempo, em constante disputa.

Artistas dos mais diversos números circenses já se misturavam às domingueiras das famílias burguesas cariocas fazendo atrações por troca de alguns vinténs. A rigidez que reconhecemos hoje nos ambientes promotores de uma partida de futebol, entre os principais clubes nacionais, estavam completamente flexionados nos anos 1920. O futebol dessa época misturava, ao longo de sua programação, bandas, apresentações ginásticas, gincanas com adultos e crianças, competições de corridas variadas, venda de doces, flertes entre os jovens e ações beneficentes (isso só para citar alguns numa listagem imensa). Nesse contexto, o Festival Artístico Sportivo, realizado em São Januário, é bastante elucidativo.

Era janeiro de 1930, e o clube do Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, cedeu o seu campo de futebol, três anos após a sua inauguração, para a realização de um festival em prol da Casa do Artista (local de abrigo e apoio aos artistas da época). A iniciativa partiu do presidente vascaíno da época, o conhecido sportman Raul Campos. O evento ofereceu ao público uma programação diversificada, com a mistura de diferentes atividades esportivas e artísticas. Além de acrobacias em pé e a cavalo, cabo de guerra, ginásticas, escotismo e bandas musicais, estava uma partida de futebol entre o time do Vasco e os artistas.

De acordo com o Diário Carioca, publicado no dia 07 de janeiro, a escalação da equipe masculina contou com o primeiro team do Vasco: Jaguaré, Gradim, Sinhô, Tinoco, Badir, Chico, Bahiano, Silva, Manuel, Santos e Junqueira. Já o time de artistas era composto por membros do Circo Democrata, instalado na época na Rua Figueira de Mello, no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro — mesmo endereço do tradicional estádio do São Christóvão Athletic Club. O grupo de artistas do Democrata foi parceiro da iniciativa do Vasco e ofereceu, na mesma ocasião, a arrecadação de um dos seus espetáculos para a Casa dos Artistas.

Além da arte entrar em campo junto com o futebol, a segunda surpresa ficou a critério da escalação da equipe de artistas para a peleja. Mais uma vez os jornais, responsáveis pela divulgação da programação, deram pistas sobre o número futebolístico:

“A partida de football entre conhecidos jogadores vascaínos e as primeiras actrizes dos nossos teatros promete ser sensacional e de um chiste deveras encantador”. (Diário Carioca, Rio de Janeiro, 11 jan. 1930)

Pois bem, a composição artística contou com conhecidas atrizes que circulavam entre os teatros de revista e circos da época: Aracy Côrtes, Lygia Sarmento, Olga Naxarro, Sylvia de Toledo, Victoria Regia, Lelita Rosa, Rosalia Pombo, Clotilde Duarte, Eugenia Brazão, Clotilde Dorby e Zaira Cavalcante.

“Só esses sorrisos tão bonitos, chegavam a driblar os rapazes do Vasco, sendo ainda que as pernas, ao shootarem, desviavam a attenção dos players, da pelota para as ditas…” ( A Batalha, São Paulo, p. 4, 28 jan. 1930)

Para surpresa e aumento das expectativas do público em relação ao evento esportivo-artístico, os dias anteriores ao jogo no campo do Vasco exploraram a participação das mulheres entre as quatro linhas. O jogo misto também contou com um team igualmente misto dos artistas. Artistas homens (palhaços) também entraram em campo junto com as atrizes. Apesar do placar de 2X1 favorável ao time de artistas, a partida parece ter sido uma grande brincadeira, com poucos demonstrativos técnicos de um bom jogo de futebol.

Equipe de artistas que enfrentou o Vasco no Estádio de São Januário, Rio de Janeiro. FONTE: Revista da Semana, Rio de Janeiro, 12 abr. 1930.

Vale lembrar que o imperativo das artes permite tal ousadia: o descumprimento das regras e das limitações impostas pelo jogo. Com limites menos rígidos imposto pelo campo esportivo, o público compareceu para absorver o que de “artístico” tinha o evento a oferecer ao “esportivo”. E assim o fez. Ofereceu jocosidades, como publicados pela Revista O Que Há, que comentou a permissividade das regras: 

“No jogo tudo foi permittido, como por exemplo, rugby, e basket-ball, sendo que nestes jogos, Aracy Cortes, mostrou-se de uma habilidade espantosa”. (Revista O Que Há, Rio de Janeiro, p. 31, 30 jan. 1930.)

E também, nesse conjunto de “inusitações” artístico-esportivas, o evento colocou as mulheres em campo.

Em 1930, ainda eram raríssimos episódio públicos e divulgados de mulheres que ousavam entrar no restrito espaço dos campos de futebol para jogar. Mesmo que esse limite tenha sido tensionado por razões de uma grande brincadeira de… circo!

A passividade naturalizada por anos (naquela época e até hoje) da presença das mulheres exclusivamente dedicada às arquibancadas dos estádios, através das artes, assim como pelo recorte de classe dos subúrbios, passou a ser desafiada e questionada com aparições públicas como as protagonizadas pelas atrizes circenses em São Januário. As atrizes dessa época já tinham o hábito de terem suas imagens e corpos expostos publicamente no ambiente do teatro de revistas e dos circos. Essa coragem de exposição, como é possível de se prever, não passou despercebida de chacotas, preconceitos e retaliações das inúmeras moçoilas que, aos poucos, despontaram jogando nos campos do Brasil.

Vida longa às culturas que nos permitem conhecer e melhor nos reconhecer entre as histórias ocultas do tal país do futebol.


Seguindo nossa escalação musical, você pode ler essa incrível história ouvindo a música Hoje tem futebol da Cátia de França:


Revista Pelota em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Aira F. Bonfim

Mestre em História pela FGV com pesquisas dedicadas à história social do futebol praticado pelas brasileiras da introdução à proibição (1915-1941). É produtora, artista-educadora e por 7 anos esteve como técnica pesquisadora do Museu do Futebol. O futebol de várzea, os  debate sobre patrimônios e mais recentemente o boxe e o circo, são alguns temas em constante flerte... 

Como citar

BONFIM, Aira F.. Circo e Futebol: o Festival Artístico Sportivo em São Januário. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 13, 2020.
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